Síria // As fontes de mentiras – Como fazer jornalismo sem jornalistas~ 7 min

Leader of Al-Nusra in Syria as a clothing model in a studio wearing a "Number one pro democracy moderate rebel" t-shirt.

Por Duarte Guerreiro e Nguyen.

Agora que a guerra na Síria parece estar a entrar finalmente em fase de rescaldo, ocorreu-nos que seria boa ideia usá-la para exemplificar a forma como as notícias a que somos expostos são manipuladas ao nível das fontes primárias de informação. A guerra de propaganda que acompanhou a guerra real foi longa e furiosa. Talvez precisamente porque o conflito se arrastou tanto tempo é que foi possível desmontar as mentiras antes que a região pudesse ser completamente destruída e todo o assunto enterrado debaixo do tapete.

Quando a coisa corre bem em termos de propaganda, acabamos com uma Líbia; o derrube do ditador Gaddafi foi arquitetado e executado pelos governos ocidentais, assentes em mentiras sobre mercenários africanos ao serviço do ditador malvadão que se revezavam em orgias de violação com Viagra providenciado pelo Estado, entre outros contos hollywoodescos. A guerra de informação criou a legitimidade para deixar o país, anteriormente com os melhores índices de qualidade de vida em África, no caos e ruínas, onde bandos jihadistas controlam largas zonas e a escravatura humana regressou. Hillary Clinton gabou-se da sua participação nos eventos. Um famoso vídeo da CBS mostra-a a comentar divertida e às gargalhadas a morte de Gaddafi, arrastado para o deserto, espancado e sodomizado com uma baioneta, até que por fim alguém lhe deu um tiro.

Estas intervenções são louvadas pela imprensa ocidental, a coberto de uma qualquer defesa dos direitos humanos, mesmo quando partem de Donald Trump.

Jornalismo do diz que disse

Desde 2011 que decorre a guerra da Síria, que envolve governos e potências do Médio Oriente e mundiais, bandos jihadistas e grupos revolucionários. Cada lado tem a sua própria agenda, que tenta promover com os meios que tem ao seu alcance. Se os canais Russia Today e Sputnik se tornaram os porta-vozes do governo de Assad para o mundo, os mega canais ocidentais (CNN, BBC, France 24, Washington Post, etc) tornaram-se os veículos de transmissão da propaganda jihadista. De lembrar que, salvo raras excepções e até recentemente, quando o governo sírio retomou grande parte do seu território, não existiam jornalistas dos meios de comunicação ocidentais a operar na Síria.

O motivo é simples: desde muito cedo no conflito, jornalistas que tentaram fazer reportagens a partir de zonas controladas pela Al-Qaeda (que mudou várias vezes de nome para Jabhat al-Nusra, Jabhat Fateh al-Sham e Tahrir al-Sham) foram raptados e apenas soltos após o pagamento de resgates. Já os que se arriscaram a entrar no território controlado pelo Estado Islâmico, foram simplesmente assassinados. A algumas raras vozes simpatéticas ao jihadistas era permitido continuar a operar no interior do seu território, e até estes admitem ocasiões onde os seus amigos barbudos quase lhes fizeram a folha.

Ausentes quaisquer jornalistas no terreno, estes amigos dos jihadistas ou os seus porta-vozes eram recauchutados como “activistas” presentes no terreno. Os seus relatos de mulheres que se suicidavam em massa para evitar violações às mãos do exército sírio, de crianças queimadas vivas e execuções sumárias de civis ecoaram por toda a imprensa ocidental, que não se deu ao trabalho de explicar que estavam literalmente a usar comunicados de imprensa das forças jihadistas como fonte – nomeadamente, do Concelho Consultivo da Frente do Levante.

Isto inclui um famoso relatório da ONU, anunciando que haviam sido “recebido relatos”, cujas fontes nunca são reveladas, de que forças pró-governo teriam matado 82 civis em quatro bairros de Aleppo. O próprio relatório admite que a veracidade dos relatos é muito desafiante de verificar e omite que os ditos quatro bairros eram zonas activas de batalha de onde os jihadistas estavam a ser expulsos, mas isso não impediu meio mundo de usar como título “A ONU diz que o regime sírio matou 82 civis” ou variações do mesmo, emprestando a (criticável) seriedade da ONU a algo que não passava de postas de pescada.

Curioso notar que o Estado Islâmico permitiu à Vice fazer um “documentário” sobre a realidade de vida nos territórios do Califado; claro que toda a equipa foi sempre acompanhada, vigiada e controlada por membros do Estado Islâmico. Já do lado governamental foram permitidos alguns jornalistas, que foram acompanhados e controlados por membros do exército, mas nos casos em que o governo não gostou de algum ou alguma jornalista, limitou-se a não atribuir licenças de jornalismo ou a impedir a entrada nos territórios governamentais.

Com o aproximar do fim da guerra e o facto de que os jornalistas estrangeiros finalmente podiam visitar as zonas libertadas pelo exército sírio, anteriormente controladas pelos “rebeldes moderados”, finalmente estão a surgir algumas admissões, arrancadas a ferros, de que talvez a vida sob o jugo de mil e uma facções de mercenários estrangeiros seguidores de uma ideologia hiper violenta e ultra sectária, possivelmente não é a melhor coisa do mundo. Quanto às provas de todos os massacres e violações em massa indiscriminadas que supostamente estavam a ser executados pelas forças do governo e seus aliados em Aleppo e outras cidades, não só nunca se materializaram, como um silêncio sepulcral se abateu sobre todo o assunto.

Rebranding de cortadores de cabeças

Se a brutalidade e selvajaria do Estado Islâmico rapidamente impossibilitaram a construção de uma narrativa sobre os rebeldes coitadinhos e pró-democracia; já a frieza e calculismo dos grupos afiliados à al-Nusra permitiu aos seus patrocinadores directos (Arábia Saudita e Turquia, por exemplo) e apoiantes ocidentais (EUA e Grã-Bretanha, entre outros) criarem uma campanha de publicidade sobre uns tais de Exército Livre Sírio (FSA). Estes barbudinhos do FSA seriam uns progressistas, pró-ocidentais e pró-democracia, que corajosamente se opunham ao regime do ditador Assad malvadão.

Desde 2012 que se tornou efectivamente impossível negar que a al-Nusra é um grupo jihadista que se aliou, derrotou ou controlou por completo as múltiplas facções do FSA que não se lhe juntaram ou foram destruídas pelo Estado Islâmico. Este domínio dos jihadistas sobre os grupos que combatem contra Assad, quando abordados pela imprensa séria ocidental, tornam-se culpa do próprio governo de Assad, como se pode ler em seguida:

As origens desta dinâmica podem ser apontadas ao Presidente Bashar al-Assad, que rapidamente acusou os protestos pacíficos no início de 2011 como uma “conspiração estrangeira”. Esta conspiração, segundo Assad em meados de 2011, estava a ser liderada por “terroristas” Sunitas, — dezenas, senão centenas teriam sido libertados da prisão em Março, Maio e Junho de 2011. A forma sectária de Assad classificar a crise e a sua posição cínica de se apresentar como o protector das minorias Sírias permitiram-lhe alargar a sua base de apoio, mas também garantir que os extremistas dentro da oposição poderiam fazer proliferar a sua narrativa.

– Charles Lister na Foreign Policy, 15 de Março de 2017

Portanto Assad é um génio de retórica que consegue fingir ser o protector das minorias Sírias, a ponto destas pessoas se juntarem ao seu exército para combater o tal grupo de barbudinhos simpáticos pró-democracia, sem nunca se aperceberem que estão a ser enganados. Ele consegue ainda a proeza de convencer os barbudinhos simpáticos a tornarem-se jihadistas, simplesmente por lhes chamar jihadistas. Tal explicação para crianças maniqueístas de que “Assad é tão malvadão que criou o ISIS” foi um dos pilares da estratégia para levar alguma esquerda das boas intenções a apoiar a guerra de agressão contra a Síria.

Fim da primeira parte. Parte dois aqui.

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