Portugal // Bombeiros sapadores gritam “Não nos tirem o pão”~ 7 min

Protesting firefighters illuminated by red flare.

Por Duarte Guerreiro

Viveu-se ontem uma tarde interessante em frente ao Ministério do Trabalho. Bombeiros sapadores de vários pontos do país reuniram-se na Praça de Londres sob chamado do STAL e STML para contestar os novos estatutos que o governo PS está a tentar impor à profissão.

A alteração da idade da reforma era de longe a questão que mais enfurecia os presentes. Nenhum se conseguia imaginar a trabalhar até aos 60 anos, talvez ainda mais, com o desgaste físico inerente à profissão. Como iriam conseguir carregar 50 quilos de equipamento às costas enquanto sobem 20 andares de escadas? Como iriam aguentar turnos de 12 horas, com duas ou três ocorrências por turno, depois de 40 anos de encher os pulmões de fuligem e enfrentar chamas e derrocadas para salvar vidas? Como poderiam prestar socorro à população nessas condições?

A concentração abriu com alguns discursos na carrinha da CGTP. Uma responsável sindical tentava puxar por alguns cânticos que rimavam em “ão”, mas o entusiasmo era pouco. Foi então que emanou da audiência o cântico mais popular do dia: “Não nos tirem o pão!”.

A questão salarial também é afinal importante e menosprezada num país onde profissionalismo significa comer todo o tipo de indignidades bem caladinho ao invés de ser um especialista a quem são dadas condições de fazer o seu trabalho. Perguntava um bombeiro como iria olhar nos olhos os seus colegas com remunerações de miséria e exigir-lhes que fizessem os mesmos esforços e sacrifícios que os outros? As novas propostas salariais são não só indignas, como uma forma já habitual de dividir para reinar.

Quando a delegação sindical se deslocou para entrar no Ministério do Trabalho com as suas exigências, foi seguida pela massa de bombeiros, que se concentrou em frente à porta num leve jogo do empurra com a polícia.

Protesting firefighters in front of the Ministry of Labor.

Daí foi um salto espontâneo para cortar as entradas norte da Praça de Londres. O mal-estar no ar convertia-se em acção directa. Alguns gritavam que não saiam dali até serem recebidos e escutados condignamente.

A sensação entre os bombeiros era de que estavam a ser alvo de uma profunda ingratidão do poder em relação ao seu trabalho. Enquanto o país arde no Verão, são os heróis do presidente dos abraços e do primeiro-ministro das palavras doces. Os media não se cansam de lhes louvar os esforços e pedir que a população lhes envie fundos e mundos. Chegado o Inverno, cortam-lhes o salário e fazem-nos trabalhar em condições que quase pedem mortos. Talvez seja essa a ideia; afinal de contas, seriam menos reformas a pagar.

Os media eram por vezes hostilizados. Fazem por isso. Afinal, quando os bombeiros sapadores lançaram uma greve de 15 dias às ocorrências não cruciais e primeiro denunciaram toda esta situação, ninguém lhes deu cavaco. Quando os media finalmente falaram dos bombeiros, foi só após os acontecimentos na Praça do Comércio.

Ficava novamente a sensação de que gozavam com a cara deles. Se sofrem pacificamente, ninguém os escuta. Se armam confusão, chovem câmaras do céu. Não admira então que entre os bombeiros mais novos se testemunhasse uma atitude de “se só assim nos escutam, que seja!”. Eram estes os mais aguerridos em querer alargar o corte de estradas, os mais impacientes com o ritmo das negociações do sindicato, os que gritavam por greves por tempo indeterminado.

Os bombeiros mais velhos pediam-lhes calma. Que a confusão atrairia as câmaras, mas não seria para os escutar melhor mas sim para os denegrir. Um bombeiro relatava indignado um pequeno episódio que parecia um microcosmo desta teoria. Uma repórter entrevistava um colega quando deflagrou um dos pequenos episódios de confusão da tarde. A repórter imediatamente vira as costas ao entrevistado e vai à procura da sua manchete. O bombeiro ali ficou, atónito.

Fica a sensação de que ambos os lados entre os bombeiros têm parte da razão; uma questão a explorar noutra ocasião.

Quanto aos media, fica a suspeita que a sua atitude em relação aos bombeiros é fruto do profundo carinho da população por estes profissionais. Quando há greves e reivindicações, é para dizer mal. Médicos, enfermeiros, ferroviários, professores, estivadores, são todos preguiçosos e com salários altos demais. Ao contrário do leitor do Correio da Manhã, que é o único português honesto à face do planeta Terra e merece cada um dos euros que leva para casa.

Mas aos bombeiros não se toca. Não quando se passa metade do ano a pintá-los de heróis. Não quando toda a gente que os vê a passar na estrada de sirenes aos gritos, sabe que vão a caminho de salvar a vida a alguém. Disso eram testemunho os comentários que fazia quem por ali passava. “Quando houver fogo na casa do Marcelo ou do Costa, fazem-lhes assim” dizia um velho alentejano enquanto gesticulava um manguito. Uma senhora lamentava “Têm de fazer estas coisas para que alguém os escute, é uma vergonha.”

Apenas um leitor do Correio da Manhã que por ali passava foi uma voz dissidente. “Eu trabalho no particular! O meu salário é mais pequeno que o vosso!” naquela expressão de miserabilismo católico tão própria do português. Quanto mais maltratado no trabalho, mais se abrem as portas do Céu.

Mas se os media não podem tocar aos bombeiros, a melhor coisa a seguir é ignorá-los, que é o que tem acontecido.

Aquando da saída dos dirigentes sindicais, uma ligeira atmosfera de paranoia havia-se instalado. A PSP tinha colocado agentes à paisana a rondar os bombeiros e a largar a dica que o bloqueio da estrada era tolerado, mas que se tentassem circular haveria chatices. Meia dúzia de carrinhas de agentes do corpo de intervenção com equipamento de motim eram a manifestação física das potenciais “chatices”. Foi quando os bombeiros reocuparam uma das faixas entretanto abandonada que surgiram confrontos com um desses paisanas que os tentou empurrar de volta. Como os jornalistas tanto adoram dizer, “viveram-se momentos de tensão”.

Para nossa diversão, um bombeiro desconfiado fez questão de se plantar à nossa frente e tirar-nos uma foto com o telemóvel. Afinal de contas, tínhamos estado “a filmar a tarde inteira!” e portanto só podíamos ser infiltras. Não levamos a mal; não é a primeira vez. Sempre vigilante, camarada bombeiro!

O diálogo final entre representantes e representados não é fácil. As novidades vindas dos altos do Ministério do Trabalho prometem mais reuniões e diálogos. Parece que os governantes estão muito admirados com a recepção das suas propostas, que julgavam boas, justas e morais. Os bombeiros mais novos estão fartos de esperar e das promessas cínicas do poder. Os mais velhos perguntam-lhes se pensavam que se ia tudo resolver em meia-dúzia de dias. Fica um nó no estômago de quem vê e quer uma vitória para os bombeiros sapadores. Há aqui uma ponte que parece estar urgentemente em falta.

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