Falácias da prostituição: consentimento e escolha~ 7 min

Por Aline Rossi

Parte três de três. Parte um sobre revisionismo e branqueamento. Parte dois sobre moralismo.

A falácia do consentimento

Como o branqueamento dos termos, o consentimento é uma belíssima maneira de lavar as mãos. Trocando em miúdos, é a famosa tática de responsabilização e culpabilização da vítima.

O consentimento é um conceito que, parecendo aliado, na maioria das vezes joga contra os direitos da mulher.

Primeiro porque consentimento é subjetivo e ideológico, quando o abuso é real e material. Quão importante é o consentimento numa situação de violação de direitos humanos? Quão importante é que uma pessoa tenha consentido em trabalhar em situações análogas ao trabalho escravo por ser a única possibilidade? Quão importante é que uma pessoa tenha consentido em ficar numa relação sofrendo violência doméstica numa base diária por ser a única maneira de ter abrigo?

Quando me dizem não ver ou mesmo não haver problemas na prostituição quando esta é sobre “duas pessoas que consentem”, eu morro um pouco por dentro. Primeiro porque, como mulher, sei que o consentimento no sexo é importante, mas não é suficiente. Depois porque ao repaginar como “trabalho sexual” e falar em “consentimento”, estamos assumindo que consentimento pode ser comercializado – o que parece, no mínimo, incongruente.

Consentir não é desejar. Consentir não é querer. E mulheres consentem, especialmente no sexo, por motivos muitas vezes alheios a elas próprias — porque vivemos numa sociedade patriarcal que diz que agradar o homem é a melhor coisa que ela faz em vida, que casar é o auge do seu sucesso, que mulher tem que ser “santa na rua e puta na cama” e que ela sempre quer. Ela sempre quer, mesmo que não diga isso com suas palavras. Mesmo que suas palavras digam o contrário. Que o seu “não” é “sim”, que a sua roupa pede e que quanto mais violento, mais prazer ela sente.

A jurista Catherine MacKinnon, percursora da lei contra o assédio sexual no trabalho nos Estados Unidos, é uma das figuras proeminentes no debate sobre consentimento e prostituição. Como disse a autora e jurista em uma conferência, o sexo na prostituição não é “só sexo”. É o sexo “você faz como eu quero”, “você faz como eu digo”. É o sexo de quem paga. É ditado não pela liberdade, não pelo desejo mútuo, mas por uma relação de poder pontuada pelo dinheiro — em que um tem para pagar e a outra precisa para viver. Uma situação que implica, necessariamente, a comodificação de um ser humano, a violação da soberania sobre o próprio corpo.

O hábito de culpabilização da vítima, parece-me, faz com que olhemos para a problemática da prostituição com olhos viciados, buscando a culpa ou o problema sempre na mulher – como o juiz desembargador Neto de Moura, o “juiz do acórdão”, que atenuou a pena a um homem que agrediu à mulher com uma moca com pregos porque ela era “adúltera”, ou a juíza que perguntou a uma vítima de violação se esta tentou “fechar as pernas”.

Nesse sentido, questionar se a pessoa prostituída consente em perder direitos para dizer se isto deve ou não ser legal é mais uma extensão da cultura da violação e de culpabilização da vítima. Com ou sem consentimento, com ou sem pagamento, a questão última deveria ser: é ou não é aceitável violar direitos humanos?

A falácia da escolha

Uma vez mais, é interessante perceber que neste ponto diversos setores da Esquerda optem por argumentar em termos liberais. O movimento do materialismo e das análises estruturais recorre, sem pensar duas vezes, ao argumento da “escolha individual” quando o tema é prostituição.

Antes de mais, a argumentação de um suposto “posicionamento pró-escolha” aqui está diretamente relacionado ao branqueamento que aplica uma baliza o debate, direcionando e pré-condicionando o entendimento do espectador/leitor/ouvinte. Isto porque falar em escolha leva à associação imediata de que qualquer pessoa que não seja adepto daquele mesmo posicionamento seja “anti-escolha”. Exatamente como os conservadores pró-vida fazem relativamente às feministas quando o tema é aborto: chamam-se pró-vida e, por tabela, o outro grupo é “anti”, “contra” e liga à imagem de assassinato, homicídio e morte, balizando o debate.

Nós não ignoramos que algumas pessoas possam, de facto, escolher a prostituição. Mas esse ponto não nos é o mais importante. Mais importante que saber que pode ser uma escolha, é saber o que leva, fomenta ou condiciona essa escolha. Quem faz essa escolha. Por quê se faz essa escolha. Em que condições essa escolha é feita.

É, pelo menos, interessante que a prostituição seja maioritariamente escolhida por mulheres. Especialmente, por mulheres economicamente vulneráveis na esmagadora maioria. Insistem em balizar o debate com mulheres que são “acompanhantes de luxo”, que estão na faculdade ou já são formadas, e “escolheram” se prostituir livremente. A mesma argumentação do pobre que enriqueceu no capitalismo, mesmo que ele seja um em meio a mil milhões de pobres explorados que nunca terão sequer moradia assegurada.

Usar a imagem da “prostituta de luxo”, aquela que ganha em uma noite o que uma trabalhadora de call center ou restauração ganha em um mês, para reivindicar o trabalho sexual como uma escolha consciente motivada pelo dinheiro é um argumento comum, mas que denuncia de imediato a opressão económica na situação. Em uma sociedade em que mulheres ainda não recebem pagamento igual por trabalho igual, ainda são minoria nos cargos de topo, ainda são demitidas por engravidarem ou preteridas por serem mães, é significativo que o único lugar em que ela possa receber dinheiro o bastante para viver em condições de vida razoáveis seja servindo homens sexualmente.

Além disso, vale lembrar uma nota indispensável feita pela autora feminista Andrea Dworkin sobre a falsa distinção entre a prostituição de luxo e a prostituição “vulgar”:

(…) Da perspectiva de uma mulher na prostituição ou de uma mulher que esteve na prostituição, as distinções que outras pessoas fazem entre se o evento aconteceu no Hotel Plaza ou em algum lugar mais deselegante não são as distinções que importam. Estas são percepções irreconciliáveis, com premissas irreconciliáveis. Naturalmente, as circunstâncias devem importar, vocês dizem. Não, elas não importam, porque nós estamos falando sobre o uso da boca, da vagina, e do reto. As circunstâncias não abrandam ou modificam o que a prostituição é.

– Andrea Dworkin, em “Prostituição e Supremacia Masculina”

Prostituição não é uma escolha quando a alternativa é passar fome, não ter abrigo, não alimentar os filhos. Prostituição não é uma escolha quando existe uma construção social que objetifica mulheres desde cedo, que ensina sobre a comodificação do sexo como moeda de troca desde a infância, nesta sociedade patriarcal. A única escolha real na prostituição é a do homem que, tendo dinheiro, escolhe usá-lo para forçar sexo em uma mulher que sem esta condição não o aceitaria. Usar o poder económico para coagir uma mulher sexualmente.

Qual a diferença disto para a violação?

Sobretudo, qual a diferença desta “esquerda” para o liberalismo do “consentimento” em produzir mais-valia para aqueles que nos exploram, da “escolha” em se submeter pela moradia e a alimentação, da violação dos direitos humanos legitimada por uma transação financeira, da meritocracia daquele um em mil milhões que venceu “apesar da desigualdade”, da comodificação da vida?

Aline Rossi escreve no blogue Feminismo com Classe, onde também publica de forma prolífica traduções de textos feministas de todo o mundo. Recomendamos a visita.

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