Prostituição vs Aborto: escolha e soberania ao corpo~ 4 min

Imagem por Duarte Guerreiro

Por Aline Rossi

Parte dois de três. Parte um: Prostituição vs Aborto: nem profissão, nem crime.

2. Se ela pode escolher abortar, por que não pode escolher se prostituir?

Esta pergunta só é possível dentro do enquadramento explicado no ponto anterior: de que se opor à profissionalização da prostituição implica ser contra a escolha e, consequentemente, a favor da criminalização da pessoa prostituída. Aborto e prostituição é uma falsa simetria.

Aborto é sobre uma mulher fazer algo em seu próprio corpo. Prostituição é sobre alguém fazer algo ao corpo de uma mulher.

Fundamentalmente, está em discussão não o direito da mulher decidir sobre o próprio corpo – isto não deveria sequer ser tópico de discussão; aliás, ninguém debate o que um homem pode fazer ou não com o próprio corpo –, mas se qualquer outra pessoa (geralmente um homem) pode pagar para fazer algo ao corpo de alguém (geralmente uma mulher).

Pagar por sexo é um direito? Quem tem esse direito? Quem usufrui desse direito? Se é um direito, alguém tem o dever de fornecer. Ele pode pagar e exigir isso a qualquer pessoa? Senão, quem decide quais corpos podem ser comprados e quais não podem? Efetivamente, hoje, quais corpos são comprados e quais corpos compram? E o que isto diz sobre o status dessas pessoas na sociedade?

É quase impossível comparar, sem falácias e prejuízos de contexto, a prostituição com qualquer outra situação no mundo. No paradigma da sexualidade, o mais próximo disso, talvez, fosse o debate sobre mutilação genital feminina.

É impossível dissociar a mutilação genital feminina do processo de construção social e cultural. Porém é possível dizer, efetivamente, que muitas meninas e mulheres “consentem” e “escolhem” a mutilação genital. Sim, isso parece um absurdo. Mas porque a prática foi ritualizada e, muito além de compulsória, transformada numa questão de status na comunidade, recusar a mutilação é não ser aceite. É ser diferente, não ser integrada e “optar” por ser julgada por toda a comunidade à sua volta. Ser tratada como uma estranha no seu contexto.

A mutilação, tal como a prostituição, é algo que marca a menina para o resto de sua vida. Inclusive em toda a vida adulta e até a sua morte, trazendo riscos de saúde física e emocional. Mas ninguém em sã consciência falaria sobre manter a prática de mutilação porque “tem quem escolha” ou “tem quem consente”. Ninguém diria que a mutilação pode ser “empoderadora” e “libertadora” se uma menina “optar” por fazer uma. Nem falamos sobre “proteger o direito de escolha de quem quer ser mutilada”.

Sabemos que é compulsória para a maioria. Sabemos em que condições isso acontece. Sabemos do que construiu essa prática, quem se beneficia dela e que sua existência e causalidade é política. Sabemos, enfim, que o debate não é sobre escolha. Ponto. Isto não está em questão, e colocar sob esse prisma seria culpabilizar a vítima.

Por que nós só temos dúvidas sobre escolha e consentimento quando se trata da sexualidade das mulheres? Por que, nestes casos, parecemos incapazes de questionar os agressores?

Justamente porque a prostituição é mais sobre alguém ter o direito de fazer algo ao corpo da mulher invés de uma mulher ter direito de submeter o seu corpo ao que ou quem quiser, a questão da soberania ao próprio corpo cai por terra.

A pergunta que essencialmente precisa ser respondida é, então: o comprador de prostituição não infringe o direito humano universal que a pessoa prostituída tem sobre o próprio corpo? A soberania sobre o próprio corpo não é automaticamente violada quando alguém paga pelo “consentimento”?

Por que, para as mulheres, soberania e escolha é sobre direito a se submeter aos homens?

Fim da parte dois. Parte três: Prostituição vs Aborto: legalidade e vulnerabilidade

Aline Rossi escreve no blogue Feminismo com Classe, onde também publica de forma prolífica traduções de textos feministas de todo o mundo. Recomendamos a visita.

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