Bolívia // Golpe de Estado: contexto e eventos até agora~ 10 min
Por Duarte Guerreiro
Evo Morales demitiu-se a 10 de Novembro, depois de 13 anos no poder. Durante esse período, a pobreza na Bolívia caiu de 60% para 35%; a pobreza extrema de 37,7% para 15,2%. O produto interno bruto per capita cresceu 50%.
Resultado de políticas económicas que desafiaram as prescrições neoliberais zombies que teimam em não morrer, independentemente de quantas vezes acabam em tragédia. O país abandonou os “apoios” do FMI no início do mandato de Morales, responsáveis por uma contracção do PIB per capita para abaixo dos níveis de 1980. Os recursos naturais foram nacionalizados, junto com sectores económicos estratégicos. Só nos hidrocarbonetos, isto traduziu-se num aumento de rendimentos para o Estado de 731 milhões para 4,95 mil milhões.
Estes novos rendimentos foram investidos em políticas redistributivas e de redução da dependência da economia do dólar. O investimento público e privado aumentou, especialmente focado no mercado interno.
O país conheceu uma nova Constituição com mais direitos para a população e que proíbe a presença de bases militares estrangeiras. A soberania alimentar foi também uma prioridade, assim como tentar desenvolver cadeias de produção internas que permitissem diversificar as exportações, limitadas e frágeis.
A produção de baterias foi de especial prioridade, visto que a Bolívia é a casa de 50 a 70% das reservas de lítio do mundo, na forma das planícies de sal de Salar de Uyuni. A exploração destas reservas foi lenta, uma vez que o governo de Morales as queria sob controle estatal em vez de entregues, como habitualmente, a uma corporação ocidental que irá ficar com a vasta maioria dos lucros e arruinar a economia local.
Apesar dos erros e desafios, é inegável que a Bolívia de Evo Morales viu muitos avanços para os cidadãos mais empobrecidos e discriminados no país, especialmente a comunidade indígena, que anteriormente praticamente vivia em apartheid.
Como seria de esperar, este estado de coisas sempre foi do desagrado de Washington e dos seus caciques locais descendentes de colonizadores. Este último episódio está longe de ser a primeira ingerência norte-americana.
O pretexto para o golpe
Morales estava inicialmente impedido de concorrer a um quarto termo na Presidência. Em 2016 é realizado um referendo para abolir os limites de termo, que é derrotado por 51-49. Em 2017, o Supremo Tribunal de Justiça decreta que os limites de termo são anti-constitucionais e estes são abolidos. Dão-se novas eleições a 20 de Outubro. Começa a telenovela.
Alguns detalhes chatos mas importantes, explicados de forma clara por Kevin Cashman do CEPR:
- O sistema eleitoral boliviano para a presidência funciona por rondas.
- Se um candidato obter 50% dos votos, ou 40% com uma margem de 10 pontos sobre o candidato seguinte, a ronda seguinte é dispensada.
- Há duas contagens de votos: a rápida e a oficial. Este sistema foi impulsionado pela Organização de Estados Americanos (ou, como Fidel Castro a alcunhou, o Ministério das Colónias). 60% do financiamento da OEA é advindo dos EUA, e a organização tem um historial de ingerência em eleições, sendo o Haiti o exemplo mais flagrante.
- A contagem rápida serve para obter um resultado preliminar na noite eleitoral, mas raramente chega a contar 100% dos votos (tende a cessar por volta dos 80%) devido à dificuldade de obter a tempo os votos rurais.
- A contagem oficial é a única que importa para efeitos de decidir a eleição.
Na noite da eleição, o oponente principal de Morales, Carlos Mesa pela Frente Revolucionária de Esquerda (FRI), anunciou que a sua candidatura tinha passado à segunda ronda com base na contagem rápida, encerrada pouco depois de atingir mais de 80% do total contabilizado, como habitual.
Carlos Mesa já havia sido presidente entre 2003-2005, antes de Morales. Ascendeu ao posto a partir da vice-presidência, após a renúncia do anterior presidente. Durante o seu termo no poder enfrentou fortes protestos de rua devido à sua resistência, sob pressão do FMI e Banco Mundial, a nacionalizar as reservas de gás do país, acabando por se demitir.
Desta vez, a contagem rápida assumiu uma importância anormal quando a OEA, Mesa e outras figuras da política nacional começaram a exigir que a contagem rápida continuasse até ao fim, apesar de tal não ser nem expectável nem prático (devido à já mencionada lentidão da contagem dos votos rurais).
A imprensa (na maioria sob controle de oligarcas) começa a misturar a contagem rápida com a oficial, dando a impressão de que estava a haver manipulação por parte do governo. A contagem rápida é reiniciada devido à pressão política e quando chega aos 95,63%, Morales já havia obtido a distância de 10 pontos de Mesa para prescindir de uma segunda ronda.
Começa a berraria de que há fraude. A OEA junta-se à festa para declarar os resultados estatisticamente impossíveis, junto com o habitual coro de bananas viciados no Twitter do governo dos Estados Unidos, tais como o Secretário de Estado Mike Pompeo.
O CEPR publica um estudo a demonstrar que a divergência na contagem não é só possível, como provável; a base de apoio a Morales é mais forte no campo, e esses são os últimos votos a ser contados. Tal não bastando, os resultados finais também batem certo com 5 de 6 sondagens pré-eleitorais.
Terror branco
Nos dias que se seguiram, multidões violentas de direita espalham o terror contra membros do governo e do partido de Evo Morales, o Movimento para o Socialismo (MAS), assim como contra órgãos de informação que se atrevem a relatar o que está a acontecer. A polícia recusa-se a agir contra os manifestantes de direita e depois amotina-se em seu favor. O exército recusa-se a agir também, garantindo rédea livre ao terror de direita. Abaixo uma amostra dos eventos:
6 de Novembro; oposição rapta, corta o cabelo, pinta de vermelho e obriga a caminhar descalça pelas ruas a presidenta municipal de Vinto, Patricia Arce. Só é resgatada pela polícia quatro horas depois.
9 de Novembro; oposição invade as instalações das emissoras estatais, Bolivia TV e Radio Patria Nueva, com os trabalhadores a serem retidos, ameaçados e obrigados a mudar a programação. No vídeo, o momento em que lhes é permitida a saída. Aquando da escrita deste texto, a emissão continuava fora do ar.
10 de Novembro; casa da irmã de Morales é queimada.
10 de Novembro; manifestantes de direita queimam a casa do governador de Oruro.
11 de Novembro; a casa de Evo Morales é invadida e pilhada.
11 de Novembro; polícias cortam a bandeira indígena dos seus uniformes enquanto dão vivas à sua “grande instituição”.
A 10 de Novembro os eventos políticos precipitam-se, com o comando militar, pela boca de Williams Kaliman, a “sugerir” que Evo Morales se demita para que cesse a violência.
A cara do golpe, o advogado e empresário próximo à comunidade evangélica Luis Fernando Camacho, oriundo da afluente região de Santa Cruz e espécie de Bolsonaro boliviano, entra no antigo palácio presidencial e ajoelha-se perante uma bandeira com a Bíblia em cima e proclama “A Pachamama nunca voltará ao Palácio. Bolívia pertence a Cristo” [Correcção: na verdade foi um apoiante de Camacho a dizê-lo].
Havia anteriormente prometido “Voltar a levar Deus ao palácio Quemado”. A família de Camacho havia detido o monopólio das reservas de gás na sua região antes da chegada de Morales.
Evo Morales bate em retirada via avião presidencial para um dos bastiões eleitorais do seu partido, onde abdica da sua presidência, que ainda estava em vigor.
Após a renúncia, a perseguição política intensifica, com membros da comissão eleitoral a serem presos e a Presidente e o Vice-Presidente do Supremo Tribunal Eleitoral a serem desfilados como prémios de caça em frente às câmaras por homens de cara tapada.
A situação continua fluida. Como seria de esperar, a UE e a “comunidade internacional” estão a fazer as habituais figuras tristes e a alinhar com toda a golpada que os EUA promovam. Evo Morales e outros políticos do MAS pedem e recebem asilo político do México, motivados pela situação política na Bolívia e o risco de vida que correm.
Nas duas maiores cidades do país (adjacentes uma à outra), La Paz e El Alto em particular, bastião da classe trabalhadora e da população indígena, muitos estão a recuperar do choque do golpe e a proclamar resistência a gritos de “Mesa, Camacho, queremos a vossa cabeça!”
Devido ao bloqueio informativo, a situação global não é clara, mas já foram relatados várias mortes em El Alto causadas pela repressão policial.