Curdistão // Documentar a barbárie e a resistência em Rojava~ 12 min

Internacionalista dos diários de resistência

Por Bruno Garrido

Bruno Garrido // A 9 de Outubro inicia-se a operação de ocupação de Rojava. Até ao momento, como se encontra a resistência?

Rok Brossa // A situação da resistência é dura, sem dúvida. Estamos a ver uma frente de batalha distinta daquela que as YPG/YPJ estão habituadas. Estas unidades foram formadas para combater o Estado Islâmico. Agora encontramos uma frente de batalha que já anteriormente tínhamos enfrentado, em Afrin. É uma frente onde, por um lado, tens a alta tecnologia militar patrocinada pela NATO – aviões de combate capazes de bombardear qualquer ponto do território, estamos a falar de drones que podem bombardear à distância, veículos blindados, tanques – e uma infantaria liderada por grupos islamitas pagos pelo regime turco. 

[São] bandos de sádicos que, pelos vídeos que temos visto, não têm o menor remorso na hora de executar civis, na hora de decapitar ou mutilar corpos de mulheres. Acções bárbaras que já havíamos visto uma e outra vez com a Al-Qaeda, o Daesh, Al-Nusra. São os mesmos soldados que agora, amparados pela bandeira turca, aplicam a mesma chacina em Rojava.

É uma frente dura, e os diferentes acordos internacionais também estão a provocar incerteza nas linhas da frente. Primeiro a retirada das forças americanas, depois os acordos com a Rússia. Sem dúvida, a população está a sofrer a pior parte: o número de pessoas refugiadas é tremendo. Onde nos encontramos agora, nas escola de Tel Tamir, os pavilhões estão cheios de pessoas em fuga.

Tal como em Afrin, as forças turcas estão a atacar as infraestruturas de água, de comunicação. A população civil está a sofrer de uma forma muito dura e cruel, sobretudo quem se viu obrigado a fugir, e agora têm as suas casas ocupadas e saqueadas por grupos islamitas com os quais Erdogan pretende implementar a sua ordem e lei, para expandir o império otomano com que tanto sonha.

BG // Entre a deserção americana, os princípios de acordo com Assad e a Rússia, uma vez mais prova-se que as montanhas são as únicas amigas do povo curdo…

RB // Sem dúvida, os acordos internacionais estão a ter um papel central. Danifica muito o processo revolucionário e a sociedade de Rojava. Vimos como os EUA traíram todas as promessas que fizeram de parar os avanços turcos. Vimos que a Rússia tem o interesse de afastar a Turquia da órbita da NATO, e que portanto está disposta a aceitar várias contradições. Puxar a Turquia para fora da órbita da NATO é um forte golpe contra o Ocidente.

No fim falamos de uma guerra de vários níveis. Por um lado, temos a guerra local dos distintos grupos que combatem para defender o território; também temos uma guerra política, de redefinição do Médio-Oriente – grandes potências como a Turquia, ou o Irão estão a tomar grandes posições. Depois temos também a luta pelo controlo da hegemonia do Médio-Oriente entre Rússia e EUA.

O povo curdo foi sacrificado e usado como moeda de troca entre os distintos actores. Uma situação que sempre aconteceu ao longo da história. Porém, não é certo que tenha só as montanhas como amigas. Estamos a ver esta grande mobilização internacional, vimos manifestações em todo o mundo.

Quando fazes uma revolução contra o patriarcado, contra o capitalismo, contra o Estado-Nação, não podes contar que outros Estados te vão apoiar. Assim, sabíamos desde o princípio que a revolução de Rojava era um passo arriscado mas a revolução nunca foi um caminho fácil. Rojava preparou-se o melhor possível para encarar estes dias. As forças de autodefesa estão preparadas e vamos tentar defender este projecto custe o que custar.

BG // Continuam a chegar provas de crimes de guerra cometidos pelos grupos salafistas e o exército turco. Se olharmos para o Ocidente, o silêncio sobre estes temas é geral.

RB // Vemos que na Europa, em alguns países, existiram declarações de condenação mas, no final fica só mesmo por isso. Estamos a falar de um sistema global de hegemonia dos Estados-Nação e que vão acabar sempre por apoiar-se. A hegemonia do modelo de Estado-Nação baseia-se em só aceitar estruturas semelhantes às suas, portanto qualquer projecto que desafie a hegemonia desse modelo vai ser inimigo de qualquer Estado. Adicionalmente a Turquia é um Estado muito importante a nível económico. Não podemos esquecer-nos que estão há vários anos às portas da UE, o comércio com a Europa tem muita influência.

A Comunidade Internacional não vai pressionar verdadeiramente para que os crimes de guerra que a Turquia está a cometer sejam julgados. Há relatórios médicos realizados pelo doutor Abbas Mansouran, um médico internacionalista que leva vários anos no terreno. Nesse relatório é exposto claramente que o tipo de queimaduras que a população está a sofrer são derivadas de armas químicas [fósforo branco]. Não sabemos até que ponto estes crimes vão ser verdadeiramente investigados. Já estão a existir dificuldades por parte da Comunidade Internacional em iniciar a investigação, portanto sabemos que não podemos contar com eles para parar esta guerra, apenas para fazer declarações que bom… ali ficam.

O que nos importa é que os movimentos revolucionários e as pessoas que estão dispostas a mostrar o seu apoio continuem nas ruas, continuem a mostrar a recusa em aceitar esta ocupação militar. Quando falamos de construir uma revolução internacionalista, sabemos que não podemos contar com os Estados, temos é de contar com os povos e com a solidariedade entre povos.

BG // Sobre um cessar de fogo que nunca saiu do papel…

RB // O suposto cessar fogo de 150h coordenado primeiro pelos EUA, e um outro depois coordenado pela Rússia, em momento algum existiu de forma real. Foi um aviso à Turquia para não avançarem mais do que aquilo que tinha sido acordado. Tendo em conta que qualquer grande operação militar na Síria está sempre acordada entre as grandes potências, não há nenhum passo que não tenha sido acordado.

É por isso que as reuniões e negociações, que existiram antes da operação Nascente de Paz foram decisivas em delimitar o raio de acção da Turquia. Vimos que no dia anterior, os americano se retiraram. Portanto este cessar fogo é só para avisar a Turquia que precisa de abrandar um pouco, mas que pode continuar a bombardear, a saquear e a assassinar população civil. Não existiu um só dia em que os bombardeamentos tenham parado.

BG // Que perspectivas existem para o projecto político revolucionário de Rojava tendo em conta o cenário que poderá passar por uma reintegração no Estado sírio? Existirão elementos do projecto que resistirão ou está-se a prever grandes retrocessos?

RB // O acordo com o Estado sírio é mais uma reviravolta nos eventos, é algo que já vem a ser forjado há vários anos. Já em Afrin, também existiram contactos diplomáticos e negociações. Já ali a Federação Democrática do Norte e Este da Síria deixou claro que quer construir um projecto na Síria, de construir uma Síria democrática e [que tinha] vontade de defender o território.

Isso inclui inevitavelmente negociações para democratizar o Estado Sírio. Sem que isso tenha de significar uma guerra, é óbvio que o modelo de Estado-Nação está muito próximo das lógicas totalitárias em todo o mundo, mais evidente em alguns países que outros. O modelo centralista que o Ocidente impôs ao Médio-Oriente, com este modelo de Estado-Nação na base do colonialismo, como o foi o tratado de Sykes-Picot que tem agora pouco mais que um século. É um modelo que não se adapta à realidade da população do Médio-Oriente.

Este modelo europeu de um Estado, uma bandeira, nem sequer funciona na Europa, quanto mais em sociedades multiétnicas e multi-confessionais. O que se procura é acordos que possam permitir uma convivência democrática dentro da Síria. O acordo com o Estado Sírio significará ter que negociar, ter que renunciar a certas coisas, mas também alcançar avanços.

Por exemplo, fala-se nestes acordos que as SDF se integrem no exército árabe sírio, e isso seria um passo que modificaria o Estado sírio. Agora nem mesmo o Estado pode negar a identidade curda. Vemos nas declarações de Bashar al-Assad que se refere diretamente às pessoas curdas, algo que antes não acontecia. O simples facto de se entrar no exército nacional já coloca questões.

Sendo o seu nome “Exército Árabe Sírio”, a partir do momento que se integram pessoas curdas, assírias, e demais identidades, essas mesmas pessoas teriam de ser reconhecidas e isso é um início  de negociação. A Administração do Norte e Este da Síria conseguiu construir um projecto de autonomia que o Estado está a ser forçado a reconhecer e isso em si também é uma democratização do Estado. Primeiro necessitamos de fazer frente a esta invasão turca e depois necessitamos de uma negociação política com Damasco e perceber como poderá acontecer essa reestruturação.

Patrulha do Exército Árabe Sírio

BG // E em relação a projectos como o Make Rojava Green Again e a Jinwar aldeia das mulheres?

RB // Os três pilares do Confederalismo Democrático são ecologia social, libertação da mulher e democracia comunal. São pontos inegociáveis na hora de desenvolver uma sociedade democrática. E é importante desenvolvê-los a um nível prático. Sem dúvida Jinwar é um exemplo pioneiro em todos esses aspectos. Com a campanha MRGA, não só temos o projecto de reflorestação com que começamos a campanha, nos últimos meses estamos a tratar de temas como a reciclagem de águas e temos um projecto piloto de energia solar. São projectos muito importantes na hora de desenvolver a revolução de Rojava.

Mas obviamente que quando a guerra começa, é difícil manter esses trabalhos. Quando caem as bombas é difícil pensar em ecologia. Mesmo a Jinwar teve de ser evacuada, devido à sua proximidade com a fronteira. Os tanques turcos já estão estacionados junto à fronteira. 

É importante mantermos estes trabalhos, vamos continuar a informar sobre a situação da Jinwar e do MRGA. Agora mesmo é impossível manter esses trabalhos, porque o foco passa por deter a ocupação militar da Turquia.

BG // Através dos diários de resistência, tu e outras internacionalistas têm viajado por distintas povoações e zonas de guerra. As imagens dos diários de resistência são devastadoras, como encontras quem ali resiste?

RB // Os diários de resistência são um projecto já iniciado com a ocupação de Afrin. Pretendemos documentar e informar sobretudo sobre a situação em que vive a população civil perante estas ocupações militares e estes ataques. As imagens que vemos, são muito duras.

Tentamos cobrir os diferentes aspectos da crise humanitária que estes ataques provocam. Desde o enorme número de pessoas deslocadas internamente à situação médica dos hospitais que funcionam como podem. Tentamos expor e documentar o dia-a-dia do que significa viver sob ocupação militar. Cada dia existem povoações que têm de ser evacuados. Pessoas que são assassinadas e torna-se difícil encontrar o tempo para processar todo o material que temos. As dificuldades com a internet, com os cortes contínuos de eletricidade, também não ajudam.

Aqui em Tell Temir, mesmo perante todas as adversidades as famílias curdas, são incansáveis na forma como nos acolhem. É extraordinário as condições que nos dão para fazermos o nosso trabalho. Parte do processo é também passar tempo e perceber como é a realidade destas famílias. Temos também imensa documentação que não pode ser editada, mas esperamos no futuro partilhar todo o material que estamos a gravar e recolher.

Marcha da população em Rojava

BG // Alguma mensagem que queiras deixar a quem tem saído à rua em apoio à campanha RiseUp4Rojava?

RB // Depois do 2 de Novembro e do êxito que o dia de resistência global teve, decidimos fazer um novo chamamento global [a pedir] união com a resistência de Rojava. Fizemos um pequeno vídeo, onde várias internacionalistas, em diferentes campos de Rojava, contam o que está a acontecer.

É importante defender este projecto que serviu de fonte de inspiração para vários colectivos e organizações políticas por todo o mundo. É importante pensar e imaginar que tipo de sociedade temos de construir e não deixá-lo apenas no nível teórico, temos de o levar à prática. É importante aprender o que significa construir um processo revolucionário.

Isto significa encontrar as contradições e as dificuldades que aparecem, e portanto aqui estamos nós. O que se está a construir em Rojava é um novo capítulo na história do internacionalismo revolucionário. No passado podemos ver algumas movimentações semelhantes com a guerra civil espanhola e, mais recentemente, sem dúvida que temos de falar do marco que a revolução zapatista trouxe.

O chamamento é para que mantenham a solidariedade, essa esperança, e que apoiem a defesa da revolução que pode abrir um novo mundo.

Gostaste do artigo? Considera subscrever a newsletter. Permite-nos chegar a ti directamente e evitar a censura das redes sociais.

Sigam o nosso trabalho via Facebook, Twitter, Youtube, Instagram ou Telegram; partilhem via os bonitos botões vermelhos abaixo.

Right Menu Icon