Portugal // Eu não quero ser assassinada~ 10 min

Pela Assembleia Feminista de Lisboa

Nós, mulheres, não queremos ser assassinadas pelos homens. Não queremos ser assassinadas pelos nossos namorados, ex-namorados, maridos, ex-maridos, familiares de sangue ou por afinidade. Nem por desconhecidos. E por muito óbvio que isto possa parecer, há ainda quem o questione ou não tenha percebido como é que funciona.

Nenhuma mulher heterossexual se apaixona por um agressor. Essa faceta só se revela mais tarde e não é logo através da agressão física, porque a violência aqui nunca é pontual mas progressiva, aumentando gradualmente a intensidade da sua manifestação. Começa por outro tipo de ataques dirigidos à auto-estima e às relações de amizade e familiares; utiliza outro tipo de estratégias que passam pelo isolamento, por gerar inseguranças, por criar sentimentos de responsabilidade e culpa, por minar o estado psicológico da mulher, por submeter o seu comportamento e pensamento a um controlo constante.

Ele aprendeu a usar expressões como: “não digas parvoíces”; “a tua amiga é uma putéfia/rameira”; “só gostas de coisas estúpidas”; “se fazes isso é porque não gostas assim tanto de mim”; “com quem estavas a falar?”; “onde estiveste?”; “o que andaste a fazer?”; “ainda bem que também gosto de gordinhas”; “se não tivesses nada a esconder, deixavas-me ver”; “o que não quero é perder-te”; “se não fosse eu, quem iria querer-te?”. E ela foi ensinada a justificá-lo: “isso é porque sou importante para ele ”; “ele não o faz por mal”; “está a proteger-me”; “é a sua forma de expressar-se”; “é sua forma de mostrar o quanto me ama”.

É só depois destes mecanismos surtirem efeito, mas quando já deixaram de ser suficientes para conseguir da mulher tudo o que o homem quer, que surge a violência física. Mais uma vez, essa violência pode ter diferentes graus. Desde a invasão do espaço pessoal, à demonstração de agressividade, força e descontrole, ao uso das crianças contra a mulher, e até ao início do espancamento.

Só por ingenuidade se pode achar que quando o homem dá este passo, é fácil para a vítima fugir logo da situação. Essa mulher não só está há muito tempo presa no maltrato psicológico, como também já foi socializada pela nossa cultura patriarcal para se sentir culpada e responsável por todo o mal que lhe possa acontecer na suas relações com homens: “olha como vais vestida”; “estás a pedi-las”, “não são horas para uma mulher estar aí”; “não vás sozinha”,“o que faz uma mulher assim tão bêbada”; “não sejas chata”; “não o incomodes”; “não faças se ele não gostar”; “o que fizeste para ele agir dessa forma?”

Também foi ensinada que o seu valor depende do que os homens acham dela. Assumiu que o sentido da vida é encontrar o parceiro masculino que a complete, porque ela sozinha não é suficiente. Engoliu que o romantismo patriarcal é a forma de amar e ser amada. Normalizou ser o que ele quer que ela seja, porque cresceu a ser o que a sociedade queria que ela fosse. E agora, se o fantástico homem por quem se apaixonou se “vê obrigado” a surrá-la, é porque qualquer coisa de mal ela terá feito – nem que seja tê-lo escolhido.

O homem até pede desculpas e diz que nunca mais o voltará a fazer, que ninguém lhe quer tanto bem quanto ele. Mas a história não deixa de se repetir, o maltrato continua a manifestar-se de formas cada vez mais agressivas e a mulher passa de sentir culpa para sentir medo, a temer pela sua vida e a de outras pessoas a seu cargo. Esta situação durará tanto tempo quanto ela aguentar ― e sair dela não será só uma questão da sua própria vontade ou de ter ou não os recursos económicos, o apoio emocional ou a capacidade de analisar o que está a acontecer.

Se ela chega a “dar o murro na mesa” e manifesta a sua intenção de pôr fim à relação, ou se o homem simplesmente se apercebe de que pode vir a perder o controlo sobre a mulher e a deixar de poder submetê-la e a impôr-se como fez até agora, o femicídio passa a ser a última medida à qual recorrer. É preciso toda a estratégia de violência usada até agora falhar para pensar no assassínio como forma de castigo ou como única saída possível para recuperar a posição perdida. Este não é assim o resultado de um conflito momentâneo ou de uma situação repentina, como se dá a entender popularmente, mas de uma história de violência gradual que acaba num femicídio premeditado. Isto também significa que, atuando atempadamente, poderia ter sido evitado.

Em Portugal

Em Portugal, a média de femicídios, ou seja, de mulheres assassinadas pela sua condição sexual, é de 3 mulheres por mês. Desde o início de 2019, segundo dados do Governo, são já 25 as mulheres assassinadas por homens — 28 segundo dados da UMAR. E, se a média — infelizmente — se mantiver, ainda serão mais 3 ou 4 até ao final do ano. Tal como nos anos anteriores, o lar é o espaço mais perigoso para as mulheres, pois é aí que são maioritariamente assassinadas. Às vítimas deste ano, somar-se-ão as 504 mulheres vítimas de femicídio dos últimos 14 anos, e as outras tantas que não foram contabilizadas antes disso. E isto só em território português.

Ainda hoje — e apesar do avanço da sociedade —, continuamos a sofrer desigualdade, violência, sexualização e misoginia pelo simples facto de sermos mulheres. Nada disto é levado a cabo por fadas do bosque, alienígenas ou qualquer outro ser fantástico. Por muito que alguns meios de comunicação, instituições e setores da população compactuem e omitam ou adocem esta parte da realidade, o certo é que o femicídio é praticado por homens. Homens com quem partilhamos o nosso dia-a-dia, que fazem parte das nossas comunidades, com quem estamos em casa, na escola, no trabalho, na rua; com quem coincidimos em gostos, inquietudes, desejos ou simplesmente no espaço/tempo.

Os 28 (25) femicídios deixam claro que em Portugal o machismo não está ultrapassado. Apesar de ser um dos Estados da União Europeia que mais depressa está a convergir em matéria de igualdade entre mulheres e homens, continua a estar abaixo da média comunitária.

Isto pouco surpreende, considerando que não é segredo que em solo português ainda existem homens que acham normal comprar o acesso ao corpo das mulheres; homens que pensam que as mulheres são parte do seu divertimento e/ou que acham normal violar uma mulher inconsciente em vez de lhe prestar socorro; homens que defendem como arte a recriação de cenas violentas contra mulheres, ou como liberdade sexual a completa desumanização e denegrição da mulher; homens que não partilham o trabalho doméstico com as suas parceiras; juízes que impõem “justiça” com a bíblia na vez do código penal — ainda que este ignore por completo a desigualdade sexual —, ou homens que assediam meninas e mulheres na rua por puro hábito, entre outras coisas mais.

A igualdade formal, aquela que se declara a nível legislativo e de princípios sociais, aquela que a muitos serve para dizer “as mulheres já conseguiram tudo”, ainda está longe de ser real para nós, e os femicídios, ao fim e ao cabo, são apenas a ponta do icebergue – a qual que não dá para passar despercebida.

Terrorismo contra as mulheres

Nesta relação de poder e violência, não podemos continuar a responsabilizar as mulheres pelas consequências que sofrem, não podemos negar-lhes o apoio material e emocional de que precisam, não podemos continuar a negar a divisão e desigualdade sexual que ainda caracterizam a nossa cultura. Se mais mulheres vão continuar a ser assassinadas é porque neste momento estão numa das diversas fases de um relacionamento abusivo e não dispõem das ferramentas suficientes para sair dele. Porque lhes resta uma sociedade cuja mensagem e mecanismos de apoio não são nem os adequados, nem os necessários.

Também não podemos continuar a invisibilizar e a desculpar os agressores ― porque, nestes casos, as mulheres não “aparecem mortas” ou “morrem”. São vítimas de violência doméstica e, portanto, vítimas de femicídio: há sujeitos ― homens ― responsáveis pelas suas mortes, em circunstâncias muito específicas. Se os homens nos matam é porque ainda assumem que o podem fazer, que eles são o “sexo forte” e que podem subjugar-nos como o “sexo fraco”, que nos podem possuir e decidir sobre as nossas vidas.

E sim, soa exagerado, porque ninguém o apreende com estas palavras, mas através de uma socialização muito normalizada da qual participam todas as instâncias sociais, a partir de diferentes ângulos e níveis de responsabilidade; soa antiquado, porque não é nada de novo, mas nem por isso está obsoleto. As suas formas de se expressar mudaram mas a mensagem é sempre a mesma, e ela domina a nossa cultura.

E por último, é importante que percebamos o femicídio e a violência física, psicológica e sexual contra as mulheres por aquilo que ela é ― TERRORISMO contra as mulheres. A violência machista, sendo a sua manifestação final o aniquilamento físico das mulheres, é em si mesma uma instituição de controlo patriarcal, que através das suas diferentes manifestações, graus e representações, define a vida de todas as mulheres utilizando o medo e o terror constantes – ou, pelo menos, a consciência da possibilidade dos mesmos -, para nos controlar, moldar e reprimir.

O terror e o medo, conjugados com sentimentos de culpa e vergonha, habilmente construídos pela sociedade para isolar e desacreditar as mulheres, operam em uníssono para garantir que não protestamos e que aceitamos de forma abnegada a violência que nos é imposta. Em suma, que não “damos o murro na mesa”, porque se o fizermos é bem possível que a nossa própria vida nos seja roubada.

A consciência e a organização feminista das mulheres é um dos primeiros passos para podermos dar o murro na mesa. Ela não impede que continuemos a ser assassinadas ― pois isso só depende dos nossos agressores ―, mas ajuda-nos a ganhar mecanismos de análise e de prevenção para algumas das situações de violência. Acima de tudo, permite-nos criar grupos de apoio e laços de sororidade entre as mulheres para que, pelo menos, os sentimentos de culpa e vergonha sejam combatidos em conjunto, quebrando, assim, o isolamento individual.

Por tudo isto, saímos hoje à rua para gritar bem alto que estamos aqui e que exigimos o fim de todas as formas de violência contra as mulheres. Encontro no Largo do Intendente, em Lisboa, às 17h30.

A violência doméstica é crime público, e pode ser denunciada por qualquer pessoa: quem vive em situação de violência e/ou quem a presenciar. Para obteres informação geral sobre violência doméstica, podes contactar o número do governo: 800 202 148. Para situações de emergência em que seja preciso fugir da situação de violência, podes ligar para o 144 para garantir o acolhimento durante 48 horas. Para solicitar acolhimento podes contactar a APAV, através do 116 006, e a UMAR, no 218 873 005 (geral) ou no 212 942 198 (Almada), bem como realizar a denúncia no portal de queixa electrónica.

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