Portugal // As prisões em tempo de coronavírus~ 8 min

Por Francisco Norega

Com o avanço da pandemia, crescem as preocupações com a população prisional em todo o mundo. Em Portugal, onde já há pelo menos uma dezena de casos nas prisões, teme-se uma tragédia de grandes proporções em cadeias sobrelotadas, com poucas condições de higiene e onde o acesso a produtos de limpeza é limitado.

Há cerca de duas semanas foram confirmadas as primeiras infecções por covid-19 nas prisões portuguesas – dois casos no Estabelecimento Prisional de Caxias (uma auxiliar médica e uma reclusa que chegou à prisão na noite de 27 de Março) e um caso no Estabelecimento Prisional de Custóias (um guarda prisional). Agora, são já pelo menos uma dezena de casos, entre guardas e profissionais da área da saúde. Correm boatos de que haverá mais casos nas cadeias, embora ainda não existam mais casos confirmados oficialmente. Nas últimas semanas, o pânico foi-se espalhando entre os reclusos, que gravaram vários vídeos que já circulam nas redes sociais. Os sentimentos de abandono e insegurança, aliados às fracas condições de higiene e à ausência de material protector para guardas, cozinheiras e outras pessoas que entram e saem das prisões diariamente, fomentaram ameaças de que, caso não houvesse rapidamente uma libertação de presos, começariam as revoltas. A libertação de reclusos agora anunciada, no entanto, está longe de ser uma solução final para o alto risco do novo coronavírus se abater sobre a população prisional.

Miguel Maravalhas foi libertado recentemente e, em contacto com o Público, forneceu um vislumbre da situação no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos. Nesta prisão são disponibilizados aos reclusos sabão e lixívia para a lavagem das celas, mas estes têm de comprar no bar os restantes produtos de limpeza. Quanto à higiene pessoal, é fornecido “um sabonete, uma pasta e escova de dentes, duas Gillettes azuis de barbear de 15 em 15 dias, mas só aos presos que não recebem visitas.” Não são fornecidos quaisquer produtos a quem recebe visitas. Dos sindicatos dos guardas também chegam denúncias de falta de desinfectante e de ser feita uma mistura de álcool e água para substituir o gel desinfectante.

Num vídeo gravado no Estabelecimento Prisional de Coimbra é denunciada a ausência de prevenção e cuidados, e que tanto os guardas como as cozinheiras andam sem máscara. Nas palavras do recluso no vídeo de Coimbra, “se o Estado não tem condições para nos garantir segurança, tem que nos abrir as portas. Temos que ser realistas, nós errámos, sim, senhora, estamos a pagar pelos nossos erros, mas estamos a falar de uma pandemia mundial. Na rua, e é na rua que há condições, todos os dias estão a aumentar o número de mortos, o número de infectados. Se isto entra nas cadeias, estamos condenados à morte. É o que é, não dá para estar aqui com ilusões.”

Num vídeo gravado no Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, os reclusos mostram uma camarata onde vivem 10 pessoas, com acesso a apenas uma sanita e para a qual é fornecida apenas uma pequena garrafa de lixívia por semana. Mais vídeos surgiram nas últimas semanas nas redes sociais com mensagens de reclusos de Lisboa, Guarda, Izeda, Paços de Ferreira e Custóias. Vários outros vídeos divulgados foram entretanto apagados das redes sociais.

Em meados de Fevereiro foi divulgado um plano de contingência para o sistema prisional, de forma a evitar o contágio pelo novo coronavírus. As visitas foram proibidas na região Norte a 9 de Março e, dias depois, no resto do país. Reclusos e reclusas ficaram assim ainda mais isolados do mundo exterior, tendo apenas 15 minutos diários para falar com as suas famílias. Foi também imposta quarentena de 14 dias a quem agora ingressa nas prisões e aos reclusos que voltam à cadeia depois de saídas precárias. Tudo, supostamente, para seu próprio bem.

No entanto, guardas, educadores, técnicos de reinserção e trabalhadores da saúde e das cozinhas continuaram a entrar e sair das prisões todos os dias. À data das declarações que Jorge Alves, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional (SNCGP), deu ao Jornal I, há cerca de duas semanas, estava a ser feita a medição da temperatura dos reclusos, mas os guardas prisionais não passavam por qualquer controlo. Não sabemos se esta situação se alterou, mas sabemos que os guardas e os restantes trabalhadores das prisões são o principal caminho que o vírus tem para chegar aos reclusos.

Segundo o sindicato, os guardas não estão autorizados “a andar de máscara no interior das prisões para não criar alarme social junto dos reclusos”, mas é precisamente o facto de eles não usarem qualquer protecção que faz com que os reclusos fiquem alarmados. Como toda a gente sabe, uma pessoa que esteja infectada pode contagiar outras antes de ter quaisquer sintomas. E isso não está a ser prevenido. Segundo Miguel Maravalhas, “bastaria um caso positivo para contaminar alas inteiras ou pavilhões”. Isto é especialmente verdade nas prisões que estão sobrelotadas – à excepção das cadeias especiais de Évora, das femininas e do Hospital Prisional de São João de Deus, em Caxias, todas elas estão sobrelotadas.

De acordo com os últimos dados do Ministério da Justiça, estão 1070 pessoas na prisão de Custóias, no Porto, quando a lotação máxima é de 686 reclusos. Ainda pelas palavras do presidente do SNCGP, “se houver um caso nesta prisão, haverá 1000 casos”. 

A 30 de Março, após o surgimento dos primeiros vídeos com mensagens de reclusos, o Ministério da Justiça anunciou que tinham sido distribuídas 13 900 máscaras pelos reclusos de todas as cadeias nacionais, número que deverá ser suficiente para os “próximos sete dias”. Tendo em conta que cerca de 13 mil pessoas estão nas prisões portuguesas, podemos concluir que o Ministério da Justiça acha que uma máscara é suficiente para um ou uma reclusa estar protegida durante sete dias. A matemática das autoridades não pára de surpreender.

Entretanto, o governo anunciou um perdão aplicável a pessoas condenadas a penas de prisão de até dois anos e a reclusos e reclusas a quem restem dois anos ou menos para terminarem as suas penas. Este perdão abrange pessoas condenadas por crimes como a falta de pagamento de multas ou impostos, crimes contra o património, falsificações e abuso de confiança. De fora fica quem foi condenado por crimes classificados como “hediondos” como homicídio, violência doméstica, maus tratos, crimes sexuais, roubo qualificado, associação criminosa, corrupção, branqueamento de capitais, incêndio e tráfico de estupefacientes, bem como quem seja titular de cargo político ou público e membros das forças de segurança. No total, cerca de 2 mil pessoas poderão ser libertadas.

Embora não seja um mau ponto de partida, esta medida não resolverá as condições pelas quais as prisões são locais extremamente propícios à propagação do vírus. Como já foi referido, a maior parte dos estabelecimentos prisionais está sobrelotada. Embora a taxa de ocupação global seja de 109%, acreditando em dados oficiais de 2016, a realidade não é a mesma para todas as prisões. Na cadeia de Custóias, por exemplo, estão hoje presas mais 384 pessoas do que aquelas que o estabelecimento está preparado para receber – o que representa uma taxa de ocupação de 156%.

A libertação de 15% a 20% da população prisional é portanto insuficiente para resolver o problema da sobrelotação. Em vários dos vídeos gravados por reclusos, e também em textos publicados nas redes sociais por familiares, são feitos apelos a medidas mais abrangentes que permitam a quem está preso passar estes tempos difíceis junto da família. São contra a libertação de quem foi condenado por “crimes de sangue” (homicídio, violação e maus tratos, entre outros), pedindo a passagem a prisão domiciliária de todos os outros, independentemente do número de anos que faltem para cumprir a totalidade das penas. Admitem que, sim, erraram e estão a pagar pelos seus erros, mas exigem serem tratados como seres humanos. Não aceitam ser deixados no que alguns chamam de “corredor da morte”.

De acordo com as estatísticas penais anuais publicadas pelo Conselho da Europa, 15,5% da população prisional portuguesa está na cadeia por crimes relacionados com o tráfico de droga. Embora não tenhamos números concretos, sabemos que uma boa parte das pessoas condenadas por tráfico não cometeram crimes violentos contra terceiros. O maior crime destas pessoas, que serão centenas ou talvez até mais de um milhar, terá sido o de nascerem em contextos de enorme pobreza, sem que a sociedade lhes tenha dado quaisquer perspectivas reais de garantir as necessidades básicas das suas comunidades.

De acordo com os dados de 2016, Portugal é dos países europeus com as cadeias mais sobrelotadas, a par da Itália e da Sérvia. Pior que estes três países, só a Macedónia, a Hungria, o Chipre, a Bélgica e França.

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