Palestina // A resistência à nova ofensiva Israelita~ 18 min

Por Francisco Norega e Víctor Boaventura

Uma das faíscas que ateou o rastilho da revolta que se vive em toda a Palestina – da Cisjordânia à Faixa de Gaza, passando pelas cidades mistas de Israel – encontra-se em Sheikh Jarrah, um bairro palestiniano de Jerusalém. A recente conclusão de um processo judicial, que se arrastava há cerca de 9 anos nos tribunais israelitas, deu luz verde à anexação das casas de 27 famílias desse bairro.

Jerusalém está, segundo a Lei Internacional, dividida em duas partes – a Ocidental (israelita) e a Oriental (palestiniana) – mas, na prática, está toda ela sob ocupação israelita. Apesar da maioria das pessoas que habitam a parte Oriental ser palestiniana, a colonização israelita foi, ao longo das décadas, aumentando a pressão e avançando sobre os bairros desta parte da cidade, ora com anexações ordenadas pelos tribunais e executadas com o apoio directo do exército israelita, ora com anexações levadas a cabo pelos colonos, com a conivência das autoridades. Em Sheikh Jarrah, a 6 de Maio, a população do bairro estava reunida para mais um iftar (evento realizado ao ar livre, depois do pôr do sol, durante o Ramadão) quando foi provocada por um grupo de colonos. Geraram-se confrontos e a polícia isrealita efectuou várias detenções. Depois disso, atacou casas, lojas, restaurantes, espaços públicos e instituições culturais do bairro com skunk, uma mistura líquida com um cheiro nauseabundo normalmente usada para reprimir protestos.

No dia seguinte, no coração da Cidade Velha, um grande contingente policial atacou a mesquita Al Aqsa, o terceiro lugar mais sagrado do islão e um dos mais importantes símbolos da soberania palestiniana. No local estavam 70 mil pessoas, reunidas para celebrar a última das Orações de Sexta-feira do Ramadão, aproveitando a ocasião para manifestar o seu apoio às famílias de Sheikh Jarrah e de outras regiões que enfrentam expulsões e demolições. No final das orações, a multidão foi atacada com disparos de balas de borracha, granadas e gás lacrimogéneo. Centenas de pessoas ficaram feridas.

Em resposta à violência, organizações da sociedade civil palestiniana apelaram a um Sábado de Raiva. Nesse dia, 8 de Maio, houve manifestações em diversas cidades, incluindo Jaffa e Nazaré, e 90 mil pessoas voltaram a inundar o Complexo de Al Aqsa. As orações decorreram sem incidentes mas um forte dispositivo policial abateu-se sobre os palestinianos que saíam da Cidade Velha. Na Porta de Damasco, a polícia disparou balas de borracha, granadas e gás lacrimogéneo. Houve imensas detenções e pelo menos 90 pessoas ficaram feridas. Um acampamento de protesto montado em Sheikh Jarrah foi destruído pela polícia.

Na manhã de segunda-feira, 10 de Maio, forças israelitas voltaram a atacar o complexo de Al Aqsa e impediram o acesso de pessoal médico ao local. Cerca de 300 palestinianos foram feridos e outros 228 hospitalizados. Nessa noite, repetiram-se os ataques policiais a Al Aqsa (o terceiro em quatro dias) e centenas de pessoas ficaram encurraladas dentro da mesquita por várias horas, até as forças israelitas se retirarem do local.

Ao mesmo tempo, uma multidão de judeus ultranacionalistas concentrava-se no exterior da Muralha Ocidental do complexo para a comemoração anual da tomada de Jerusalém, em 1967. Enquanto observavam um fogo que pensavam vir da própria Mesquita, cantaram em êxtase uma canção de extrema-direita cujo refrão diz “que os seus nomes sejam apagados”.

Nesse mesmo dia, em resposta aos repetidos ataques a Al Aqsa, o Hamas disparou uma série de rockets em direcção a Israel e as forças armadas israelitas responderam com uma ofensiva militar sobre Gaza, com bombardeamentos diários sobre uma população que vive num território há décadas convertido numa prisão a céu aberto.

As anexações em Sheikh Jarrah e os ataques a Al Aqsa somam-se às já existentes frustrações acumuladas pela situação da Faixa de Gaza e pela recente proibição pelas autoridades israelitas da realização de eleições palestinianas em Jerusalém Oriental. Esta posição de Israel, que está em violação dos Acordos de Oslo, serve para reafirmar o seu controlo total de Jerusalém e afastar a possibilidade de Jerusalém Oriental ser a capital de um hipotético estado palestiniano. É ainda a razão evocada pela Fatah e Mahmoud Abbas para adiar as primeiras eleições para o Parlamento Palestiniano desde 2006, que tinham sido agendadas para 22 de Maio e que muito provavelmente ditariam o final do controlo da Fatah sobre a Autoridade Palestiniana, que dura há 25 anos.

Estes são os principais factores que servem de combustível à revolta que desde 6 de Maio se alastrou por toda a Palestina, chegando a sítios inéditos como as cidades mistas em Israel, e também ao resto do Médio Oriente e do mundo.

Mais de 250 mortos (65 crianças), 7800 feridos e 1800 detidos.

Na Faixa de Gaza, desde 10 de Maio, 230 pessoas (incluindo pelo menos 65 crianças) morreram em bombardeamentos israelitas. 1710 pessoas ficaram feridas (450 crianças) das quais 50 estão em estado grave. Pelo menos 11 das 65 crianças assassinadas estavam a ser acompanhadas num programa do Concelho Norueguês para os Refugiados com o objectivo de as ajudar a lidar com o trauma.

Em média, em Gaza, cerca de três crianças ficam feridas a cada hora que passa desde que começou a ofensiva Israelita, de acordo com a ONG Save the Children. “Famílias em Gaza, e a nossa equipa, dizem-nos que eles estão no limite – estão a viver no inferno sem nenhum lugar onde refugiar-se e aparentemente sem fim à vista”, afirma Jason Lee, director da Save the Children da Palestina.

No que toca ao resto da Palestina, desde 7 de Maio, pelo menos 23 pessoas foram mortas pelas forças de ocupação na Cisjordânia, e uma outra em Jerusalém. Também dois palestinianos com cidadania israelita foram mortos nas cidades mistas de Israel – um vítima de ferimentos resultantes de acção policial e outro atingido na cabeça por um disparo feito por um colono israelita.

Segundo informação publicada pelo Ministério da Saúde palestiniano na terça-feira,  as forças israelitas feriram 1011 palestinianos em Jerusalém e 3825 Cisjordânia. No que diz respeito aos últimos, 739 foram hospitalizados, incluindo 446 pessoas atingidas por balas reais, 175 por balas de borracha, 94 em asfixia por inalação de gás lacrimogéneo e 24 com lesões causadas por espancamento. 

Segundo a Sociedade Palestiniana de Prisioneiros, cerca de 900 palestinianos com cidadania israelita foram detidos nas cidades, vilas e aldeias palestinianas em Israel, desde o início dos protestos a 9 de maio. Na Cisjordânia e em Jerusalém, desde o início de Abril,  mais de 900 palestinianos foram detidos por autoridades israelitas.

Gaza sob ataque cerrado

Em resposta à repressão violenta contra palestinianos, o Hamas, que governa a faixa de Gaza, tinha lançado um ultimato contra as forças de ocupação israelitas para retirar os seus agentes da mesquita Al Aqsa e de Sheikh Jarrah até às 18h de 10 de Maio. Israel não recuou e o Hamas disparou vários rockets em direcção a Israel.

Israel respondeu bombardeando a Faixa de Gaza, iniciando uma ofensiva brutalmente devastadora que dura há dez dias. Durante este período, atingiram a linha que conecta a Cidade de Gaza com a única central elétrica, provocando cortes de energia em grandes áreas da cidade. A entrada de combustíveis, que poderiam ser usados para produzir electricidade nestes momentos, foi bloqueada por Israel. Foram também atingidas importantes estradas e avenidas (impedindo a chegada de ajuda médica aonde é necessária), assim como edifícios governamentais, residenciais, escolas, mesquitas e bancos.

Cidade de Gaza, 16 de Maio

Os bombardeamentos destruíram e danificaram redes de comunicação, equipamentos e dispositivos cruciais para muitas empresas de comunicação e Internet que operavam em edifícios comerciais e habitacionais, atacados sem qualquer justificação. Os ataques atingiram também dezenas de ruas, danificando postes e cabos que forneciam electricidade, internet e serviços de comunicação às zonas residenciais. Estes ataques vêm no sentido de isolar a população de Gaza do mundo exterior e impôr um blackout informativo. Existem imensos relatos de jornalistas, locais ou a trabalhar para jornais e agências internacionais, que dão conta das dificuldades em conseguir uma conexão para subir as suas peças – de, portanto, exercer a sua função de jornalistas.

Durante esta segunda-feira, Gaza esteve completamente às escuras e sem qualquer ligação com o mundo exterior. Durante doze largas horas nada foi publicado desde Gaza, nem em contas pessoais nem em agências de notícias. 

Impossível não referir também que Israel assassinou várias famílias inteiras ao bombardear as suas casas. Na madrugada de sexta-feira, destruíram várias casas na cidade de Beit Lahiya, no norte da Faixa, resultando na morte de uma mãe e dos seus três filhos da família al-Attar. Sábado, morreram no campo de refugiados de Al Shati oito crianças e duas mulheres, todas pertencentes à família Abu Hatab, quando o prédio de três andares onde moravam desabou após um bombardeamento israelita. Num ataque na madrugada de domingo, várias gerações da família al-Qawlaq – pelo menos 21 pessoas – foram mortas. A vítima mais jovem, Qusay Sameh al-Qawlaq, tinha 6 meses de idade, e a mais velha era Saadiya Yousef al-Qawlaq, de 84 anos. No mesmo ataque foi também destruído o edifício do ministério de trabalho em Gaza, e os misseis israelitas abriram uma cratera no acesso ao hospital al-Shifa, a maior unidade médica em Gaza.

Na Faixa de Gaza, a 17 de Maio, contavam-se já pelo menos 58,000 deslocados e cerca de 100 edifícios residenciais destruídos por Israel, onde se encontravam pelo menos 461 unidades habitacionais e comerciais. As pessoas deslocadas procuraram abrigo em dezenas de escolas geridas pela UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinianos. Estas mesmas escolas foram alvo de bombardeamento em ofensivas militares anteriores, matando milhares de civis.

Entre as atrocidades e os crimes de guerra cometidos por Israel neste curto espaço de tempo contam-se ainda a destruição de um edifício de seis andares nas imediações da Universidade Islâmica, onde estava a maior livraria da Faixa de Gaza e vários centros educativos, e a destruição da rede de esgotos e do sistema de canalizações que distribuía água potável a 800 000 pessoas.

Pessoal médico e jornalistas sob ataque

Jornalistas e pessoal médico têm sido um dos alvos predilectos das forças de ocupação. Um dos ataques mais grotescos dos últimos tempos contra meios de comunicação aconteceu no sábado. Um prédio residencial onde estavam os escritórios da Aljazeera e da Associated Press colapsou depois de ser atingido por vários mísseis. Os jornalistas destes meios de comunicação perderam boa parte do seu material de trabalho e o local onde trabalhavam há mais de 15 anos. Como se não fosse suficiente, Israel proíbe a entrada de novos jornalistas na prisão a céu aberto que é a Faixa de Gaza.

Edifício onde se encontravam os escritórios da AP e da Aljazeera, bem como dezenas de unidades habitacionais, bombardeado pelas forças israelitas.

A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) exigiu ao Tribunal Penal Internacional uma investigação aos ataques contra 23 meios de comunicação palestinianos e internacionais durante a primeira semana de bombardeamentos. “Atacar deliberadamente meios de comunicação constitui um crime de guerra” disse Christophe Deloire, secretário geral da RSF. “Com a destruição intencional de meios de comunicação, as Forças de Defesa de Israel estão não só a infligir danos materiais inaceitáveis nas operações jornalísticas. Estão também, mais amplamente, a obstruir a cobertura informativa de um conflito que afecta directamente a população civil.” 

Também na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, jornalistas palestinianos têm sofrido ataques e abusos por parte das forças israelitas. Como qualquer outro palestiniano, também os e as jornalistas são submetidas a um rigoroso controlo de movimento, através de um complexo sistema de muros, vedações, checkpoints e torres de vigia. Neste vídeo, Malak Hasan, jornalista independente palestiniana residente em Ramallah, partilha a sua experiência de ir até Sheikh Jarrah e de como é abusada e atacada pela polícia enquanto cobria os protestos no bairro. Esta terça-feira, na Cidade Velha de Jerusalém, a jornalista palestiniana Latifeh Abdellatif foi também atacada por forças israelitas, como se pode ver no vídeo seguinte. Hoje, em Hebron, na Cisjordânia, uma equipa da Palestine TV foi atacada por colonos israelitas armados, enquanto registava o assassinato de uma criança palestiniana à entrada de um colonato israelita.

Em Gaza, várias infraestruturas ligadas à saúde foram também bombardeadas, entre elas:

– 4 hospitais geridos pelo Ministério da Saúde de Gaza;
– 2 hospitais geridos por ONGs;
– a própria sede do Ministério da Saúde, resultando no ferimento de pessoal médico, algum dele gravemente;
a clínica da ONG Médicos Sem Fronteiras (ninguém ficou ferido dentro das instalações mas pessoas foram mortas pelo bombardeamento nas áreas circundantes); 
– um edifício da organização Crescente Vermelho;
– a clínica al-Rimal, o único laboratório que fazia testes à Covid-19 em Gaza.

Inúmeros médicos, alguns deles bastante prestigiados, têm sido assassinados por bombardeamentos israelitas. Um deles foi Muin al-Aloul, um proeminente neurologista de Gaza, que morreu com os seus cinco filhos quando a sua casa desabou, depois de um missíl atingir o piso térreo do edifício. Outro foi o doutor Ayman Tawfiq Abu al-Ouf, chefe da medicina interna do hospital al-Shifa e supervisor da ala Covid-19 do hospital, num sítio onde há poucos especialistas em doenças respiratórias. Morreu num bombardeamento, juntamente com os seus pais, a sua esposa, a sua filha Tala, de 13 anos, e o seu filho Tawfiq, de 17. Sete outros membros da sua família também morreram.

Testemunho de Haya Abu al-Ouf, sobrevivente do massacre da família Abu al-Ouf. Vídeo completo aqui.

Esta tarde, a polícia israelita invadiu o Hospital Al-Makassed, em Jerusalém Oriental, forçando a entrada e ocupando o telhado do edifício enquanto abusavam e interrogavam o pessoal médico. Este ataque acontece dois dias depois de este hospital, considerado um dos maiores e mais antigos hospitais a servir a população palestiniana de Gaza e Jerusalém, emitir publicamente um pedido de ajuda face ao enorme número de feridos das últimas semanas, onde se pode ler:

“We are overwhelmed and have a shortfall that we can no longer manage. We are now having to directly request for urgent support. Our medical frontline teams are constantly treating injuries from Israeli aggression in Gaza, West Bank, and Jerusalem. This emergency direct appeal will fund medical aid, emergency psychological support, hygiene kits, pharmaceuticals, and other needs during crises in Al Makassed hospital.”

Conflito ou Genocídio? ou

Sobre como se tenta colocar no mesmo patamar as vítimas e os seus carrascos

Organizações de resistência palestinianas em Gaza dispararam cerca de 3.000 rockets contra Israel entre 10 e 17 de maio, de acordo com o jornal Haaretz de Tel Aviv. Em resultado destes ataques, treze pessoas morreram em Israel, incluindo um soldado, quando um míssil antitanque disparado de Gaza atingiu o seu veículo.

Os números de rockets lançados por forças palestinas é impressionante, e denota uma diferença considerável na capacidade operacional da resistência relativamente a ofensivas israelitas anteriores. No entanto, é por demais óbvia a desproporção das mortes, dos feridos, do poderio militar, dos danos materiais.

Os governos e os mass media continuam reticentes em criticar abertamente Israel, ou fazem-no colocando as suas acções no mesmo patamar que a resistência palestiniana, apelando ao fim da violência e ao massacre de civis por ambas as partes, encobrindo as políticas genocidas de Israel. Entretanto, Israel continua impunemente as suas ofensivas criminosas, atacando organizações humanitárias, médicos e jornalistas, e assassinando crianças e civis. Tudo na esperança de unir a sociedade israelita, hoje muito fracturada, contra um inimigo comum, e assim salvar as imagens e o governo de Netanyahu e Gantz. No resto do mundo, os poderosos continuam a fechar os olhos, quando não declaram abertamente o seu apoio, permitindo assim que se mantenha todo um povo subjugado a um sistema de apartheid, violando todas as convenções, tratados e acordos internacionais.

EUA: Os patrocinadores do massacre

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que falou com o ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio na segunda-feira, acrescentando que “todas as partes precisam de diminuir as tensões – a violência deve terminar imediatamente.”

Mas, até agora, os Estados Unidos mostraram total indiferença perante as crianças e os civis mortos em bombardeamento das forças Israelitas a Gaza, mantendo abertamente o seu apoio a Israel apesar dos repetidos crimes de guerra.

Relembramos que, todos os anos, os EUA fornecem cerca de 3,8 biliões de dólares em ajuda militar a Israel. Menos de uma semana antes de começarem os bombardeamentos em Gaza, o Congresso norte-americano foi notificado da aprovação pela administração Biden de uma venda de armamento de precisão a Israel no valor de 735 milhões de dólares. Os EUA são também o maior aliado de Israel na cena política internacional – mais de metade das vezes que os EUA usaram o seu poder de voto na ONU (42 de 83) foi em resoluções relativas a Israel.

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