Afinal, quem é a única portuguesa a combater na Ucrânia?~ 14 min

Por Guilhotina.info

Tomámos conhecimento da presença de Ana Cristina Cardoso na Ucrânia há duas semanas, quando foi denunciada por Miquel Ramos, um dos maiores especialistas em extrema-direita do estado espanhol.

Qual foi a nossa surpresa quando descobrimos que, no domingo da semana passada, foi entrevistada pela TVI e apresentada como uma simples enfermeira que luta “com muito amor, muita vontade”.

Afinal, quem é Ana Cristina Cardoso?

Muito foi dito na última semana – que foi militante do Chega, que participou na marcha nocturna na sede do SOS Racismo (à moda do Ku Klux Klan) e que fez parte da Nova Ordem Social e da Resistência Nacional. Será tudo isto verdade?

Encontrámos a primeira confirmação sobre as orientações desta senhora ainda antes da TVI fazer a sua entrevista, no próprio twitter do Mário Machado, o tal que supostamente não foi aceite pelas forças ucranianas por ser demasiado neo-nazi. O grunho refere-se a Ana Cristina Cardoso, em alemão, como sua “Kamaraden”, publicando duas fotos; uma com ambos debaixo de uma bandeira da Nova Ordem Social e outra com a Ana na Ucrânia em uniforme militar.

Quem diria! Pensávamos que a íamos encontrar de bata de enfermeira a salvar pessoas em sofrimento. Mas não, Ana Cristina Cardoso prefere aproveitar os seus tempos na Ucrânia para pousar em fotos detrás de uma bandeira neofascista espanhola com o lema “Pátria ou Morte” inscrito abaixo da caveira Totenkopf, o símbolo da Divisão Totenkopf das SS, ou seja da divisão das SS responsável pela manutenção dos campos de concentração e extermínio da Alemanha nazi. Ao seu lado está outro grunho com uma suástica na camisola.

[Fonte]

Ana Cristina Cardoso esteve casada com Nuno Cardoso, que fez parte da extinta Nova Ordem Social, foi líder de Resistência Nacional e militante do Chega, tendo até, como o próprio confirmou à Sábado, sido “convidado para organizar a concelhia [do partido] na Covilhã”. Ana também fez parte de todas estas organizações.

Em 2020, esta senhora era uma das pessoas mais activas do grupo de telegram da Resistência Nacional, onde partilhava conselhos úteis sobre o tamanho das facas com que os seus camaradas se podem passear ao abrigo da lei. Segundo o SetentaeQuatro.pt, no grupo eram também partilhadas «notícias que confirmavam as suas crenças ideológicas [e] dicas de livros sobre a II Guerra Mundial, que supostamente mostravam o “outro lado da História”», entre outros conteúdos seguramente inofensivos. A página Chega de Ventura publicou uma série de print-screens de conversas tidas nesse grupo.

Imagem adaptada daqui. Thread original

Foi a Resistência Nacional que organizou, através do Telegram, o protesto à moda do Ku Klux Klan na sede do SOS Racismo. Nuno Cardoso admitiu na altura, segundo o DN, “que foi um dos 20 participantes”. Entre eles, alguns afirmam que estava também Ana Cristina Cardoso. Em declarações ao Expresso, a Ana, que nesta altura já não era casada com Nuno Cardoso, nega as acusações e diz que, nessa noite, estava num jantar do Chega em Viseu com mais de mil pessoas. Corria o mês de Agosto de 2020, em plena pandemia. Entre uma e outra, venha o diabo e escolha.

Karpatska Sich

Outra das acusações difundida nas redes sociais nos últimos dias, é que Ana Cristina Cardoso está a combater no Karpatska Sich (KS), um batalhão neo-nazi. Como não conseguimos nenhuma confirmação visual, não podemos ter 100% de certeza de que esta informação é verdadeira. Não nos parece, no entanto, nada improvável.

Primeiro, porque o KS tem, a nível europeu, contactos próximos com vários grupos que, por sua vez, têm ligações com a Nova Ordem Social – entre eles, a Aurora Dourada (Grécia) e o NPD (Alemanha), que estiveram presentes no encontro que esteve na origem da mais recente organização de Mário Machado.

Segundo, porque o único vídeo da Ucrânia partilhado por Mário Machado no seu canal de Telegram desde meio de Abril é, precisamente, do Karpatska Sich.

Dedicamos, por isso, um momento para conhecer um pouco da história, das conexões internacionais e da práxis de violência desta organização, cujo batalhão de voluntários é um entre quase uma dezena de batalhões de extrema-direita que, na sua grande maioria, foram integrados nas forças ucranianas.

Antes de mais, uma nota sobre aquele elemento que não pode faltar numa organização de extrema-direita – a corrupção, que eles tanto dizem querer combater.

Taras Deyak e outros membros da liderança do Karpatska Sich são fundadores de uma fundação de caridade que foi denunciada em 2018 por receber mercadorias confiscadas na alfândega, de graça, para depois supostamente as enviar para a linha da frente. O problema é que, entre essas mercadorias, se encontrava roupa interior feminina e duas toneladas de mármore, coisas que dificilmente são úteis na frente de batalha mas podem ser vendidas a bom preço. [1, 2]

Outro dos fundadores da KS está ainda envolvido num caso de corrupção sobre alocações ilegais de terras feitas pelo conselho municipal de Uzhoorod.

A origem do Karpatska Sich

De acordo com um estudo publicado pela Cambridge University Press, o batalhão Karpatska Sich surge em Agosto de 2014 como uma companhia de paraquedistas em que, entre outros, participam militantes do partido de extrema-direita Svoboda. Segundo o próprio Svoboda, esta companhia era composta de “nacionalistas que não podiam entrar na Guarda Nacional, no batalhão Sich ou noutras unidades por crimes relacionados com o Maidan, o derrube de memoriais de Lenine e outros processos políticos”. Em Maio de 2015, a companhia KS tornou-se parte da 93ª Brigada Mecanizada do Exército Ucraniano [1, 2]. Em Abril de 2016, a companhia KS foi dissolvida. Em Fevereiro de 2022, com o início da invasão russa, um novo batalhão de voluntários com o mesmo nome foi criado, juntando veteranos da companhia na Guerra do Donbass, “patriotas sem experiência militar” e voluntários internacionais. [1].

Detrás deste batalhão está uma organização do mesmo nome, sediada em Uzhhorod, na Transcarpátia, uma província onde habitam populações húngaras. Supostamente, foi fundada em 2010 como uma “associação patriótica e desportiva”, mas pouco se sabe sobre os primeiros anos da sua existência.

O KS e os seus batalhões foram buscar o seu nome a uma força militar activa em 1938 e 1939, durante a breve existência do estado da Ucrânia-dos-Cárpatos. Acabou por se dissolver depois de ter sido derrotada durante a invasão deste território pelo exército húngaro, em Março de 1939, naquele que foi o primeiro conflito armado na Europa Central nas vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Meses depois, algumas centenas de veteranos do Karpatska Sich formaram, com a autorização das Abwehr da Alemanha nazi, uma unidade militar que participou na invasão da Polónia pelas forças nazis. O KS actual celebra, pelo menos desde 2013, o aniversário da proclamação da Ucrânia-dos-Cárpatos, juntamente com outras organizações de extrema-direita.

As conexões internacionais

Esta organização tem estado envolvida em vários esforços para fortalecer as redes internacionais de movimentos neo-nazis. A nível interno, colabora com várias outras organizações de extrema-direita, como o batalhão Azov e as suas organizações satélite.

O Karpatska Sich participou na “Segunda Conferência Paneuropeia em Kiev“, que se realizou a 15 de Outubro de 2018 no Reconquista Club, associado ao Corpo Nacional, o partido do Batalhão Azov. Nela participaram também representantes de movimentos de extrema-direita da Noruega, Suécia, Ucrânia, Itália, Estados Unidos e Alemanha (como o partido neo-nazi alemão NPD). Uma das principais figuras presentes do lado ucraniano foi Olena Semenyaka, secretária internacional do Corpo Nacional, que tem viajado bastante pela Europa para fortalecer as redes com outros movimentos europeus.

Semenyaka viajou, por vezes, acompanhada de delegações da KS, como aconteceu em Janeiro de 2019, quando foram a Itália para participar numa marcha anual da extrema-direita italiana. [1]

Três meses depois, Semenyaka esteve em Portugal e, a convite do Escudo Identitário, participou no “Forum Prisma Actual”, que se realizou em Lisboa a 4 de Maio de 2019. Esta foi a única oportunidade que teve, até agora, para apresentar ao público ibérico as suas teses sobre a Terceira Via e a nova “Reconquista” na Ucrânia.

Entretanto, em Abril, o Karpatska Sich tinha organizado, em Uzhhorod, o congresso “Sword of Europe”, em que participaram representantes de organizações de extrema-direita da Hungria, Polónia, República Checa, Sérvia e Ucrânia (entre eles, o Centro Russo). O objectivo era unir movimentos nacionalistas com o objectivo de «fazer frente às ameaças civilizacionais da modernidade» e discutir a «ditadura do chamado politicamente correcto».

Participantes do congresso “Sword of Europe” marcham pelas ruas de Uzhhorod numa Marcha da Irmandade Europeia “Aliança Radical”, a 14/04/2019

Entre as organizações participantes neste congresso esteve o Centro Russo, que agrupa “emigrantes políticos” russos na Ucrânia, e que tem contacto próximo com o KS. Por exemplo, o KS e o Centro Russo foram co-anfitriões do Festung Budapest (Fortaleza Budapeste), em Janeiro de 2019, um encontro internacional de extrema-direita realizado na Húngria e organizado pela Legio Hungaria, onde participaram representantes dos Hammerskins húngaros, entre outros grupos. Os participantes do encontro honraram e lembraram os combatentes da “batalha desigual contra a Internacional Vermelha”, em 1945, ou seja, os soldados nazis e os seus aliados que lutaram contra as forças soviéticas em Budapeste no final da Segunda Guerra Mundial. [1]

A adicionar a tudo isto, o KS promoveu a tradução ucraniana do manifesto do Massacre de Christchurch, da autoria do supremacista branco que matou 51 pessoas em duas mesquitas desta cidade neo-zelandesa, a 15 de Março de 2019. O manifesto intitula-se “The Great Replacement” (ou A Grande Substituição), baseado na teoria de que a sobrevivência da civilização branca está ameaçada pela imigração. Esta teoria é tema recorrente nos canais de Mário Machado nas redes sociais.

Para além disso, o Karpatska Sich apoia publicamente o Aurora Dourada  ou pelo menos apoiava, em 2016, quando saiu à rua para se solidarizar com os membros do partido neo-nazi grego que estavam a enfrentar um processo judicial em que acabaram por ser condenados por organização criminosa e pelo assassínio do rapper antifascista Pavlos Fyssas. Vale a pena lembrar que o Aurora Dourada tem geralmente posições pró-russas e apoiou a anexação da Crimeia.

Voltando à Nova Ordem Social (NOS) da Ana Cristina Cardoso e do Mário Machado…

Segundo contou o próprio Mário Machado ao Observador, o primeiro encontro que viria a dar origem à NOS aconteceu em 2014 durante a sua última saída precária dos sete anos de prisão que Machado cumpriu por sequestro, roubo, coacção, discriminação racial e posse ilegal de arma, entre outros crimes, depois de já ter cumprido pena por ter estado envolvido na noite de violência que assolou o Bairro Alto a 10 de Junho de 1995, em que morreu Alcindo Monteiro.

O primeiro encontro do futuro partido aconteceu (…) num hotel na zona de Peniche, e reuniu cerca de 50 pessoas, entre elas representantes dos partidos nacionalistas grego, Aurora Dourada, e alemão, NPD.

Fonte: Observador

Como já referimos, ambos estes partidos têm contacto com organizações de extrema-direita ucranianas, entre as quais o Karpatska Sich.

Nada disto é prova irrefutável de que Ana Cristina Cardoso esteja a combater neste batalhão. Confirma, no entanto, que não seria nada descabido.

A praxis de violência 

Durante os últimos anos, o Karpatska Sich ficou conhecida por apelar a violência contra húngaros, atacar marchas feministas e marchas do Orgulho, atacar exposições feministas e sedes de forças de esquerda, sabotar eventos relacionados com feminismo, discriminação e crimes de ódio e atacar os seus organizadores. O KS atacou até Oleksandr Peresolyak, o activista local que denunciou os casos de corrupção em que está envolvida a liderança da organização.

Tudo isto, na grande maioria das vezes, perante a inacção das forças policiais e o silêncio dos meios de comunicação locais, que evitam criticar a organização provavelmente por medo de represálias. Deixamos três bons apanhados do historial de violência do KS – um publicado pelo Reporting Radicalism, outro pela Open Democracy e outro pelo Movimento Social, uma organização de esquerda ucraniana.

O que defende o Karpatska Sich

O KS professa uma ideologia neo-nazi e utiliza regularmente simbologia associada ao regime nazi e aos movimentos neo-nazis contemporâneos, como as cruzes celtas e figuras como o 14/88 (em que o 14 faz referência às 14 palavras “we must secure the existence of our people and a future for white children” e o 88 à 8ª letra do alfabeto, o H, representando a saudação “Heil Hitler”).

O site do KS afirma o seguinte sobre as suas ideologias e objectivos:

Não permitiremos que o globalismo, o liberalismo, o capitalismo, o esquerdismo, o activismo feminista e LGBT e outras perversões existam e floresçam na nossa terra. O nosso movimento educa novos ucranianos – fortes, justos, pessoas de Verdade, Fé e Honra, desprovidos de complexos provincianos de inferioridade – isto é, uma verdadeira elite nacional.

Fonte: KarpatskaSich.com

Numa publicação no site, a 20 de fevereiro de 2022, encontramos uma formulação, vamos dizer, curiosa, sobre a concepção de “paz” desta gente:

Se queres paz, prepara-te para a guerra. Se és um pacifista e procuras a paz, preenche o formulário e vamos informar-te sobre o próximo treino militar, organizado ou co-organizdo pelo Karpatska Sich.

Fonte: KarpatskaSich.com

E terminamos com um trecho especialmente forte de um texto publicado a 30 de Maio no canal de telegram do KS, dirigido à extrema-direita internacional:

Ukraine-Rus’ is an outpost of Western civilization. We have had an incredible honor of living at the crossroads of civilization and being the first to fight the inexhaustible Asian hordes for already a millennium. Today we are once again holding weapons and doing everything possible to be worthy of our ancestors, and the enemy is showing off its Horde-Bolshevik viscera in all its glory. We do undersatnd that in this war we may become not victors, but radioactive ash. But even then our death will endlessly outweigh the meaningless longevity of your existence in monotonous consumption among the routine of gray cities, in an imitation of the struggle.

[Fonte]

Curioso que não tenham qualquer problema em tornar-se cinzas radioactivas, abraçando de forma leviana a possibilidade de um apocalipse nuclear e sem sinais de querer qualquer tipo de negociação ou paz com essa horde de asiáticos bárbaros que vive na Rússia. Mas, afinal, qual é o mal de uma guerra nuclear, comparada com uma existência sem sentido entre o consumismo monótono e as rotinas de cidades cinzentas?

Continuaremos atentos a este bando de grunhos e à ameaça que representam para toda a Europa quando decidirem regressar aos seus países e pôr em prática os conhecimentos e a experiência acumulada na guerra na Ucrânia, apoiados por redes de contactos internacionais de uma dimensão nunca antes vista.

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