Onda de ataques contra multinacionais em apoio a Gaza~ 16 min

Por F

Desde 18 de Março, com o intensificar dos massacres, do cerco e das infinitas atrocidades cometidas pelo regime sionista, sai de Gaza uma torrente ininterrupta de apelos para que o mundo faça algo para travar a barbárie.

Três dias antes da Greve Global por Gaza, a Federação Geral de Sindicatos de Gaza apelava, numa carta aos sindicatos norte-americanos e «a todos os trabalhadores livres», a «traduzir a solidariedade em acções efectivas além dos comunicados e discursos». Após ano e meio de protestos que não produziram resultados, é mais do que claro que manifestações pacíficas ao fim-de-semana andam a par com os comunicados e discursos em termos de efectividade.

A Greve Global por Gaza, que teve lugar a 7 de Abril e contou com uma ampla participação através do mundo árabe e islâmico, é um bom exemplo de uma dessas “acções efectivas”. Apesar de uma greve de apenas um dia gerar poucos (ou nenhuns) resultados se não estiver integrada num processo de resistência mais amplo, as greves, se levadas a cabo, continuam a ser uma das maiores armas da classe trabalhadora para colocar pressão real sobre as elites económicas e políticas que nos governam. 

Mas há mais, claro.

Do Bangladesh, do Paquistão, de França e da Grécia, chegam nestes dias mais exemplos de como a revolta e a indignação se podem expressar.

Paquistão, Abril de 2025

Se o Império pode atacar hospitais, escolas, edifícios residenciais e jornalistas – não só em Gaza mas também no Líbano e no Iémen –, porque é que os símbolos do imperialismo ocidental não hão-de ser também atacados?

Multinacionais na mira

Desde a Greve Global, que levou levou centenas de milhares de pessoas às ruas do Bangladesh na segunda-feira da semana passada, pelo menos 16 restaurantes e outros estabelecimentos foram atacados por todo o país. Entre as marcas visadas encontram-se a KFC, a Pizza Hut, a Puma e outras marcas ocidentais. 

Grupos de manifestantes também atacaram outdoors e destruíram garrafas de bebidas israelitas, norte-americanas ou de marcas percebidas como cúmplices do genocídio em curso, além de terem arrancado sinais e outras publicidades destas marcas do exterior de vários restaurantes. Mais de 70 pessoas foram detidas em conexão com estes ataques. 

No Paquistão, no mesmo período, pelo menos cinco ataques visaram estabelecimentos da KFC e da Domino’s Pizza em Karachi, Lahore e Mirpur Khas, em protesto contra as acções israelitas e norte-americanas em Gaza. 

Os estabelecimentos foram atacados com pedras, paus e cadeiras – alguns durante manifestações, outros fora dos protestos, por iniciativa de pessoas solidárias em resposta aos apelos à escalada das acções em apoio a Gaza. Num dos ataques, manifestantes partiram as janelas de um KFC e incendiaram parte do edifício.

McDonald’s incendiado em Toulouse

Na madrugada de terça-feira passada, um McDonald’s em construção perto de Toulouse foi totalmente consumido pelas chamas. O ataque foi reclamado em comunicado pelas “Frites Insoumises” (“Batatas-fritas Insubmissas”), um grupo sem actividade prévia conhecida.

A acção foi levada a cabo «em apoio ao povo palestiniano» e em rejeição «dos planos de expansão da empresa» norte-americana em França. Durante o presente ano, a McDonald’s planeia abrir 50 novos franchisings e, assim, «impor a sua presença em todo o território francês para compensar as perdas financeiras em resultado do boicote».

A empresa cúmplice do genocídio tenta compensar as suas perdas voltando-se para o seu pombo favorito, a França, o segundo país com mais restaurantes Mcdonald’s no mundo, com 1.560 restaurantes a mais. A sua nova estratégia consiste em abrir um McDonald’s a menos de 20 minutos de cada habitante (…)

A McDonald’s tem de assumir as consequências da sua cumplicidade com o Estado genocida e supremacista de israel. A sua campanha de desdiabolização apenas serve para realçar a sua culpa. Não podemos permitir que se instalem em todas as aldeias de França para compensar o impacto do boicote massivo e legítimo que estão a sofrer.

É por não sermos livres que o mundo está a arder. E nenhum de nós será livre enquanto a Palestina não o for. (…)

A McDonald’s arderá, a Palestina vencerá.

“Vandalismo inconsequente”

Estes ataques, obviamente ignorados deste lado do mundo, foram apresentados por vários media regionais como meros actos de vandalismo ou terrorismo, e os seus autores descredibilizados.

Episódios como estes nunca serão apresentados como expressões de uma revolta legítima contra a brutalidade do Império – em constante expansão e escalada durante o último ano e meio e, para desespero de muitos, normalizada.

No caso dos ataques no Bangladesh, os manifestantes que atacaram as multinacionais ocidentais foram apresentadas como arruaceiros ignorantes por importantes media indianos como o First Post e o India Today, que afirma que o KFC, a Puma, a Bata, a Domino’s e a Pizza Hut “na realidade, não têm quaisquer ligações à nação judaica”.

Apesar de a Puma ter cancelado o seu patrocínio à Associação de Futebol israelita em 2024, e de a Bata ser uma multinacional checa, a realidade é bem mais complexa. Como explica o New Arab:

Embora não esteja oficialmente na lista de boicote do BDS, a KFC tem enfrentado reacções de activistas pró-palestinianos em muitos países, que acreditam que as operações da marca em Israel contribuem para o conflito. A KFC, propriedade da Yum! Brands, tem enfrentado boicotes em muitas nações árabes e acusações de apoio a Israel devido aos investimentos da Yum! Brands em startups com sede em Israel, mas a empresa afirma que é apolítica e nega apoiar o exército ou o governo israelita.

Enquanto a KFC não está na lista do BDS, a Pizza Hut e a Domino’s estão. Tanto a KFC e a Domino’s como a Pizza Hut e a McDonald’s são multinacionais norte-americanas e operam dezenas de estabelecimentos na Palestina ocupada.

Um dos episódios que mais foi usado para descredibilizar esta escalada da solidariedade com a Palestina – através de ataques a multinacionais ocidentais – foi o ataque a uma sapataria da Bata, uma empresa checa. Em comunicado aos media, a empresa negou as “falsas narrativas” que a associam a israel, garantindo que a Bata “é uma empresa privada, familiar, fundada na República Checa, e sem ligações políticas ao conflito”.

Curioso como a empresa especifica que não tem relações políticas com o conflito – que outras relações poderá ter?

O genocídio é obra do Ocidente colectivo 

Na verdade, a cumplicidade no genocídio está sobejamente entranhada em todas as esferas das nossas sociedades ocidentais – o regime sionista continua a participar nas competições culturais e desportivas europeias, a União Europeia continua a ter um acordo comercial com israel, as universidades ocidentais continuam a ter protocolos com universidades israelitas, os ministérios da saúde também, os estados ocidentais continuam a fazer exercícios militares conjuntos com israel e a fechar contratos com empresas de armamento israelita, as bombas lançadas sobre Gaza e o Líbano são transportadas por território europeu, e por aí fora. 

Até o Estado Espanhol – que é tido como um dos mais “progressistas” (o que quer que isso queira dizer hoje em dia) relativamente à Palestina, e que a reconheceu oficialmente no ano passado – não cortou relações diplomáticas com o regime genocida, não fechou a embaixada israelita e continua a deixar os seus portos e aeroportos serem usados pelos EUA para enviar armamento a israel.

A maioria das multinacionais ocidentais opera em israel, ou tem capital investido em empresas israelitas, ou tem relações comerciais e investimentos em empresas ou bancos directamente implicados no genocídio.

A dificuldade não está em encontrar instituições e empresas que sejam cúmplices, em maior ou menor escala, no genocídio em curso na Faixa de Gaza. A cumplicidade está a toda a nossa volta – difícil é encontrar alguma entidade que não seja, de alguma forma, cúmplice desta barbárie.

Embora deste lado, no centro do Império, as populações estejam em grande parte domesticadas e plenamente integradas nos ilusórios rituais da “democracia”, no Sul Global há ressentimentos profundos no seio das populações relativamente ao Ocidente, precisamente por sentirem na pele, hoje como ao longo da História, as políticas imperialistas e neo-coloniais impostas pela Europa e pelos EUA.

As imagens horríveis a que o mundo assiste há mais de um ano e meio só agravam esses ressentimentos, que por vezes acabam por se expressar de maneiras menos… cívicas. Só é estranho que tenha tardado tanto.

Atenas: ataque à bomba contra a Hellenic Train

Esta sexta-feira, os escritórios da empresa Hellenic Train foram alvo de um ataque à bomba reclamado pelo grupo Autodefesa de Classe Revolucionária, que o dedicou «ao povo palestiniano e à sua heróica resistência». 

Chamadas anónimas a dois meios de comunicação avisaram do ataque com 40 minutos de antecedência. A explosão, registada por uma câmara de CCTV, não causou quaisquer vítimas.

O ataque vem no seguimento de enormes greves e protestos em Janeiro e Fevereiro contra um dos maiores crimes da história recente da Grécia – um “acidente” ferroviário em que morreram 57 pessoas, que teve lugar em Fevereiro de 2023 perto da vila de Tempi. A empresa, vendida em 2017 à ferroviária estatal italiana, nunca foi responsabilizada.

Os comboios operados pela empresa foram comprados apesar do seu duvidoso historial de segurança e de não terem sistemas modernos de combate ao fogo. Os sindicatos vinham alertando repetidamente para a falta de pessoal e de formação, a não implementação de medidas de segurança modernas e a falta de modernização das infraestruturas. O governo grego impediu quaisquer investigações independentes a este “acidente”, escudando a empresa de toda a responsabilidade.

Num longo comunicado publicado no Athens Indymedia, o grupo integra este episódio no que considera ser o «massacre da classe trabalhadora» como resultado da «exploração de classe» e da «busca do lucro máximo pelo capital». Só nos últimos três anos, morreram na Grécia mais de 600 trabalhadores e mil sofreram ferimentos graves em mais de 40 mil “acidentes” de trabalho. Os migrantes vítimas destes “acidentes” muitas vezes nem são contabilizados nas estatísticas oficiais. «Chama-se terrorismo dos patrões.»

As manifestações e greves [de Janeiro e Fevereiro] contribuem para a formação da nossa defesa colectiva como classe e, ao mesmo tempo, ao se realizarem num país com um papel activo na guerra genocida americano-sionista na Palestina, são um acto prático de solidariedade com o heróico povo palestiniano, que, de armas na mão, lidera a luta pela libertação de todo o mundo.

Autodefesa de Classe Revolucionária

O grupo desvenda também as relações da empresa com o genocídio em curso, que à primeira vista podiam não ser óbvias:

Os capitalistas criminosos sem escrúpulos do monopólio estatal italiano Ferrovie Dello Stato são os proprietários da Hellenic Train. (…)

Um monopólio com relações orgânicas com a máquina de guerra da NATO e com o assassino estado sionista de israel, como demonstram, por um lado, os seus negócios com as indústrias militares que abastecem a NATO e, por outro, as suas relações com a empresa de transporte sionista ZIM – uma das principais transportadoras de armas para Israel – bem como com o próprio estado sionista, para o qual efectua numerosos transportes comerciais, razão pela qual mantém escritórios em Tel Aviv. 

Um monopólio com uma longa história de guerra de classes contra o proletariado italiano, que também desencadeou contra-violência armada por parte deste último durante os confrontos revolucionários dos anos 70 em Itália.

Autodefesa de Classe Revolucionária

A Autodefesa de Classe Revolucionária denuncia ainda «um regime fascista que impõe pela força humilhação e submissão social massivas», criticando as práticas autoritárias do estado grego. Neste seu primeiro comunicado, o grupo reivindicou também um ataque contra o Ministério do Trabalho, em Fevereiro de 2024, no qual também foi feito um aviso prévio, não tendo havido vítimas.

Na prática, hoje o governo, o estado, o capital, o judiciário e todo o sistema doméstico de poder dizem com um cinismo sem limites a toda a sociedade: “este é o esquema de funcionamento do sistema em que vivem”. Da mesma forma que os mortos nos campos de trabalho, da mesma forma que os mortos em Pylos, da mesma forma que os mortos nos incêndios e inundações, da mesma forma que os mortos nas esquadras de polícia, da mesma forma que as mulheres maltratadas e assassinadas das redes de tráfico, da mesma forma que o genocídio em Gaza em que o Estado grego participa activamente, os mortos em Tempi são o sacrifício de sangue necessário para que o sistema exista e se reproduza. (…)

[O] que o governo e os seus patrões (nacionais e estrangeiros) têm tentado fazer – desde 26 de janeiro de 2025 e, na verdade, bem antes disso – é impor um regime fascista ao país. Um regime cuidadosamente construído ao longo dos anos através de acções específicas: gestão repressiva e mortal da pandemia, vigilância e escutas telefónicas, terrorismo de Estado e dos patrões, a transformação do país numa vasta base militar dos EUA e a sua aliança com Israel. (…)

Em termos práticos, o dilema que agora somos chamados a enfrentar – um dilema a que a histórica greve geral e insurreição de 28 de Fevereiro em todo o país deram uma resposta igualmente histórica – é claro. É o mesmo dilema, embora com proporções diferentes, que os povos e o proletariado mundial enfrentam quando confrontados com a ameaça da tirania: “Correntes ou armas”. Decididamente, temos de escolher a segunda opção!

Dedicamos estas duas acções ao povo palestiniano e à sua heróica resistência.

Honra eterna a Kyriakos Xymitiris* e a todos aqueles que tombaram na luta rumo à revolução social!

Autodefesa de Classe Revolucionária
*Kyriakos Xymitiris morreu num apartamento de Atenas no ano passado quando uma bomba que preparava explodiu inesperadamente.

Talvez ainda haja esperança

Durante os últimos 20 anos, no Ocidente, houve numerosos momentos em que massas de pessoas perderam as estribeiras, se revoltaram e queimaram bancos, multinacionais, esquadras da polícia e quaisquer alvos que consideravam ser representações do poder responsável por um crime que, para elas, cruzava uma linha vermelha – muitas vezes, o assassinato injusto de alguém.

Aléxandros Grigoropoulos (Atenas, 2008), Mark Duggan (Londres, 2011), Pavlos Fyssas (Atenas, 2013), Nahel Merzouk (Paris, 2023) e Odair Moniz (Lisboa, 2024) são alguns dos seus nomes. Os mártires caídos nesta guerra silenciosa travada pelo Império contra os povos do mundo, mesmo aqui no centro do Império, são demasiados para nomear. E os nossos mártires no coração do Império não deviam ser mais valiosos que qualquer mártir que cai vítima do Império em qualquer parte do mundo.

E ainda assim, ao longo de mais de um ano e meio, os povos do mundo viram dezenas – provavelmente centenas – de milhares de mártires sem nome assassinados injustamente em Gaza e, de alguma maneira, como se pode ver, poucos parecem considerar esta barbárie como uma linha vermelha já cruzada. Um genocídio imposto durante um ano e meio sobre dois milhões de pessoas presas num campo de concentração não parece ser razão suficiente para queimar e estilhaçar este sistema que está a arrastar a Humanidade para a sua sepultura.

Durante este ano e meio, a resistência do Iémen, do Líbano e da Palestine Action têm sido uma luz na mais longa e negra noite que a Humanidade viu em muito tempo, servindo como um bastião de esperança para Gaza e uma fonte de inspiração para muitos em redor do mundo. Agora, vemos que no Paquistão, no Bangladesh, em França e na Grécia, há pessoas que estão dispostas a expressar a sua raiva de formas menos ordeiras, a resistir, a impor um custo aos responsáveis por este pesadelo que o povo de Gaza está a viver e nós estamos a observar. Mesmo que essa resistência também tenha um custo.

Talvez nem tudo esteja perdido.

Gostaste do artigo? Considera subscrever a newsletter. Permite-nos chegar a ti directamente e evitar a censura das redes sociais.

Sigam o nosso trabalho via Facebook, Twitter, Youtube, Instagram ou Telegram; partilhem via os bonitos botões vermelhos abaixo.

Right Menu Icon