Do Madleen à Sumoud: Excepcionalismo Branco, Mimetismo Hegemónico e a Luta por Gaza~ 8 min

Tradução do texto “From Madleen to Sumud: White Exceptionalism, Hegemonic Mimicry, and the Fight for Gaza“, de Majed Abusalama, um palestiniano da diáspora. Por Ana Só.
Sou consumido constantemente por pensamentos sobre Gaza – sobre a minha família e amigos a morrer de fome. O apagão em Gaza é mais que a mera ausência de ligação, é outra forma de morte. Em tempos, a internet forneceu um frágil fio de ligação – uma distracção, e até uma forma de terapia para alguns. Agora, até isso nos foi tirado.
Apenas alguns eleitos têm o privilégio de um cartão e-SIM – os de uma classe com acesso a dispositivos modernos, redes internacionais e condições financeiras para possuir tecnologia tão cara. Este fosso digital é mais uma cruel camada de exclusão.
A Cumplicidade do Egipto e a Luta da Caravana da Resiliência
Viro os meus pensamentos para os activistas Negros e Pessoas de Cor (BPoC) na Caravana da Resiliência [Sumud é a palavra árabe para resiliência], um movimento que está a tentar chegar a Gaza, mas que é bloqueado pelo regime egípcio, que há muito explora os palestinianos. Milhares foram obrigados a pagar mais de 5000 dólares por pessoa para fugir ao genocídio, enquanto outros milhares têm de pagar valores exorbitantes só para que camiões de ajuda possam entrar em Gaza.
A cumplicidade do Egipto não é de agora. O regime isolou Gaza durante anos, até nos períodos em que as forças israelitas não ocupavam o lado palestiniano de Rafah. Hoje, o Egipto continua a negar aos palestinianos o direito de trabalhar, a liberdade de movimento e a dignidade, intensificando a pobreza que deixou centenas de famílias a lutar pela sobrevivência.
Alguns até querem regressar a Gaza, mas encontram obstruído o caminho de volta a casa.
É imperativo pressionar o Egipto, rejeitar as suas desculpas e denunciar o seu papel no genocídio. A Caravana da Resiliência e a Marcha Global para Gaza são acções simbólicas, não ameaças militares. Toda a gente sabe que uns milhares de activistas não podem de forma alguma afectar ou forçar a entrada numa das fronteiras mais militarizadas do mundo – o posto fronteiriço de Rafah.
Como um dos coordenadores da Marcha pela Liberdade de Gaza e de outras delegações para Gaza na sequência da agressão de 2008/2009, testemunhei em primeira mão a repressão implacável imposta aos activistas que lutavam por justiça.
Muitos dos meus amigos e colegas organizadores foram detidos, deportados e impedidos de chegar a Gaza. Alguns conseguiram chegar a El-Arish, apenas para serem repatriados à força – uma sinistra antevisão de algumas das tácticas hoje utilizadas contra a Marcha Global por Gaza.
Não é necessário florear a realidade no que toca a mecanismos de repressão e regimes cúmplices – especialmente quando o próprio Egipto há muito que viola a sua soberania, ao conceder selectivamente autorizações enquanto explora Gaza há décadas. Sob cerco, mover-se exige frequentemente subornos e acordos clandestinos, reforçando um sistema de exploração à custa do sofrimento dos palestinianos.
A Caravana da Resiliência e a Marcha Global para Gaza são actos de desafio, não ameaças militares. Uns milhares de activistas não conseguem romper uma das fronteiras mais militarizadas do mundo – o posto fronteiriço de Rafah.
O verdadeiro teste – tanto individual como colectivamente – é como escalamos a pressão popular no lugar onde estamos e em todos os espaços de influência.
Esta luta não é só por Gaza – embora Gaza tenha iluminado o rumo a seguir –, é pela Palestina enquanto ideia, pela resistência anticolonial e pelo papel que todos temos de desempenhar no desmantelamento da opressão. É uma luta global contra a cumplicidade, o silêncio e a injustiça.
Demonização, Mimetismo Hegemónico e Racismo contra a Caravana
A Caravana da Resiliência é composta por centenas de pessoas comuns da classe trabalhadora do norte de África – pessoas que sacrificaram os seus dias de férias e as suas poupanças em defesa da justiça. O seu objectivo era totalmente pacífico, mas foram parados na fronteira egípcia, demonizados e desumanizados, tanto online como offline, por colaboracionistas do regime e outros que os insultam por “envergonharem o Egipto”. Como se o regime egípcio não fosse culpado de explorar os palestinianos antes de durante o genocídio, infelizmente.
Autoridades egípcias e meios de propaganda, sem qualquer fundamento, rotularam-nos de “jihadistas” ou membros da Irmandade Muçulmana, explorando tensões políticas para deslegitimar o seu apoio à Palestina.
Este mimetismo hegemónico – colonialismo interiorizado – serve como distracção para se perder o foco no genocídio e na causa palestiniana.
Esta táctica alinha-se tanto com os regimes árabes autoritários como com as narrativas ocidentais de extrema-direita, que confundem solidariedade árabe e terrorismo, perpetuando estereótipos orientalistas ao mesmo tempo que se esquivam a responsabilidades. Infelizmente, este colonialismo interiorizado está profundamente enraizado no capitalismo racial que transformou países do Sul Global em escravos modernos do imperialismo ocidental.
A demonização e o silenciamento de activistas dissidentes – no Egipto, no Bahrain ou onde quer que seja – é o mesmo mecanismo de desumanização usado para justificar as intervenções militares ocidentais no Iraque, na Líbia, na Síria, no Sudão e por aí fora. É esse enquadramento que legitimiza repressão, bombardeamentos, invasões e morte em massa, ao mesmo tempo que normaliza a presença genocida do regime sionista e os seus crimes contra os palestinianos e os seus aliados no Iémen, Irão e Líbano.
O Fosso no Activismo Ocidental: Solidariedade Selectiva e Excepcionalismo Branco
Num contraste gritante, muitos activistas ocidentais, em especial os que se focam na iniciativa do Madleen, não visibilizaram a Caravana da Resiliência com igual urgência. Muito mais atenção foi dada à Marcha Global por Gaza, em que estiveram envolvidos centenas de activistas brancos, tendo muitos sido deportados – uma injustiça, por certo, mas uma que pôs a nu um profundo favoritismo racial dentro dos movimentos activistas.
A realidade é que activistas brancos ocidentais recebem mais apoio diplomático e atenção dos media que os ativistas BPoC do norte de África.
Isto reflecte as dinâmicas de poder do activismo global, em que as vozes de participantes brancos têm mais influência, apesar de ambos os movimentos partilharem a mesma urgência. Passaportes, privilégios e apoio institucional ocidentais levam a uma maior visibilidade e reconhecimento, enquanto os ativistas árabes e do norte de África são postos de lado, invisibilizados ou deslegitimados.
A Caravana da Resiliência: Resistência Colectiva, Não um Espectáculo de Celebridades
O objectivo da Caravana da Resiliência não é o reconhecimento individual – é uma missão colectiva para quebrar o cerco a Gaza e colocar o foco no genocídio. Contudo, preconceitos estruturais no seio do activismo, dos media e da organização política continuam a ditar quais movimentos ganham tracção, qual sofrimento é reconhecido e qual resistência é legitimada.
Num momento em que os bombardeamentos se intensificam, o apagão persiste e mais 39 palestinianos foram mortos hoje em centros de distribuição de ajuda, é imperativo perguntar: quão eficaz é cada acção? Que recursos estão a ser desviados do nosso movimento?
A Urgência de Acções Localizadas Contra a Cumplicidade
A nossa luta tem de se estender para além da Palestina, denunciando a cumplicidade de nações como o Egipto, a Jordânia, Marrocos e outros estados do Sul e do Norte Global, cujos governos traíram a vontade dos seus povos de apoiar a autodeterminação palestiniana. O imperialismo ocidental, em especial o papel dos EUA e da Alemanha no legitimar da expansão sionista, continua a ditar políticas e a silenciar a resistência global.
É essencial aumentar a pressão popular a perturbar a cumplicidade nos lugares onde estamos. Muitos movimentos ocidentais não são capazes de reconhecer que os seus países não só são cúmplices, mas também participam activamente no genocídio.
De pequenos estados, como a Finlândia, a Noruega ou a Suíça, a nações que proclamam solidariedade, como a Irlanda, a responsabilidade jaz em organizarmo-nos para além de iniciativas simbólicas e mobilizarmos uma resistência disruptiva e estratégica.
Independentemente da pressão política que as campanhas simbólicas possam gerar, temos de reflectir profundamente e agir ousadamente – para lá do activismo confortável e eventos de angariação de fundos. A prioridade é clara: organizarmo-nos e perturbar a cumplicidade onde quer que ela exista, indo além do activismo performativo para criar uma resistência sistémica real contra o imperialismo e o genocídio.

