A última mensagem de Anas Al-Sharif, a voz de Gaza~ 9 min

Por Francisco Ulrike

Nota: Ao contrário do que noticiámos inicialmente, Musab Al-Sharif não foi assassinado no ataque contra a tenda dos jornalistas da Al Jazeera no Hospital Al-Shifa.

Anas Al-Sharif dispensa apresentações.

Com apenas 28 anos, era um dos jornalistas mais proeminentes de Gaza. Conhecido como “a voz de Gaza” e querido pelo seu povo, Anas Al-Sharif não descansou durante os últimos 22 meses, documentando de forma incansável os crimes da ocupação israelita.

Al-Sharif esteve na linha da frente da batalha contra o esquecimento, veiculando ao mundo as vozes das vítimas do genocídio em curso na Faixa de Gaza – sabendo que isso, muito provavelmente, ia custar-lhe a vida. Como Hossam Shabat, foi acusado de ser um operativo das Brigadas Al-Qassam, e ameaçado directamente pelo porta-voz de língua árabe das IDF, Avichay Adraee.

Horas antes do seu assassinato, publicou um texto em que avisava:

A ocupação agora ameaça abertamente uma invasão [da Cidade] de Gaza em larga escala.

Há 22 meses, a cidade sangra sob bombardeamentos implacáveis por terra, mar e ar. Dezenas de milhares foram mortos e centenas de milhares ficaram feridos.

Se esta loucura não acabar, Gaza será reduzida a ruínas, as vozes do seu povo serão silenciadas, os seus rostos serão apagados — e a história irá lembrar-vos como testemunhas silenciosas de um genocídio que vocês escolheram não impedir.

(…) O silêncio é cumplicidade.

A meio da noite passada, um drone israelita atacou a tenda dos jornalistas da Al-Jazeera Arabic no exterior do Hospital Al-Shifa, assassinando toda a equipa deste canal na Cidade de Gaza. Além de Anas Al-Sharif, outros 4 jornalistas da Al-Jazeera juntaram-se à longa caravana de mártires caídos nesta batalha pela libertação da Palestina.

Eis os seus nomes: Mohammad Qureiqaa (repórter), Ibrahim Zaher (operador de câmara), Moamen Alaywa (operador de câmara) e Mohammad Nofal (fotojornalista).

O ataque assassinou também Mohammed Al-Khaldi, jornalista da plataforma de notícias Sahat.

Segundo um comunicado do Gabinete de Imprensa do Governo de Gaza, o ataque de ontem eleva o número de jornalistas palestinianos assassinados pela ocupação para 238.

A última mensagem de Anas Al-Sharif

O mundo conhece-o como jornalista, mas Anas Al-Sharif era também um pai, um filho e um esposo. Anas deixou para trás dois filhos pequenos, Sham e Salah, e a sua esposa, Bayan. O seu pai havia sido morto num ataque israelita contra a casa da família no campo de refugiados de Jabalia, em Dezembro de 2023. Na altura, apesar das ameaças, Anas recusou-se a abandonar o Norte de Gaza.

No início de Abril, duas semanas após o assassinato de Hossam Shabat, Anas Al-Sharif escreveu a sua mensagem final, encarregando a sua equipa de a publicar após a sua morte.

Este é o meu testamento e a minha mensagem final.

Se estas palavras chegarem até vós, saibam que “israel” conseguiu matar-me e silenciar a minha voz.

Primeiro, que a paz, a misericórdia e as bênçãos de Deus estejam convosco.

Deus sabe que envidei todos os meus esforços e usei toda a minha força para ser um pilar de apoio e uma voz para o meu povo, desde que abri os olhos para a vida nas ruas e becos estreitos do campo de refugiados de Jabalia. A minha esperança era que Deus me concedesse uma vida longa o suficiente para que eu pudesse regressar, com a minha família e entes queridos, à nossa cidade natal na ocupada Asqalan (al-Majdal). Mas a vontade de Deus é suprema e o Seu julgamento é definitivo.

Vivi a dor em todos os seus detalhes e provei o luto e a perda repetidas vezes e, apesar disso, nunca hesitei em transmitir a verdade tal como ela é, sem falsificação ou distorção – para que Deus fosse testemunha perante aqueles que permaneceram em silêncio, aqueles que aceitaram a nossa morte e aqueles que nos sufocaram e cujos corações permaneceram impassíveis diante dos corpos dilacerados das nossas crianças e mulheres, e que nada fizeram para impedir o massacre que o nosso povo enfrentou por mais de um ano e meio.

Confio-vos a Palestina, a jóia da coroa dos muçulmanos e o coração pulsante de todas as pessoas livres deste mundo.

Confio-vos o seu povo, as suas crianças inocentes e injustiçadas, a quem não foi concedido o tempo para sonhar ou viver em segurança e paz. Os seus corpos puros foram esmagados por milhares de toneladas de bombas e mísseis “israelitas”, dilacerados e espalhados pelas paredes.

Exorto-vos a que não deixeis que as correntes vos silenciem, nem que as fronteiras vos restrinjam. Sede as pontes para a libertação da terra e do povo, até que o sol da dignidade e da liberdade nasça sobre a nossa pátria roubada.

Confio-vos a minha família, para que dela cuideis.

Confio-vos a minha amada filha Sham, a luz dos meus olhos, que nunca tive a oportunidade de ver crescer como eu sonhava.

Confio-vos o meu querido filho Salah, que eu desejava apoiar e acompanhar até que ele se tornasse forte o suficiente para suportar o meu fardo e continuar a missão.

Confio-vos a minha amada mãe, cujas orações abençoadas me trouxeram até onde estou, cujas súplicas foram a minha fortaleza, e cuja luz iluminou o meu caminho. Rezo para que Deus lhe dê força e a recompense abundantemente em meu nome.

Confio-vos também a minha companheira de vida, a minha amada esposa, Umm Salah (Bayan), de quem a guerra me separou por muitos e longos dias e meses. E, ainda assim, ela permaneceu fiel à nossa união, firme como o tronco de uma oliveira que não se curva – paciente, confiante em Deus, e carregando a responsabilidade na minha ausência, com toda a sua força e fé.

Exorto-vos a permanecerem ao seu lado, a serem o seu apoio à semelhança de Deus Todo Poderoso.

Se eu morrer, morrerei fiel aos meus princípios. Testemunho perante Deus que estou satisfeito com o Seu decreto, certo de que O encontrarei e confiante de que o que está com Deus é melhor e eterno.

Ó Deus, aceita-me entre os mártires, perdoa os meus pecados passados e futuros, e faz do meu sangue uma luz que ilumine o caminho da liberdade para o meu povo e a minha família.

Perdoa-me se Te desiludi e reza por mim com misericórdia, pois mantive-me fiel à minha promessa e não a alterei nem traí.

Não se esqueçam de Gaza…

E não se esqueçam de mim nas vossas sinceras orações por perdão e aceitação.

Anas Jamal al-Sharif
06.04.2025

Os media ocidentais são cúmplices 

Deste lado do mundo, os media acompanham a trágica notícia do assassinato de 6 jornalistas palestinianos com acusações de que Anas era membro das Al-Qassam – não para expôr o ridículo das referidas acusações, mas para mais uma vez dar cobertura aos crimes dos nazis dos nossos tempos.

Os padrões abjectos estabelecidos por meios como a BBC são repetidos por cá. A RTP, por exemplo, refere-se aos documentos fabricados pelas IDF para acusar Anas Al-Sharif, Hossam Shabat e outros jornalistas de serem “terroristas do Hamas” como “informações dos serviços secretos e documentos encontrados em Gaza [citados] como prova”.

Não há uma única palavra sobre o quão ridículo é afirmar que um jornalista que trabalhava todos os dias perfeitamente identificado – com colete e capacete da imprensa –, munido de um telemóvel sob vigilância constante das unidades de ciber-espionagem israelitas, pode ser responsável pelo lançamento de rockets contra israel.

O jornal alemão Bild foi mais longe e publicou esta manhã uma notícia com a manchete «Terrorista disfarçado de jornalista morto em Gaza». Entretanto, alguém os deve ter avisado de que tinham ido longe demais, e a manchete foi modificada – mas o subtítulo e o tom da notícia permaneceram inalterados.

Os supostos “jornalistas” que assinam estes artigos e reportagens escudam-se atrás de uma pretensa “neutralidade” jornalística ao citar também comunicados da Al-Jazeera e organizações de defesa dos direitos dos jornalistas, mas na verdade são responsáveis por incitar à morte dos seus colegas. Se houver alguma justiça neste mundo, terão o mesmo destino que foi dado aos propagandistas do regime nazi julgados pelo Tribunal de Nuremberga.

O sangue de Anas Al-Sharif está nas mãos de todos nós

Como diz Joana Antunes:

Nós não o protegemos. 

E não interessa a língua em que se fala.
Que se fale em vez de calar, mesmo que tudo o que haja a dizer seja isto.
Nós não fomos capazes de os proteger.

Não fomos capazes de responsabilizar os nossos meios de comunicação pela sua cumplicidade no genocídio em curso. Não fomos capazes de lhes impôr um custo pela cobertura vergonhosa que fizeram da morte de Hossam Shabat. Não demonstrámos, por acções e não por palavras, que não aceitaríamos a continuação dos crimes bárbaros da ocupação contra os nossos colegas em Gaza.

Por tudo isto, o sangue de Anas Al-Sharif, e de todos os jornalistas palestinianos, está nas mãos de todos nós.

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