Saleh Al-Jafarawi, o clã Daghmash e a “guerra civil” em Gaza~ 25 min

Por Francisco Ulrike

Quem acompanha de perto a situação em Gaza não encara com seriedade o “Plano de Paz” de Trump. No entanto, esperava-se que o cessar-fogo agora em vigor proporcionasse pelo menos alguns dias de relativa calma – a calma possível ao fim de dois anos disto –, para a população de Gaza e também para nós, jornalistas, que deste lado do mundo fazemos uma cobertura factual e fidedigna do Holocausto dos nossos tempos.

Porque, sim, podemos estar a milhares de quilómetros de distância, mas custa sempre noticiar o assassinato de mais um colega jornalista – especialmente um que se tornou parte do nosso dia-a-dia.

O jornalista Saleh Al-Jafarawi, que meros dias antes fora carregado aos ombros pelo seu povo enquanto anunciava o acordo de cessar-fogo, foi assassinado no passado domingo, 12 de Outubro, por elementos do clã Daghmash.

Saleh era conhecido pela sua boa disposição e carisma, pela sua determinação em continuar o seu trabalho como jornalista apesar da campanha sionista de incitamento de que foi alvo, e pelo sorriso rasgado que teimava em manter apesar de toda a carnifina que testemunhou. Dois anos de genocídio não quebraram o espírito de Saleh. Apesar de todas as ameaças de morte sionistas, não foi uma bomba ou um sniper israelita que o matou – foram colaboracionistas.

Ao final da tarde do passado domingo, começou a circular a informação de que Saleh teria sido raptado em Sabra, na Cidade de Gaza, onde tinha ido documentar a destruição do bairro após a retirada das forças da ocupação. Horas mais tarde, o Dr. Mohammed Abu Lahia, amigo e confidente de Saleh, publicou na sua conta pessoal um vídeo em que revelou, devastado, os primeiros detalhes do seu assassinato:

Nunca imaginei que um dia me sentiria tão fraco ao chorar a morte do meu amigo, confidente e irmão Saleh Al-Jafarawi, que foi sequestrado, espancado e executado no centro da cidade de Gaza que ele sonhava ver triunfante, de cabeça erguida. Ele faria qualquer coisa para elevar o nome de Gaza, para manter qualquer pessoa, qualquer louco ou qualquer colaboracionista longe de Gaza.

Saleh provou a sua presença com a sua simples câmara, o que levou os lacaios da ocupação a executá-lo no meio da cidade de Gaza.

Dr. Mohammed Abu Lahia

Fontes médicas no Hospital Baptista Al Ahli, onde o seu corpo foi recebido, afirmaram à agência de notícias palestiniana Al Haq que Saleh foi atingido por 7 balas disparadas à queima-roupa.

Na legenda do vídeo que publicou, Abu Lahia revela que Saleh tinha previsto a sua morte às mãos dos colaboracionistas:

Eles traíram-te, tal como me avisaste que o fariam. Um dia disseste: «Se eu não morrer às mãos da ocupação, morrerei às mãos dos colaboracionistas», e foi exactamente isso que aconteceu.

“Guerra civil” em Gaza?

Naquele domingo, no entanto, para a CNN e para muitos outros media do Império, a notícia foi outra: «Polícia do Hamas dispara contra civis.»

Sim, porque agora, subitamente, a CNN preocupa-se com os civis de Gaza.

A realidade? Durante a tarde daquele domingo, as unidades especiais da polícia de Gaza executaram colaboracionistas e lançaram ataques contra vários gangues e clãs que, ao longo do genocídio, colaboraram com a ocupação, lucraram com a fome do seu povo e assassinaram civis e membros da resistência.

Várias fontes afirmam que o rapto e assassinato de Saleh se deu enquanto este cobria os confrontos no bairro de Sabra, outras dizem que foi raptado pelo clã Daghmash como retaliação pelo ataque – no entanto, até à data, não conseguimos apurar se o rapto se deu antes, durante ou após os confrontos.

O enquadramento destes eventos como “ataques contra civis” tinha como objectivo fabricar descontentamento contra o Hamas. No entanto, os gangues apoiados pelo regime sionista cometeram um erro fatal: raptaram, torturaram e executaram um dos mais populares jornalistas de Gaza. 

Quando os detalhes da sua morte foram revelados pela sua família e amigos próximos, a narrativa desmoronou-se. A hipótese de estes gangues alguma vez conquistarem os corações do povo palestiniano em Gaza, se é que existia, desvaneceu-se.


O clã Daghmash

O clã Daghmash é uma família poderosa com presença nos bairros de Sabra e Zaytoun, que estavam sob controlo das forças da ocupação até à sua retirada para trás da linha amarela estabelecida pelo actual acordo de cessar-fogo.

De acordo com o The Palestinian Observer (TPO):

A família Daghmash (…) está ligada à antiga facção Jaysh al-Islam — um grupo salafista-jihadista que outrora jurou lealdade à Al-Qaeda e mais tarde manifestou simpatia pelo ISIS. Os seus combatentes têm um historial de lutas internas, redes de contrabando e confrontos violentos com o Hamas que remonta a 2007.

Embora não haja indícios de envolvimento directo de israel, a hostilidade passada do grupo em relação ao Hamas e os seus ataques recentes a famílias da resistência provocaram indignação generalizada em Gaza.

Além de Saleh, elementos do clã assassinaram recentemente pelo menos três figuras da resistência. Segundo várias fontes palestinianas, como o TPO e a Resistance News Network, dois dias antes do rapto e assassinato de Saleh Al-Jafarawi, elementos do clã Daghmash assassinaram Mohammed Imad Aqel, um combatente da resistência e filho de um comandante mártir das Al Qassam, nas imediações do Hospital Jordaniano. No dia em que Saleh foi morto, Naim Bassem Naim, filho de um dos líderes do Hamas, Bassem Naim, foi ferido durante os confrontos com o clã Daghmash em Sabra, e acabou por sucumbir aos ferimentos na segunda-feira seguinte.

Contudo, convém esclarecer uma nuance importante – na maior parte dos casos, nem todos os elementos da família estão envolvidos nas actividades criminosas de que este ou aquele clã é acusado. Em vários casos, os membros que se associam a este tipo de grupos são publicamente renegados pelas famílias – veja-se o exemplo de Abu Shabab.

No caso dos Daghmash, apesar de certos elementos do clã fazerem o trabalho sujo da ocupação, os anciãos da família negaram-se recentemente a colaborar com o inimigo, e a família foi punida por isso. No final do mês passado, o Shin Bet contactou várias famílias com o objectivo de criar grupos para governar as diferentes áreas da Faixa de Gaza, dando-lhes duas opções: colaboração ou morte. Após a recusa por parte dos anciãos do clã em colaborar com a ocupação, 30 membros da família Daghmash foram assassinados num bombardeamento que atingiu uma casa da família.

Caos fabricado, resposta unificada

O clã Daghmash (ou parte dele) é apenas um entre muitas famílias e milícias contra as quais circulam acusações de execuções, raptos de civis, roubo de ajuda humanitária e subsequente venda a preços exorbitantes. Umas não escondem receber apoio do regime sionista e da Autoridade Palestiniana (AP) de Mahmoud Abbas, como o gangue de Abu Shabab (em Rafah) e a milícia de Hossam Al-Astal (em Khan Younis). Outras, como a Daghmash, preferem manter uma aparência de neutralidade – mas todas jogam um papel no plano de caos fabricado que as forças israelitas deixaram para trás com a sua retirada dos principais centros populacionais da Faixa de Gaza.

O que une todos estes grupos é o ódio ao Hamas – e a falta de princípios, que lhes permite colaborar com os carrascos do seu povo e usar o genocídio para seu próprio proveito. E uma Faixa de Gaza dividida em territórios dominados por diferente milícias e gangues lograria quebrar a união e a resiliência que dois anos de genocídio não conseguiram roubar ao povo palestiniano – e criaria um cenário ao estilo da Somália, o sonho molhado dos sionistas, que legitimaria uma força internacional para “manter a ordem”.

Ao contrário do que a máquina de propaganda ocidental nos quer fazer acreditar, as operações levadas a cabo pelas forças especiais da segurança interna de Gaza contra estas milícias e clãs não são nenhuma “guerra civil”.

Esta narrativa, infelizmente, é papagueada por algumas vozes palestinianas, como o jornalista Motaz Azaiza, que tem uma relação de longa data com Abbas e a AP – mas é rejeitada por quem está no terreno em Gaza e pela maioria da diáspora palestiniana. (um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez e onze exemplos)

Em Gaza, a maioria entende ser necessária esta campanha para punir quem colaborou com o inimigo, enfrentou a resistência e lucrou com a fome do seu povo durante os últimos dois anos. Pensar que uma população vítima de um dos mais bárbaros genocídios da História se poria do lado destes grupos – que servem os interesses da ocupação israelita e dos colaboracionistas da AP de Abbas – é só mais um delírio colonial.

A manutenção da coesão da frente interna é um elemento essencial de qualquer guerra de libertação – Gaza não é excepção, e a sua população sabe-o. Um povo que luta pela sua libertação não pode ser conivente com aqueles que auxiliam o inimigo.

O consenso em torno da necessidade de suprimir – pela força, se necessário – estes grupos atravessa todas as esferas da sociedade de Gaza e da resistência palestiniana.

Para além de um comunicado conjunto das diferentes facções da resistência em Gaza, diferentes forças políticas publicaram comunicados sobre o tema. A Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), por exemplo, afirma:

Os esforços de segurança que estão a ser realizados no terreno reflectem um consenso nacional palestiniano quanto à necessidade de proteger a frente doméstica de todas as tentativas de sabotagem e caos, através das quais a ocupação procura deteriorar a unidade da frente doméstica e espalhar o caos. Isto confirma que a segurança da resistência é parte integrante da segurança do nosso povo e da sua causa, e que perseguir os lacaios da ocupação e aqueles que se desviam da linha nacional se insere no quadro da protecção tanto da resistência como do povo, e da preservação da sua unidade no terreno e politicamente. (…)

Por fim, a Frente afirma que a batalha contra a ocupação se estende ao campo da segurança interna e da consciência popular, uma vez que o inimigo procura desestabilizar a frente doméstica através de agentes e promotores da discórdia. Isto exige uma vigilância constante e uma solidariedade nacional abrangente, a todos os níveis, aliviando o sofrimento do nosso povo e protegendo a frente doméstica de qualquer infiltração interna.

 publicado a 14 de Outubro no site oficial da FPLP

Ao contrário do que mentes mais distraídas possam pensar, a resistência em Gaza não é um bando de terroristas islâmicos sanguinários. Na noite desse domingo, 12 de Outubro, o Ministério do Interior e da Segurança Nacional de Gaza anunciou uma «amnistia geral para todos os indivíduos que se juntaram a estes gangues mas não estiveram envolvidos em assassinatos», dando uma semana aos membros para entregarem as suas armas e «regularizarem a sua situação legal».

Na segunda-feira, a família Al-Majayda anunciou em comunicado que ia entregar todas as suas armas ao Hamas. Duas semanas antes, elementos da família tinham enfrentado as forças de segurança em Khan Younis, num confronto que contou com apoio aéreo israelita e provocou pelo menos 7 mortos nas fileiras da resistência.

No comunicado, a família sublinha: 

A Família Al-Majayda considera que uma arma que não é apontada à ocupação e não é usada na defesa da pátria é uma arma “intencionalmente poluída” e que carregá-la e usá-la em conflitos internos é um crime contra a pátria, a sociedade e a própria família. (…)

A família realça que as autoridades de segurança especializadas devem tomar controlo do processo de entrega de armas imediatamente, com vista a impedir que estas armas ponham em perigo as vidas e a segurança das pessoas.

A família apela a todos os seus filhos para que cumpram a lei e se abstenham de todas as formas de incitamento e extorsão – e afirma que quem quer que ponha em jogo a segurança das pessoas ou perturbe a estabilidade não representa a família e os seus valores, e todas as medidas sociais e tribais serão tomadas.

Outras famílias seguiram o exemplo. A organização que junta as principais famílias da Cidade de Gaza afirmou em comunicado «o total apoio» aos esforços do «Ministério do Interior e das agências de segurança da Faixa de Gaza» para «manter a segurança e restaurar a ordem».

Estes esforços surgem numa fase delicada na sequência do cessar-fogo e exigem uma ampla cooperação popular e nacional para garantir a segurança e a estabilidade da nossa sociedade. (…)

Valorizamos muito a postura das famílias da cidade de Gaza e os esforços das forças de segurança na manutenção da paz civil, e compreendemos a sensibilidade e complexidade da fase que se segue à agressão brutal que o nosso inabalável povo enfrentou nos últimos dois anos. (…)

Em conclusão, afirmamos que Gaza renascerá — forte pela vontade do seu povo e capaz de restaurar a vida, apesar de todas as tentativas da ocupação de semear desordem e instabilidade.

Uma entrevista conduzida pelo canal saudita Al-Hadath – um canal hostil à resistência palestiniana – ao Sheikh Husni al-Mughni oferece uma perspectiva mais humana e tangível da realidade no terreno em Gaza. Sheikh al-Mughni é presidente do Comité Supremo para Assuntos Tribais, a maior assembleia de tribos da Faixa de Gaza, e foi convidado pelo canal para comentar a execução pública de um grupo de colaboracionistas que tivera lugar no dia anterior em Nuseirat.

Desde Nuseirat, al-Mughni defendeu a execução pelo Hamas dos homens acusados de colaborar com israel, afirmando que eram conhecidos por «roubar comboios humanitários» e «matar, pilhar e aterrorizar dezenas de civis». O sheikh assegurou que as tribos estão «de corpo e alma» com o Hamas.

Estas pessoas são rejeitadas por toda a gente – pelo público e pelas tribos. São um grupo perverso e corrupto que cooperou com o inimigo e deve arcar com as consequências. (…)

Durante seis meses, nenhum pacote de ajuda humanitária chegou aos cidadãos comuns por causa deles. Eles roubaram e revenderam os alimentos. São assassinos, criminosos, ladrões — e tinham de ser punidos pelo que fizeram ao seu próprio povo.

Não, aqueles que cometeram esses actos de violência são agentes de israel — pessoas criadas e apoiadas por israel. A polícia do Hamas deu-lhes oportunidades — uma, duas, três — para se renderem. Aqueles que se recusaram e continuaram a espalhar o caos tiveram de ser punidos. O próprio povo exigiu isso.

A entrevistadora do canal saudita, estupefacta, tentou várias abordagens para encontrar alguma clivagem entre os clãs e o Hamas. Quando questionou a ausência de processo legal ou julgamento, al-Mughni respondeu de forma franca:

Minha irmã, por favor, entenda: não há tribunais operacionais, nem polícia, nem poder judiciário neste momento. O que existe é justiça de campo.

Diga-me: quando um menino de 10 anos sai para trazer um pouco de farinha para os seus irmãos porque o seu pai foi martirizado, e alguém o ataca, rouba a farinha e o mata na rua, quem vai responsabilizar esses assassinos? Essas pessoas têm de ser erradicadas. São um elemento corrupto que não pertence à nossa sociedade.

Os sionistas têm sempre desculpa para violar barbaramente toda e qualquer norma legal ou moral do mundo. Mas os palestinianos, para serem respeitados no Ocidente (esse “mundo livre”), têm de se comportar de forma “civilizada” e conceder aos pobrezinhos dos colaboracionistas o direito a serem julgados por um juiz britânico – com uma daquelas perucas coloniais – nomeado por Tony Blair, e a serem defendidos por uma firma de advogados com sede em Washington.

A entrevistadora procura alguma discordância entre as tribos e a resistência, ou alguma consequência ou reacção negativa às execuções – sem sucesso.

Eu não estou a defender o Hamas — estou a dizer a verdade. O Hamas avisou essas pessoas várias vezes, por meio de mediadores e familiares, para se renderem e enfrentarem a justiça. Aqueles que o fizeram foram investigados. Aqueles que resistiram lutaram contra a polícia, levando ao que aconteceu.

Um homem que espanca e mata uma criança de 10 anos para roubar a sua farinha merece ser executado, ou pior do que isso. (…) Eles montaram bloqueios nas estradas, roubaram viajantes, mataram pessoas, roubaram o seu dinheiro — espalharam a corrupção por toda a parte. Se tivesse visto o que eles andavam a fazer, compreenderia.

Nós, as tribos, exigimos a sua execução. Essas pessoas violaram todas as normas, todas as tradições. Enquanto outros morriam sob os escombros, eles saqueavam as casas dos seus vizinhos. Quem poderia aceitar isso?

Transcrição da entrevista na íntegra aqui e aqui

Husni Al-Mughni nasceu em 1941 no bairro de Shuja‘iyya, na Cidade de Gaza. Juntou-se à Fatah em 1982, de que foi um membro activo até sair do movimento em 2005. É crítico dos Acordos de Oslo e fez parte do Comité Supremo de Liderança da Grande Marcha do Retorno em 2018. Mais sobre Husni Al-Mughni aqui.

Um par de dias depois, o Sheikh Husni Al-Mughni reiterou a posição das tribos de Gaza durante uma entrevista à Al Jazeera Mubasher:

As forças de segurança não atacaram inocentes — elas perseguiram os gangues. Esses grupos tinham postos armados em Rafah, Khan Younis, Shuja‘iyya e no norte. Quando a polícia interveio para limpar esses postos, os gangues reagiram e também mataram agentes da polícia.

Se a polícia não tivesse intervindo, as próprias pessoas ter-se-iam vingado — e isso ter-se-ia tornado uma guerra civil. As forças de segurança impediram-no.

O regime sionista passou os últimos dois anos a tentar provocar fracturas dentro da sociedade de Gaza e colocar o povo contra a resistência. Após dois anos de genocídio, parecem estar mais longe do seu objectivo do que nunca.

E, entretanto, os media israelitas já vieram queixar-se de que, durante as operações contra estes gangues e milícias, o Hamas se apoderou de metralhadoras, munições, granadas, dinheiro e dezenas de veículos fornecidos a estes grupos por israel.

A verdade é que, uma semana depois de todas essas notícias estrondosas nos media do Império, já não se ouve falar de “guerra civil” nenhuma.

A última vontade do mártir Saleh Al-Jafarawi: «Nunca abandonem a resistência»

Pouco depois da morte de Saleh Al-Jafarawi, o jornalista Ayman Al Hesi publicou um vídeo que havia gravado em algum momento do genocídio, pedindo a Saleh para deixar registada a sua última vontade. Saleh diz:

A minha [última] vontade? (…)

Apoiem sempre a resistência.
Não abandonem a resistência.

Porque o nosso orgulho e dignidade assentam na resistência. A nossa liberdade está na resistência.

E, se abandonarmos a resistência, mais ninguém os apoiará. Por isso nunca os abandonem. (…)

Façam alguma coisa em vez de ficarem sentados. É tudo.

Horas mais tarde, foi publicada a última mensagem que Saleh deixou escrita:

Em nome de Alá, o Misericordioso, o Compassivo.
Louvado seja Deus, Senhor dos Mundos, que disse:
«E não pensem que aqueles que foram mortos pela causa de Alá estão mortos. Pelo contrário, eles estão vivos com o seu Senhor, recebendo o seu provimento.»

Eu sou Saleh.

Deixo estas palavras, não como uma despedida, mas como uma continuação do caminho que escolhi com total convicção.

Deus sabe que dei tudo o que tinha, todos os meus esforços e toda a minha força, para ser um apoio e uma voz para o meu povo. Passei por todas as formas de dor e opressão; senti a tristeza e a perda de entes queridos uma e outra vez. E, no entanto, nunca hesitei em transmitir a verdade tal como ela é, a verdade que permanecerá para sempre como prova contra aqueles que se mantiveram em silêncio e como um símbolo de honra para aqueles que apoiaram, acompanharam e defenderam o povo mais nobre, digno e generoso, o povo de Gaza. 

Se eu for martirizado, saibam que não parti… Estou agora no Paraíso, com os meus companheiros que me precederam, com Anas, Ismail, e todos os entes queridos que foram fiéis à sua aliança com Deus. 

Peço-vos que se lembrem de mim nas vossas orações, que continuem a jornada depois de mim. Lembrem-se de mim através da caridade contínua e lembrem-se de mim sempre que ouvirem o chamado para a oração ou virem a luz a romper a noite de Gaza.

Exorto-vos a manterem-se firmes na resistência, no caminho que percorremos e na causa em que acreditamos. Pois não conhecemos outro caminho e não encontramos sentido na vida senão através da perseverança nele. 

Confio-vos o meu pai, o amor do meu coração e o meu exemplo de vida, aquele em quem eu me revia e que se revia em mim. Tu estiveste ao meu lado durante as provações da guerra, e peço a Deus que nos encontremos novamente no Paraíso e que fiques satisfeito comigo, coroa da minha cabeça.

Confio-vos o meu irmão, professor e companheiro, Naji.
Ó Naji… Cheguei a Deus antes de saíres da prisão. Sabe que este é o destino que Deus escreveu. A saudade que sinto por ti enche o meu coração, desejava ver-te, abraçar-te, encontrar-te novamente. Mas a promessa de Deus é verdadeira, e o nosso encontro no Paraíso está mais próximo do que pensas. 

Confio-vos a minha mãe…
Ó minha mãe, a vida sem ti não é nada. Tu foste a oração que nunca cessou, a vontade que nunca morreu. Rezei para que Deus te curasse e consolasse. Como sonhei em ver-te viajar para fazer tratamento e voltar sorridente.

Confio-vos os meus irmãos e irmãs, o prazer de Deus e o vosso é o meu objectivo final. Peço a Deus que vos conceda felicidade e vidas tão puras e gentis como os vossos corações, pois sempre tentei ser uma fonte de alegria para vós.

Eu sempre disse:
«Nem a palavra nem a imagem devem cair.»
A palavra é uma garantia, e a imagem é uma mensagem. Levem-nas ao mundo, como nós as levámos.

Não pensem que o meu martírio é o fim, é o início de um longo caminho rumo à liberdade. Sou um mensageiro de uma mensagem que queria que o mundo ouvisse – uma mensagem para um mundo que fecha os olhos e para aqueles que permanecem em silêncio diante da verdade.

Se souberem da minha morte, não chorem por mim. Há muito que desejava este momento e rezei para que Deus mo concedesse. Louvado seja Deus, que me escolheu para aquilo que amo. 

E a todos aqueles que me prejudicaram na vida, através de insultos, calúnias ou mentiras, digo-vos: agora parto para Deus como mártir, se Deus quiser, e perante Ele todas as disputas serão resolvidas. 

Confio-vos a Palestina… a Mesquita de Al-Aqsa…
O meu sonho era chegar ao seu pátio, rezar lá, tocar o seu solo. Se não o conseguir nesta vida, peço a Deus que nos reúna a todos lá no paraíso eterno.

Ó Alá, aceita-me entre os mártires, perdoa os meus pecados passados e futuros e faz do meu sangue uma luz que ilumine o caminho da liberdade para o meu povo.

Perdoem-me se falhei,
e rezem por misericórdia e perdão para mim, pois permaneci fiel à promessa,
inalterado e inabalável.

Que a paz, a misericórdia e as bênçãos de Deus estejam convosco.

O vosso irmão, o mártir, se Deus quiser, Saleh Amer Fouad Al-Jafarawi

12 de Outubro de 2025

Esta é a realidade dos palestinianos

No dia seguinte ao assassinato de Saleh, o seu irmão, Naji Al-Jafarawi, foi libertado dos campos de tortura israelitas como parte da terceira troca de prisioneiros conquistada pela resistência no âmbito da Inundação de Al-Aqsa.

Nesse dia 13 de Outubro de 2025, o pai de Saleh Al-Jafarawi, ao lado do recém-libertado Naji, proclamou:

Ontem despedimo-nos de um mártir e hoje damos as boas-vindas a um prisioneiro libertado.

Esta é a vida de um palestiniano, esta é a realidade de um palestiniano. Estamos no caminho de Deus e em busca da nossa causa justa pelo bem da Palestina e da Mesquita de Al Aqsa.

A realidade dos palestinianos é tudo isto, e é terem a sua terra ocupada por um projecto colonial e supremacista que quer erradicar a sua existência, e é também verem a sua existência sistematicamente apagada no Ocidente – dos media que os resumem a vítimas sem agência, das paredes limpas de pinturas ou cartazes que visibilizem a sua resistência, e das redes sociais onde a censura aperta ao serviço dos sionistas.

Em menos de 24 horas após o seu assassinato às mãos de colaboracionistas, os colaboracionistas da Meta apagaram a conta de instagram de Saleh, que tinha então 4,5 milhões de seguidores – e com ela toda a documentação dos crimes de guerra israelitas que tinha acumulado, bem como incontáveis actos de resistência no quotidiano de um povo que não se rende. E não foi a primeira vez – ao longo dos últimos dois anos, o instagram apagou várias vezes contas de Saleh Al-Jafarawi, numa tentativa vã de silenciar a sua voz.

Jornalistas palestinianos continuam em perigo, mas não se rendem

Num artigo publicado a 14 de Outubro pela Al Jazeera, Eman Murtaja, uma palestiniana de Gaza estudante de jornalismo, reflecte sobre os perigos que os e as jornalistas continuam a enfrentar em Gaza:

O assassinato de Saleh logo após o anúncio do cessar-fogo causou uma onda de choque na comunidade jornalística de Gaza. (…)

No entanto, o seu assassinato é mais do que a perda de mais um brilhante jornalista palestiniano. É também um sinal, um aviso de que os jornalistas de Gaza ainda não estão seguros. Qualquer pessoa que trabalhe hoje em dia em jornalismo ou que, como eu, deseje fazê-lo, compreende agora que o perigo não diminuiu com o cessar-fogo.

O exército israelita pode ter retirado de partes de Gaza, mas a sombra da sua campanha de extermínio daqueles que documentaram o seu genocídio persiste. Agora, a ameaça vem das milícias que a ocupação organizou para continuar a travar guerra contra a população palestiniana após o cessar-fogo.

A mensagem do assassinato de Saleh é clara: qualquer pessoa que continuar a reportar criticamente o que está a acontecer em Gaza, a presença destrutiva contínua de Israel e a traição dos seus aliados no terreno será capturada, torturada e morta.

Os jornalistas, e a população civil em geral, continuarão em perigo enquanto esses colaboracionistas com israel tiverem poder.

Ainda assim, a tentativa de intimidar e atemorizar não funcionará com os profissionais dos media de Gaza. Apesar do assassinato em massa de jornalistas, as pessoas continuam a abraçar essa profissão. Eu mesma já não me sinto segura, mas continuo a não pretender desistir dos meus estudos de comunicação social e da minha ambição de trabalhar na área.

Eman Murtaja em «The assassination of Saleh Aljafarawi is meant to send a dark message»

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