Portugal // Normalização e resistência aos discursos da extrema-direita~ 9 min
Por Duarte Guerreiro e Simone Vieira
A meio de Julho, o proto-partido de ideário fascista Nova Ordem Social, de Mário Machado, anunciou uma conferência da extrema-direita europeia em Lisboa.
Apesar do local da reunião ter sido inicialmente um mistério, foi ainda assim chamada uma manifestação antifascista para o mesmo dia em Lisboa pela Frente Unitária Antifascista. Uma resposta semelhante à dada pela PAFL aquando do último evento público do NOS, em Fevereiro deste ano.
Reunir aliados
A capacidade da FUA para visibilizar a sua manifestação e a luta antifascista foi louvável, tendo em conta que estes eventos tendem a ser auto-contidos à esquerda de rua, desconfiada de participações mais alargadas. Disse-nos Jonathan Ferreira da Costa, coordenador da FUA e do Núcleo Antifascista de Braga:
(…) convidámos todas as organizações que pensávamos estarem relacionadas, de uma forma ou de outra, com esta luta. Começámos a perceber que a petição estava a surtir algum efeito em organizações que normalmente não nos dão ouvidos quando vimos os primeiros artigos a saírem com nomes de representantes partidários.
Sendo o objectivo da petição conseguir uma resposta a nível parlamentar, admitimos que não pensávamos que isso iria forçar os partidos, por exemplo, a mobilizarem-se para esta acção, mas apenas a tomarem posições públicas e seguirem o procedimento previsto para as petições que atingem o número de assinaturas suficientes.
Foi uma boa surpresa, se bem que continuamos atentos à possibilidade de ser apenas uma tentativa de ganhar visibilidade para as próximas eleições. Nas próximas acções, das quais uma reunião nacional da Frente Unitária Antifascista para a qual vão ser convidadas as organizações presentes [na manifestação], vai ser dado um primeiro passo para perceber melhor se realmente houve uma tomada de consciência ou se é apenas calculismo.
Através de pressão mediática e demonstração da existência de um amplo conjunto de organizações interessadas no evento, conseguiu-se arrancar, por vezes a ferros, alguns posicionamentos favoráveis de partidos da esquerda parlamentar que normalmente preferem evitar arruadas fora do seu controlo.
Foi o caso do Bloco de Esquerda “virem-lhes as costas que eles logo se vão embora” que disse que ia estar presente desta vez, e do Partido Comunista Português que, apesar de condenar a conferência, não quis participar no contra-evento, mantendo-se fiel ao seu historial de só participar em eventos controlados pelo seu aparelho. Disse ainda a este propósito Jonathan:
Os sectores que mais nos deram apoio foram os partidos não parlamentares como o MAS, que aliás é o único partido que desde o início sempre apoiou o movimento, ajudou-o a construir-se e participa em cada organização, respeitando a nossa autonomia e a nossa independência.
Também tivemos um forte apoio da comunidade LGBT, dos sectores ligados à luta pela habitação e dos sectores revolucionários, sejam eles anarquistas ou comunistas.
Mas o que mais nos surpreendeu foi o apoio internacional que conseguimos (…), entre os quais dois partidos brasileiros que também estiveram presentes na mobilização.
(…) Acreditamos que esta mobilização, a mais forte na luta antifascista nestes últimos anos, é prova de que o nosso movimento está a fazer o trabalho de forma correta e conseguiu finalmente ultrapassar os preconceitos que se nos colavam à pele até hoje.
Assim, e apesar do dia de sol de Agosto que convidava ao activismo de “assinar a petição e ir para a praia”, a manifestação apresentou-se composta, como se pode ver pelo nosso vídeo.
O governo do Partido Socialista e o aparelho de Estado preferiu assobiar para o lado, como habitual, ignorando mais uma vez a letra morta da Constituição da República Portuguesa.
Artigo 46.º (Liberdade de associação)
(…) 4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
Entretanto, no hotel Altis Sana
O NOS encontrou dificuldades a 9, um dia antes da conferência. Mário Machado publicou a seguinte comunicação do hotel Altis Belém, onde supostamente se realizaria a conferência:
A administração do grupo Altis tomou conhecimento de que a reunião prevista para amanhã será de cariz político e de apoio à extrema direita o que poderá comprometer a tranquilidade dos nossos hóspedes e a própria segurança dos mesmos. Por isso mesmo, lamentamos informar que iremos considerar o mesmo como cancelado.
Machado culpou mão do governo e do Estado “Marxista-Estalinista”. Mas em breve encontrou uma alternativa no hotel Sana. A conferência não encheu a sala, com várias estimativas a apontar para entre 60 a 70 participantes. Contou com a habitual presença do contingente da suástica e caveira.
A Ephemera fez alguns registos da conferência, para quem se sentir dado à auto-flagelação. Podem escutar Mário Machado a citar oficiais das SS e da Guarda de Ferro romena e a denunciar o Partido Nacional Renovador por conter “bastantes africanos, asiáticos”.
O fascismo institucional
De cabeça rapada, tatuado com suásticas, condenado por crimes violentos, com discurso decalcado do pior da Segunda Guerra Mundial e associado a gangues neonazis responsáveis por homicídios, Mário Machado é uma figura que facilmente se presta à caricatura da extrema-direita, tornando-se um símbolo desta em Portugal.
No entanto, a nova extrema-direita ascendente em grupos como o Escudo Identitário vê nele precisamente a imagem do que pretende abolir para poder construir uma nova imagem nacionalista assente em conceitos com provas dadas no estrangeiro. A raça é substituída pela identidade, o determinismo biológico nacional suplantado pelo determinismo cultural étnico.
As conspirações judaico-maçónicas são substituídas pelo marxismo cultural, a vasta conspiração que une a academia e os media para promover a luta feminista, LGBT, imigrante, etc. como quinta coluna para o enfraquecimento dos preciosos fluídos corporais do Estado-nação com vista à sua destruição final pela perversão comunista.
Até aqui, nada de novo, diferentes caminhos para o mesmo destino. O perigo a que o movimento antifascista deve estar atento e que já observámos múltiplas vezes no estrangeiro, recentemente aqui ao lado em Espanha, é que assim que algumas destas ideias começam a obter tracção, são incorporadas pelos partidos dominantes de direita.
Foi o caso do Vox, que longe de ser uma nova força, foi um depurar dos elementos mais abertamente fascistas do Partido Popular numa só força capaz de capturar os votos que se estão a extremar à direita, enquanto ambos os partidos continuam a colaborar estreitamente para fazer avançar os seus desígnios em relação ao aparelho de Estado.
Recentemente, em Portugal, vimos como o CDS-PP e o PSD se uniram para dar voz no Parlamento à luta contra a “ideologia de género”. Certamente que há muito que ainda está por dizer em relação à questão da identidade de género, mas é duvidoso que tal fosse o que preocupasse os nossos caros parlamentares. O mais provável é que viram que o discurso à direita nas redes sociais contra uma nebulosa “ideologia de género”, promovida pelos terríveis marxistas frankfurtianos do Bloco de Esquerda, estava a recolher muitos likes e acharam por bem montar-se nessa pileca.
Se a preocupação dos senhores deputados dos partidos de direita é verdadeiramente a introdução da ideologia nas escolas, há muito que se deviam ter galvanizado contra a disciplina de Educação Moral e Religiosa. O que este discurso obviamente promove é algo semelhante à “Escola sem Partido” da direita brasileira – o reforçar da mais reaccionária ideologia dominante pela ausência de qualquer espaço de contra-narrativa.
Curiosamente, falando de Brasil, da mesma maneira que a extrema-direita além NOS exclui Mário Machado dos “verdadeiros” representantes da extrema-direita, também um fenómeno semelhante de ignorar Machado se podia observar na manifestação antifascista. Certamente que o seu ideário era repudiado, mas os nomes mais comuns nos lábios de todos eram outros: Bolsonaro (de longe), Salvini, Trump, Vox.
Talvez um reconhecimento inconsciente de uma certa performatividade no dia e de que o real inimigo não estava na rua mas sim a entrar nos gabinetes de Estado pelo mundo fora.
E se queremos ser fiéis às nossas intenções antifascistas, não nos podemos nunca esquecer de tal. O antifascismo de rua pode comprar tempo. Mas como usamos esse tempo fará toda a diferença, porque estamos sentados em cima de um cadáver chamado social-democracia, que suficientemente apodrecido pelas crises do capitalismo será sempre a comida do verme fascista.
Será tempo para quê? Na Grécia, o antifascismo de rua ganhou o tempo que a social-democracia precisava para acabar de aplicar a “austeridade de esquerda” do Syriza e tudo voltar ao status quo. Todos os socos em fascistas nos EUA não impediram a eleição de Trump, nem impedem agora a sua crueldade indiferente. O movimento de rua antifascista italiano não deteve Salvini na sua intenção de usar o Mediterrâneo como uma trincheira de cadáveres africanos.
Se queremos mesmo o fim definitivo do fascismo, temos de apontar mais alto, desenterrar o cadáver da social-democracia, queimá-lo e lançar as fundações de algo novo. Até lá, estaremos sempre só a jogar por mais tempo. Usemo-lo para nos organizarmos.