A Montanha Zapatista navega rumo à Europa~ 9 min
Por Filipe Nunes e Francisco Norega. Artigo em colaboração com o Jornal Mapa.
Em Quintana Roo, nas costas mexicanas de Cancún há um veleiro de chapa meio gasta, mas pleno de força e capacidade, baptizado A Montanha e que hoje – a 3 de maio, dia de Santa Cruz – se faz ao mar. O dia de Chan Santa Cruz evoca o nome original da capital de um território maia independente de finais do século XIX e dos indígenas aí sublevados numa revolta esmagada em 1901. Agora, em 2021, daí embarcam a caminho da europa n’A Montanha os insurgentes zapatistas. Os descendentes maias que resistem há cinco séculos e há 26 anos se sublevaram em Chiapas. Mantêm, desde então, uma luta e resistência num território cercado por quartéis e acossado pelos ataques de paramilitares, onde ergueram Municípios Autónomos Rebeldes Zapatistas com formas de governo alternativas nas chamadas Juntas de Bom Governo.
Está previsto que aportem a Vigo, na Galiza, em meados de Junho. Junto com a tripulação do veleiro de bandeira alemã, a tripulação zapatista foi apelidada de Esquadrão 421 por ser composta 4 mulheres, 2 homens e unoa otroa. E ficou decidido que a primeira pessoa zapatista que porá os pés em solo europeu… a «iniciar a invasão… ok, a visita à Europa (…) não será um homem, e tão pouco uma mulher. Será unoa otroa». Marijose, 39 anos, tojolabal da zona fronteiriça da selva. Como diria o defunto Subcomandante Marcos: uma «chapada de luva preta para toda a esquerda heteropatriarcal». Marijose, foi milicianoa, promotoroa de saúde e educação, faz parte deste grupo inicial de 7 zapatistas, que inclui Lupita, 19 anos, Tzotzil dos Altos de Chiapas, coordenadora regional de jovens e administradora local de trabalho colectivo; Carolina, 26 anos, Tzotzil e agora Tzeltal da selva Lacandona, actualmente Comandanta na direcção político-organizativa zapatista; Ximena, 25 anos, Cho’ol do norte de Chiapas, igualmente Comandanta; Yuli, que fará 38 anos em maio, em alto-mar, originalmente Tojolabal, agora Tzeltal da selva Lacandona, promotora de educação, formadora de educação; Bernal, de 57 anos, Tojolabal da zona selva fronteiriça, foi miliciano, professor na escola Zapatista e membro da Junta de Bom Governo; e Felipe, 49 anos, Tzeltal, foi miliciano e responsável local de um Município Autónomo e membro da Junta de Bom Governo.
Há 8 meses atrás, no início de Outubro de 2020, das montanhas de Chiapas no Sudeste mexicano, o Subcomandante Insurgente Moisés do Comité Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) anunciara que em 2021 chegariam à Europa diversas delegações Zapatistas: «sairemos para percorrer o mundo, caminharemos ou navegaremos por terras, mares e céus remotos, em busca não da diferença, não da superioridade, não da afronta, muito menos do perdão e da lástima. Iremos ao encontro daquilo que nos faz iguais». No dia anterior à saída, 2 de Maio, uma delegação zapatista falou perante observadores de direitos humanos, organizações sociais, imprensa nacional e internacional e sociedade civil solidária, assinalando a partida d’A Montanha. Moisés voltou a afirmar o mandato dos povos zapatistas para que esta caravana marítima leve longe o seu pensamento, ou seja, o seu coração – «As/os/oas nossas/os/oas delegadas/os/oas levam um coração grande, não só para abraçar quem no continente europeu se revolta e resiste, mas também para escutar e aprender as suas histórias, geografias, calendários e modos».
Os/as/oas zapatistas do EZLN irão estar em Madrid a 13 de Agosto, data em que se assinalam 500 anos da “conquista” do que é hoje o México, para afirmar algo que têm como muito claro: «Primeiro: Não nos conquistaram. Continuamos em resistência e rebeldia. Segundo: Que não têm por que pedir que os perdoemos. Já chega de jogar com o passado distante para justificar, com demagogia e hipocrisia, os crimes actuais e em curso: o assassinato de lutadores sociais (…) os genocídios escondidos atrás de megaprojectos, concebidos e realizados para contentamento do poderoso – o mesmo que flagela todos os cantos do planeta”.»
A vinda zapatista à Europa não tem sido um processo fácil. Como referem em comunicado, «tem sido tortuoso. Para chegar a este calendário, tivemos que enfrentar objecções, conselhos, desencorajamentos, pedidos de contenção e prudência, francas sabotagens, mentiras, palavrões, relatos detalhados das dificuldades, mexericos e insolências, e uma frase repetida até ao enjoo: “isso que querem fazer é muito difícil, para não dizer impossível” e, claro, dizendo-nos, ordenando-nos, o que deveríamos, ou não, fazer. Tudo isso, deste e do outro lado do oceano». Assim, é certo que a vinda dos/as zapatistas «não será bem vista pela ortodoxia feita vanguarda, que, como deve ser, vai tão à frente das massas que nem a vemos…»
Ao sair dos mares da américa central, a comissão que aportará a Vigo – seguido de dezenas de outros/as/oas zapatistas por avião – fez já chegar uma calorosa aceitação dos convites a 30 geografias do velho continente, como se auto-intitula a europa. São elas Alemanha; Áustria; Bélgica; Bulgária; Catalunha; Sardenha; Chipre; Croácia; Dinamarca; Eslovénia; Estado Espanhol; Finlândia; França; Grécia; Holanda; Hungria; Itália; Luxemburgo; Noruega; País Basco; Polónia; Portugal; Reino Unido; Roménia; Rússia; Sérvia; Suécia; Suíça; Turquia e Ucrânia.
Em Portugal, cresce a vontade e a organização que acolherá a sua passagem. Uma coordenadora surgiu juntando vontades desde os territórios do Alentejo, Lisboa, Coimbra e Porto, sem esquecer outros convites que lhes foram feitos de outras geografias portuguesas. A agenda, a anunciar nos meses em diante após Junho, ainda não se encontra definida e será elaborada com as disponibilidades e com a articulação dos/as Zapatistas. As propostas surgem desde as cidades aos campos e serras. A sul o convite à partilha e discussão de lutas é feita a pensar no ataque da agroindústria sobre o território e o lastro da exploração dos migrantes trabalhadores agrícolas; ou pensando (como em outras regiões do país) em partilhar as experiências de novas comunidades e os problemas das comunidades locais, com a autonomia como pano de fundo. Em Lisboa, Coimbra e no Porto, reiterando a importância das lutas ecológicas e de defesa do território; assim como na partilha das lutas das comunidades urbanas excluídas, com enfoque nas questões raciais e das mulheres; as lutas colectivas pela habitação frente ao avanço da gentrificação; sem esquecer o ir ao encontro e a passagem dos/as zapatistas pelos territórios em luta, como seja a Bajouca, protagonista de uma vitória contra a exploração do gás, ou junto das populações que a norte e no centro se erguem contra a lógica extrativista da mineração. Esse é afinal um fio condutor que em território de Chiapas constitui outra guerra aberta em defesa da dignidade da vida, contra os megaprojectos do “desenvolvimento e do progresso” e pelos quais lutadores sociais têm sido assassinados. Durante os encontros prevêem-se ainda momentos de festa, música e animação, sejam em contextos mais fechados, sejam de forma aberta e participativa.
Em Coimbra, no passado dia 30, cerca de 40 pessoas reuniram-se numa roda de conversa e, no Porto, estão a realizar-se assembleias abertas semanais. O entusiasmo face à caravana zapatista cresce também no resto do continente europeu. Nos últimos dias, centenas de pessoas reuniram-se em dezenas de geografias diferentes, em marchas, concentrações ou outras actividades, para assinalar a partida do Esquadrão 421 e, com ela, o início da Caravana Zapatista. Do lado de cá, hoje, uma campanha coordenada internacionalmente assinala o início da Caravana Zapatista pela Vida com uma compilação de 9 minutos de todas estas acções sob o lema “A Europa de Baixo e à Esquerda Está à Vossa Espera!“
Quando oa compoa Zapatista, Marijose, pisar o solo europeu, dirá – assim nos diz um dos regulares comunicados do EZLN –, em voz solene: «Em nome das mulheres, crianças, homens, anciãos e, naturalmente, outroas Zapatistas, declaro que o nome desta terra, que seus nativos agora chamam de “Europa”, será doravante chamada: SLUMIL K’AJXEMK’OP, que significa “Terra Insubmissa”, ou “Terra que não se resigna, que não desmaia”. E assim será conhecida tanto pelos locais como por estranhos, enquanto haja aqui alguém que não desista, que não se venda e que não ceda».
Por agora sabemos que «nos mares de todos os mundos que no mundo existem, foram vistas montanhas movendo-se sobre a água e, com o rosto negado, mulheres, homens e outroas sobre elas.»