Portugal // 2500km2 à venda por um punhado de lítio~ 12 min
Por Teófilo Fagundes e Francisco Norega
Da abertura da Consulta Pública do Relatório de Avaliação Ambiental Preliminar do Programa de Prospeção e Pesquisa de Lítio às lutas que se avizinham, passando pelas batalhas que este relatório já iniciou. Perante a febre da mineração, o Rural promete um Outono de resistência. Uma colaboração entre a Guilhotina.info e o Jornal MAPA.
A 28 de Setembro a Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) colocava em consulta pública o Relatório de Avaliação Ambiental Preliminar (RAAP) do Programa de Prospeção e Pesquisa de Lítio (PPPLítio) das oito potenciais áreas para lançamento de concurso internacional. O prazo inicialmente dado para esta consulta terminava, neste primeiro anúncio, a 10 de Novembro, uma data que, como veremos, o governo veio posteriormente a alterar.
No relatório são analisadas oito áreas do Norte e Centro do país: Arga (Viana do Castelo), Seixoso-Vieiros (Braga, Porto e Vila Real), Massueime (Guarda), Guarda – Mangualde (Guarda, Viseu, Castelo Branco e Coimbra) e Segura (Castelo Branco).
Impactos? Mas isso interessa?
O relatório acrescenta que «a prospeção e pesquisa poderá ter efeitos na qualidade do ambiente nomeadamente no que respeita ao factor ambiental água», garantindo, no entanto, que a «grande maioria das atividades […] não gera impactes nos recursos hídricos e hidrogeológicos à escala local e regional». Se a «grande maioria» é inócua, o diabo estará, então, na minoria das actividades, que talvez seja, apenas e afinal, uma pequena maioria. Na verdade, este tipo de impactos não são mensuráveis senão a uma escala especulativa. Formular uma frase deste tipo é admiti-lo, sim, mas embrulhando essa admissão numa espécie de garantia de que «vai ficar tudo bem». A especulação é amiga de quem a sabe usar.
Apesar da crescente consciência de que não se trata apenas de lítio e do crescente conhecimento de que a chamada «descarbonização» nada tem de verde, na avaliação que é feita ainda tudo se passa no reino do estado de negação: PPPLítio «constitui uma oportunidade para que a sociedade e a economia evoluam para descarbonização da economia e prossigam a estratégia da transição energética».
Olhar o mapa das oito zonas, tal como ele está nos documentos da DGEG é um convite à criatividade. Em zona «prospeccionável» estão cidades, castelos, supermercados, centros históricos, num desenho a regra e esquadro que faz jus ao carácter colonial que este ataque ao mundo rural representa. Num ápice, abriu-se uma torrente de piadas à volta da quantidade de lítio que se poderia encontrar em farmácias ou hospitais. «Vão esburacar metade da minha casa. Felizmente não é a zona da sala. Sempre posso ver a bola». O próprio relatório demonstra alguma perplexidade ao alertar para a exclusão de áreas de maior intensidade urbana, funcional e demográfica das operações de prospecção.
Humor, estranheza, choque, indignação
As reacções de quem luta contra o plano governamental de fomento mineiro não se ficaram pelo humor. O Movimento SOS Serra d’Arga acrescentou-lhe a «estranheza» de «registar que o estudo ambiental tenha sido colocado em consulta pública apenas dois dias após as eleições autárquicas», aproveitando, como habitualmente o faz, para subir a pressão sobre os novos eleitos: «Desde 2019, quando se formou o Movimento SOS Serra d’Arga, todas as cinco Câmaras Municipais do distrito de Viana do Castelo que têm território integrado naquela zona deram pareceres negativos a todos os pedidos de prospeção ou exploração de lítio e outros minerais», acrescentando «não esperar outra coisa das autarquias senão a renovação dessa posição contrária a qualquer ataque ao território».
Humor, estranheza e, depois, o «choque» e a «indignação» com que o Movimento ContraMineração Beira Serra recebeu a notícia da entrada em consulta pública do RAAP. Também para este movimento, o momento escolhido, logo após o conhecimento dos resultados eleitorais, é revelador «da dissimulação em todo este processo, pelo escamotear do tema durante a campanha eleitoral e assunção de uma permissão ilimitada que tudo justifica, com os resultados obtidos. Concomitantemente, o prazo que é dado para consulta publica irá coincidir com o período de transição nas autarquias e juntas de freguesia, o que dificultará a reflexão e elaboração de pareceres técnicos pelos agentes que mais próximo estão da realidade das zonas em causa. Esta forma de consulta pública, unicamente por via digital, dificulta o acesso a grande parte da população do interior rural».
Humor, estranheza, choque, indignação e um grito de «falácia», um grito contra a insustentabilidade da «visão que conduz a este PPPLítio», que «assenta numa linha de crença num crescimento económico contínuo, extractivismo, consumo excessivo, sobre-utilização de recursos e relação dissociada com a Natureza como mero depósito». Tudo isto e a «extrema preocupação» com o que o Movimento ContraMineração Beira Serra vê «o alargamento das áreas inicialmente previstas para o procedimento concursal neste PPPLítio agora revelado: na área “Massueime”, de 123km2 para 500km2; na área “Guarda-Mangualde”, com o aumento da área E para 497km2 e o surgimento da nova área NW com 445km2, temos uma área total que passou de 1381km2 para 1740,5 km2; na área “Segura” um aumento de 151km2 para 311km2. Isto significa, na região Beira Serra, um total de 2551,5km2 destinados a prospecção e pesquisa, só no âmbito deste PPPLítio».
Ambos os movimentos referidos prometeram reacções mais aprofundadas para breve e, claro a participação no processo de consulta pública, que sabem perdido à partida mas que acreditam servir como mais um palco onde se possa confortavelmente apreciar a peça em que o rei vai nu. O Movimento SOS Serra d’Arga não esperou muito para apontar novas armas a essa nudez, acusando a DGEG de «má-fé» e afirmando que «a consulta pública do lítio desrespeita a lei», uma vez que «as câmaras municipais não foram consultadas na elaboração do Relatório de Avaliação Ambiental Preliminar». Refere ainda que o relatório se baseia no pressuposto de que o decreto-lei 30/2021 de 07 de maio «está em vigor, o que é falso»: «Este decreto-lei, conhecido como “lei das minas”, foi chamado à Assembleia da República por vários deputados para apreciação parlamentar, discussão que ainda não foi agendada». Nesse sentido, enviou um email a todos os grupos parlamentares e a todos os deputados eleitos pelo círculo de Viana do Castelo intando a que exijam «ao Governo e ao Ministério do Ambiente e Acção Climática a imediata suspensão» da consulta pública do RAAP.
Um Outono de combate
Era um Outubro hostil que começava. Por estes dias, António Costa passeava-se por A Toxa, na Galiza, onde defendia que a existência de reservas de lítio nas regiões de fronteira, quer do lado português, quer do lado espanhol, pode ser uma «oportunidade de desenvolvimento». Uma questão a que ele voltará com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, que revelou que este assunto será alvo de discussão na próxima Cimeira Luso-Espanhola, que se realiza a 28 de Outubro, em Trujillo.
No tabuleiro de guerra, o primeiro sinal de vitória – se assim se pode chamar – não foi para o lado do governo. Pressionado, Matos Fernandes, ministro do ambiente, acabou por anunciar o prolongamento do prazo da consulta pública do Relatório de Avaliação Ambiental Preliminar do Programa de Prospecção e Pesquisa do Lítio até 10 de Dezembro. Um sinal que dá ânimo mesmo a quem sabe que se trata, afinal, de um recuo estratégico, alterando o que não faz assim tanta diferença de forma a manter o fundamental: a existência de uma consulta pública que é a antecâmara de um concurso internacional que colocará aquelas zonas em ponto de mira dos grandes negócios.
Poucos dias depois, o mesmo Matos Fernandes voltava a vestir a farda da derrota, anunciando humildemente que «só devemos ir buscar à terra a quantidade mínima de lítio que tivermos de ir buscar». O grande plano de desenvolvimento do interior que António Costa andou a engendrar com o seu homólogo espanhol parece esbarrar agora com a frugalidade do mesmo senhor ministro que, ainda há pouco, não entendia a «implicação» com o lítio. Ou isso, ou, como alguém disse, «passaram a oferecer aguardente ao peru antes de o degolarem».
Aldeia de Barco abre nova vaga de protestos
Abafada pelo Agosto quente no Barroso e, posteriormente, por todo o ruído à volta do lançamento da consulta pública do RAAP, a Argemela, onde a ameaça é tão premente como por terras de Montalegre e Boticas, não podia deixar de aproveitar a indignação crescente para reforçar a sua oposição à iminente exploração de lítio na região. A 10 de Outubro, cerca de 150 pessoas saíram às ruas da aldeia de Barco, dando início a uma nova onda de protestos que este outono promete tomar as ruas do interior, mas também do litoral.
Barco tem feridas recentes infligidas pela exploração mineira. Há cerca de 50 anos, houve perto da aldeia uma exploração mineira de sílica que durou apenas 5 anos. A grande maioria das pessoas tem familiares que morreram de silicose. «Houve inclusivamente contaminação de águas e com isso um surto de febre tifóide em que morreram várias crianças», conta um manifestante. «Temos memória, não nos podemos esquecer disto». Este projecto de mina para a Serra da Argemela fica a apenas 1 km das casas mais próximas.
Os impactos na saúde e na agricultura, a par com a preservação da fauna, da flora e da própria serra, foram as principais preocupações partilhadas ao megafone e em entrevistas. As pessoas vindas de várias povoações no sopé da serra alertaram também para as poeiras dos rebentamentos que contaminariam as águas e os solos, impediriam as pessoas «de abrir as janelas» e matariam a Natureza.
Há, no entanto, algo que inexplicavelmente ainda não provocou nenhum tipo de protesto mais veemente da parte das populações urbanas, especialmente de Lisboa. É que esta exploração mineira está projectada para próximo do rio Zêzere, o rio onde é captada a água que corre pelas torneiras da capital. O lítio é usado como máscara ecológica e verde deste projecto, encobrindo a real intenção de extracção de 15 minerais. Seria muito mais difícil conseguir a aceitação pela opinião pública de uma mina destas dimensões (a área concessionada tem 403 hectares), não houvesse aquela que agora parece ser uma protecção sagrada – o lítio e essa «transição energética» que vai salvar o mundo trocando a frota mundial de automóveis por carros eléctricos, esventrando montanhas e contaminando terra, água e ar.
Isto acontece também com as outras explorações mineiras contempladas neste plano de fomento mineiro, chamado oficialmente «Programa de Prospecção e Pesquisa de Lítio» – encoberto pelo lítio, na verdade pretende abrir uma nova era de extracção de todo o tipo de minérios (inclusive urânio) e, pelo caminho, destruir uma grande parte do interior e contaminar a maior parte das principais bacias hidrográficas. Como explica uma companheira do Movimento Não às Minas – Montalegre, «o que está em causa é a extracção de todos os minerais necessários não só à electrificação mas também à digitalização. Em nenhum pedido de prospecção ou exploração é referido só Lítio, mas vários outros minerais que continuam camuflados no mais “limpo” dos minerais».
Ao virar da esquina
Depois de um Verão Quente de luta contra as minas no Barroso, esta é primeira acção de rua de um outono que promete resistência contra o plano do Governo de vender a maior parte do interior do país a preço de saldo às empresas mineiras. A 1 de Outubro, na Serra d’Arga, realizara-se já um acto simbólico, o hastear das bandeiras «Mulheres à Serra d’Arga» e «Minas Não!» na povoação de Covas, e ouve-se já um burburinho que promete mais manifestações noutros pontos do território. Viana do Castelo já tem data: 23 de Outubro, dia em que vários movimentos do distrito se juntam numa manifestação sob o lema «Minho Unido contra as Minas». O ponto de encontro está marcado para as 10h junto à Pousada da Juventude. «O que pretendemos com esta ação de protesto é mostrar ao Governo que tudo faremos para impedir a concretização deste ataque ao nosso território».