Ucrânia // 8 anos do Massacre de Odessa~ 9 min
Por Francisco Norega
Hoje cumprem-se 8 anos de um dos mais trágicos episódios do período que se seguiu aos protestos do Maidan e ao golpe que depôs Yanukovich (na altura presidente da Ucrânia) com o apoio do Ocidente. Este artigo faz parte de um outro artigo maior sobre a História recente da Ucrânia (de 2013 a 2022), que esperamos publicar em breve. Publicamos esta parte hoje, oito anos depois do dia 2 de Maio de 2014, para assinalar a data em que morreram 48 pessoas, a grande maioria manifestantes anti-Maidan, na cidade de Odessa, uma cidade com uma população russófona significativa.
Este foi o evento mais trágico dos primeiros meses do conflito que assolou o sul e leste da Ucrânia depois da instalação do novo governo em Kiev, com forte participação da extrema-direita e com uma agressiva retórica russofóbica. O conflito entre, por um lado, organizações de extrema-direita e outros grupos apoiantes do Maidan e, por outro, manifestantes anti-Maidan, ficou para sempre marcado a ferro e fogo na história da cidade de Odessa.
Vale a pena assinalar que, ao contrário do que acontecia nesta altura a mais de 600km de distância nas províncias de Donetsk e Lugansk, que viviam as primeiras semanas de conflito militar entre grupos separatistas e o exército ucraniano, na cidade de Odessa não existia nenhum tipo de conflito armado.
2 de Maio de 2014
A violência que marcou este dia começou durante a tarde. O centro de Odessa tinha sido ocupado por uma manifestação a favor de uma Ucrânia unida. A convocatória aproveitou a visita de grupos de ultras à cidade para um jogo de futebol que estava agendado para o final do dia. Nessa manifestação participaram também membros do Sector Direito, das forças de auto-defesa do Maidan e, claro, pessoas que não eram de nenhum destes grupos.
Os confrontos terão começado quando manifestantes anti-Maidan atacaram a manifestação. Embora a larga maioria dos manifestantes de ambos os lados estivesse desarmada, foram usadas armas de fogo por ambos os lados, e o caos acabou por espalhar-se pelas zonas circundantes. Seis pessoas morreram: 2 manifestantes pró-Maidan e 4 anti-Maidan.
Algumas horas depois, membros de organizações do Maidan e de extrema-direita atacaram, destruíram e incendiaram um acampamento anti-Maidan. Os manifestantes, que ocupavam aquela praça há semanas, procuraram refúgio na Casa dos Sindicatos, a poucos metros do acampamento, que foi de seguida incendiada pelos fascistas. Testemunhas afirmam que aqueles que saltaram do edifício em chamas e sobreviveram foram espancados por membros do Sector Direito. A inacção da polícia e a demora dos bombeiros contribuíram para o desfecho trágico destes eventos.
Na Casa dos Sindicatos de Odessa morreram 42 pessoas, todas elas manifestantes anti-Maidan, a maior parte carbonizada, asfixiada ou espancada depois de se atirarem das janelas para fugir das chamas, ou depois de sucumbir aos ferimentos no hospital. Destas, dezasseis tinham mais de 50 anos (a mais velha tinha 70 anos) e o mais novo tinha apenas 17 anos de idade. [1] Todos os mortos eram residentes na cidade ou província de Odessa, excepto dois, residentes de províncias vizinhas. [1]
Na altura, a tragédia foi aplaudida pelo Sector Direito (“uma página luminosa na nossa história nacional” [1]), o Svoboda (“Que os demónios ardam no inferno (…) Bravo!” [1]) e pelo líder local da Força de Auto-Defesa do Maidan (“Os apoiantes do Maidan defenderam a sua cidade e impediram o colapso do estado (…) 48 mortos e mais de 200 feridos foi um preço aceitável para o conseguir” [1]).
Há hoje quem se atreva a dizer que este episódio é uma invenção de Putin, que eram provocadores russos ou até que foram os próprios manifestantes anti-Maidan a pegar fogo ao edifício. Existem vários artigos sobre os eventos desse dia [1, 2, 3, 4] e filmagens mostram inúmeros cocktails molotov a ser atirados contra a Casa dos Sindicatos a partir da multidão que a rodeava. Tirem as vossas próprias conclusões.
A inacção deliberada das autoridades
Segundo um relatório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (OHCHR), a inacção das autoridades locais contribuiu para o desfecho deste massacre:
Inacção deliberada face à violência, má preparação ou negligência da parte de várias autoridades contribuíram para este número de vítimas. Primeiro, a polícia não interveio para prevenir a violência (…) Depois, os bombeiros, localizados muito perto da Casa dos Sindicatos onde muitos manifestantes morreram asfixiados, receberam chamadas repetidas a pedir ajuda mas responderam com um atraso fatal de 45 minutos.
Na altura, este massacre foi condenado pelo Parlamento Europeu, mas tal não impediu que a UE continuasse a apoiar os governos pós-Maidan, que nada fizeram para julgar os assassinos. Até hoje, ninguém foi condenado.
O clima de impunidade da extrema-direita
O caso do Massacre de Odessa é um bom exemplo de como a extrema-direita goza de impunidade quase total desde 2014, enquanto membros de organizações de esquerda e participantes de protestos contra o Maidan e o novo governo sofrem perseguições judiciais.
O Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (OHCHR) publicou, em Março de 2016, um relatório que se debruça sobre os incidentes em Odessa e a responsabilização criminal dos assassinos. Ou, aliás, a falta dela:
26. Apesar de ambos os grupos “pró-unidade” e “pró-federalismo” terem tido um papel na escalada de violência, os processos criminais subsequentes por hooliganismo ou desordem pública parecem ter sido iniciados de maneira parcial. Só activistas do campo “pró-federalismo” foram processados até agora, ao mesmo tempo que a maioria das vítimas eram apoiantes do movimento “pró-federalista”. Apesar do grande número de mortes durante a violência de 2 de Maio de 2014, o julgamento do único acusado por homicídio ainda não começou. [O julgamento] é sistematicamente transferido de um tribunal para outro em Odessa. Juízes têm recusado julgar o arguido, alegadamente por causa de pressão exercida pelo campo “pró-unidade”.
27. A OHCHR continua preocupada com, até à data, as investigações à violência terem sido afectadas por falhas institucionais sistemáticas e caracterizadas por irregularidades processuais, o que parece indicar uma falta de vontade de investigar de forma genuína e julgar os responsáveis. Também tem havido interferência política directa e indirecta nas investigações, que consistiu em actos deliberados que provocaram a obstrução e o adiamento dos procedimentos judiciais.
Fonte: OHCHR
Esse tal que era o único manifestante pró-Maidan a enfrentar um processo judicial, era acusado, não pelo incêndio na Casa dos Sindicatos, mas por um dos homicídios durante os confrontos que haviam acontecido horas antes no centro da cidade, em que morreram 6 pessoas. Segundo um outro relatório da OHCHR: «Devido à pressão de outros activistas “pró-unidade”, ele foi libertado dois dias depois de ser detido. (…) [A]pesar das investigações preliminares terem sido concluídas em Agosto de 2015, o julgamento ainda não teve início.» No dia de uma audiência preliminar que acabou por ser adiada novamente, a 10 de Maio de 2016, «a OHCHR observou aproximadamente 50 activistas “pró-unidade”, que se comportaram de forma agressiva contra o painel de juízes, o procurador e um jornalista de um site “pró-federalista”». Outra audiência, em Abril de 2017, terá sido cancelada devido a uma ameaça de bomba.
Ao mesmo tempo que, até hoje, ninguém foi julgado pela morte de 42 pessoas na Casa dos Sindicatos, em 2016 já mais de duas dezenas de manifestantes do campo anti-Maidan tinham sido acusados criminalmente de “participação em motins” no dia 2 de Maio. Este último relatório que referimos diz que a OHCHR «está preocupada com a incapacidade da polícia em prevenir o ataque de activistas “pró-unidade” contra uns poucos arguidos “pró-federalismo” junto ao tribunal a 10 de Março. A escaramuça levou à hospitalização de um dos arguidos.» Pelo menos cinco destes arguidos estiveram detidos durante cerca de 3 anos, até o tribunal os declarar inocentes e ordenar a sua libertação, no dia 17 de Setembro de 2017. Dois deles, de nacionalidade russa, foram novamente detidos no próprio tribunal por agentes do SBU. [1]
Em Maio de 2017, a investigação oficial continuava a não mostrar progressos. Uma mãe que perdeu um filho no massacre de Odessa levou o caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, acusando o estado ucraniano de violar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. [1]
Nestes anos, os episódios de assédio e intimidação contra arguidos, testemunhas, juízes e procuradores, tornaram-se parte do dia-a-dia da Ucrânia, usados constantemente pela extrema-direita para garantir a libertação dos seus membros e impedir a realização de audiências e julgamentos. Dos poucos que chegam a julgamento, a maior parte é ilibado. Os fascistas que ameaçam juízes, opositores e testemunhas também não são julgados.
Um outro relatório da OHCHR, de Fevereiro de 2018, diz: a «OHCHR também está preocupada com a falta de progresso nas investigações de assédio contra e pressão sobre juízes que lidam com casos de desordem massiva por activistas “pró-unidade”, apesar da identificação de alguns alegados perpetradores por vítimas e testemunhas».
Como diz no terceiro relatório da OHCHR que referimos: «Estes casos representam um barómetro de como a Ucrânia consegue [ou não] responsabilizar os criminosos e garantir justiça para as vítimas e as suas famílias.»
Não encontrámos, até hoje, ninguém que tenha sido julgado, condenado e cumprido pena pelos eventos de 2 de Maio de 2014 em Odessa.
Artigo mais aprofundado sobre o período entre 2013 e 2022 em breve.
Mais artigos sobre a Ucrânia aqui.