Resistência e resiliência: o caminho que levou ao cessar-fogo em Gaza~ 14 min
Por F
Este domingo, a entrada em vigor do cessar-fogo permitiu a Gaza, finalmente, respirar – após 470 dias do genocídio mais brutal da História recente. Sem esquecer que o cessar-fogo não significa o fim do genocídio, revisitamos os principais factores que nos trouxeram até este acordo de cessar-fogo, bastante semelhante ao acordo que tinha sido alcançado em Maio do ano passado, que o Hamas aceitou e Netanyahu, à última da hora, rasgou – para de seguida dar início à invasão de Rafah.
1. A resistência de Gaza não pode ser derrotada
As Brigadas Al-Qassam, juntamente com as restantes organizações de resistência armada em Gaza, enfrentaram heroicamente as forças israelitas durante 15 longos meses, em cada cidade, vila e campo de refugiados.
Nem todo o poderio militar do Império nem a monstruosidade genocida do projecto sionista foram capazes de esmagar a resistência em Gaza, que continuou a emergir de cada túnel, beco e monte de escombros para infligir, diariamente, baixas nas fileiras da ocupação.
Os porta-vozes sionistas anunciaram uma e outra vez a derrota da resistência, mas os relatórios e os vídeos de milhares de operações nunca pararam de nos chegar, compilados e analisados ao pormenor todas as semanas pelo Jon Elmer da Electronic Intifada.
O exemplo de Beit Hanoun
Durante o genocídio, Beit Hanoun foi invadido múltiplas vezes pelas forças da ocupação, que afirmaram em diferentes momentos ter derrotado os batalhões do Hamas na cidade. Beit Hanoun localiza-se junto à fronteira nordeste de Gaza, a poucas centenas de metros do território controlado pelo regime sionista.
O início da mais recente incursão israelita, na segunda metade de Dezembro, foi marcado pelo lançamento de rockets palestinianos contra os territórios ocupados a partir de pontos a apenas algumas centenas de metros de forças israelitas. Durante as últimas semanas, uma série de violentas emboscadas provocaram largas dezenas de vítimas entre as forças da ocupação.
A auto-suficiência da resistência em Gaza
A resistência palestiniana travou a mais dura batalha da sua história sem receber qualquer armamento dos seus aliados. Isto só foi possível graças ao desenvolvimento e produção de armamento dentro de Gaza pela própria resistência – desde espingardas a rockets, passando por munições anti-tanque (as famosas Yassin 105), morteiros e drones, entre outras coisas.
Uma das principais fontes de material explosivo para a resistência palestiniana são as munições não-detonadas lançadas pela aviação sionista nas guerras passadas, e são as bombas que não explodiram ao atingir o solo durante os últimos 15 meses que vão alimentar a indústria militar de Gaza daqui em diante. Entre 5% e 10% das bombas lançadas não explodem – sabendo-se que desde Outubro de 2023 foram lançadas sobre Gaza 80 mil toneladas, é só fazer as contas.
2. O povo palestiniano é inquebrável
Durante os últimos 470 dias, o povo palestiniano escreveu com sangue, suor e lágrimas o exemplo mais magnífico de resiliência e perseverança de um povo na História recente da Humanidade. As 80 mil toneladas de bombas, equivalentes a 6 bombas nucleares de Hiroshima, lançadas pelo regime sionista sobre este pequeno território, não lograram quebrar a população de Gaza.
As palavras que saem, nestes dias, da boca de pessoas comuns nas ruas de Gaza são palavras de um povo que emergiu vitorioso do capítulo mais negro da História recente, com uma renovada determinação em reconstruir aquilo que a barbaridade do Império destruiu.
Nas palavras de uma mulher, entrevistada por Fadi Thabet, à entrada do Hospital Mártires de Al-Aqsa após o anúncio oficial do cessar-fogo pelo Qatar:
Vamos remover os escombros, reconstruir e restaurar. Gaza vai voltar, melhor do que nunca. Esta criança, filha de mártir, e a sua irmã, e tantas outras. Há velhos e novos – todos nós vamos reconstruir Gaza. Gaza vai ser ainda mais bonita.
Gaza está dentro de nós. Fomos nós que aguentámos, que perseverámos. Isto não é o feito de ninguém, de nenhum líder, de nenhum funcionário, de nenhum país. Este feito é nosso – meu, dela, deles. O orgulho é nosso pelo que suportámos.
Um homem entrevistado por Bisan Owda, quando lhe foi perguntado qual vai ser a primeira coisa que vai fazer após o início do cessar-fogo, respondeu assim:
O mais rápido possível para o norte! Deixo a minha família aqui e vou! Pego nas minhas muletas, na minha perna ferida e no meu coração que a ocupação despedaçou e vou para o norte. Se a minha casa foi destruída, reconstruirei as vigas com as minhas pestanas, se o meu lar foi destruído, reconstruirei o seu telhado com as minhas pupilas! Se a minha terra foi arrasada, repará-la-ei com o meu corpo.
3. A população de Gaza não abandona a resistência, tal como a resistência não abandona o seu povo
O objectivo do regime sionista de fazer a população de Gaza revoltar-se contra a resistência, impondo um custo monstruoso pela Inundação de Al-Aqsa lançada a 7 de Outubro de 2023, saiu frustrado. Quando muito, o Hamas goza hoje de um apoio popular ainda mais amplo do que há 15 meses.
Prova disso são as imagens que têm emergido desde quarta-feira, em que se podem ver combatentes da resistência, de armas em punho, aclamados nas ruas pelo povo de Gaza neste momento de celebração colectiva.
Um povo que é a materialização suprema, nos nossos tempos, do lema que marcou os movimentos de libertação anticolonial do século XX: “Pátria ou Morte!”
4. A resiliência das estruturas sociais de Gaza
A resiliência da população de Gaza nunca parou de surpreender o mundo. Apesar da imensa destruição, em pleno genocídio, as estruturas da sociedade palestiniana ultrapassaram todos os desafios e obstáculos impostos pela ocupação e continuaram a operar durante estes longos 15 meses.
As aulas, interrompidas pela destruição da infraestrutura de educação, foram retomadas em tendas improvisadas. Hospitais destruídos foram reparados e reabertos.
Todos e todas as trabalhadoras da protecção civil, dos bombeiros, dos abrigos para deslocados, dos centros de distribuição de ajuda humanitária e dos registos civis – assim como todas e todos os médicos, paramédicos, enfermeiros e professores –, que se recusaram a baixar os braços e abandonar o seu povo, tornaram-se um entrave à concretização dos objectivos do regime sionista. Mesmo quando viam os seus colegas, um após outro, tornarem-se mártires.
Kamal Adwan e o Plano do General
O Hospital Kamal Adwan, em Beit Lahia, foi alvo de uma das mais obscenas ofensivas militares, durante a qual as forças da ocupação atacaram repetidamente as instalações e mataram pessoal médico e pacientes. Durante semanas, as equipas médicas e o seu director, Hossam Abu Safiyya, recusaram-se a abandonar o hospital, os seus pacientes e o seu povo no extremo norte da Faixa de Gaza.
Desde o início de Outubro, as forças israelitas tentavam implementar o “Plano do General” no norte de Gaza, com o objectivo de “limpar” esta zona de qualquer presença civil. A determinação destas equipas médicas (e de todas as outras no norte de Gaza) em não abandonar os seus hospitais foi um dos principais factores que, a par com as operações da resistência, impediu o regime sionista de completar a limpeza étnica de Beit Lahia, Beit Hanoun e Jabalia e, assim, abrir caminho para a anexação.
O trabalho heróico dos jornalistas
Foi também a resiliência dos jornalistas de Gaza que permitiu que este genocídio fosse por eles mesmos documentado em detalhe e transmitido ao vivo, diariamente, para milhões de ecrãs por todo o mundo.
Os vídeos de Ansar al-Sharif e outros jornalistas a serem carregados nos ombros por multidões nos últimos dias mostra o que sente o povo de Gaza por estes homens e mulheres corajosas que nunca pararam de registar a realidade à sua volta e de ser a voz do seu povo.
5. Múltiplas frentes de confrontação
Outro factor determinante nesta batalha de 15 meses iniciada pela operação Inundação de Al-Aqsa foi a abertura de múltiplas frentes de confrontação com o regime sionista em solidariedade com Gaza. Num discurso transmitido no domingo, o porta-voz das Brigadas Al-Qassam, Abu Obeida, estendeu agradecimentos às organizações e povos que se mantiveram ao seu lado.
Em primeiro lugar, “aos nossos leais irmãos do Ansar Allah e ao nosso amado povo do Iémen” que “com o seu vigor surpreenderam o mundo”. De seguida, “aos nossos irmãos e camaradas de armas da Resistência Islâmica no Líbano e ao povo livre do Líbano” que “pagaram um preço elevado nesta batalha, da liderança da resistência aos seus soldados e povo”.
Abu Obeida agradeceu ainda “aos nossos irmãos na república islâmica do Irão pelo seu constante e contínuo apoio e participação nesta batalha histórica”, assim como à resistência iraquiana, aos combatentes na Jordânia e “aos povos da nação árabe e islâmica que protestaram e apoiaram a nossa batalha e a nossa causa – e continuam a fazê-lo”. Por fim, saudou “todos os povos livres do mundo que se manifestaram aos milhões em milhares de praças por todo o globo – e continuam a fazê-lo”.
6. Trump e o mito de que israel controla os EUA
É certo que o cessar-fogo é uma conquista, antes de mais, da resistência e do povo de Gaza – se não tivessem resistido firmes durante estes 15 meses, um cessar-fogo como o que este domingo entrou em vigor não teria sido possível. O factor Trump, no entanto, não pode ser ignorado.
Steve Witkoff, o enviado de Trump para o Médio Oriente, passou as últimas semanas em viagens a Doha e Tel Aviv, informando o regime sionista de que Trump queria um cessar-fogo em vigor em Gaza antes da sua tomada de posse. E assim foi.
Esta é a derradeira prova, para quem ainda tinha dúvidas, de que os EUA não são simples vítimas de um regime genocida que, através da influência da AIPAC, controla as instituições em Washington. O facto de o genocídio em Gaza se ter arrastado durante os últimos 15 meses não se deve à “resistência de Netanyahu” em ceder à “pressão” da administração norte-americana, mas precisamente a essa ser a vontade da Casa Branca.
Isto não significa que Trump seja um aliado do povo palestiniano (que não é), mas mostra que o novo presidente norte-americano não está ideologicamente comprometido com o sionismo – afinal, Trump é um narcisista que se compromete apenas com o seu próprio ego. E revela também o quão falacioso era o argumento veículado pelos sectores liberais, mesmo dentro da esquerda europeia, de que Kamala Harris era um mal menor do que Trump – como se houvesse algo pior do que genocídio.
Tudo isto desmascara também os EUA e os seus aliados europeus como não apenas cúmplices, mas perpetradores do genocídio em curso. No final de contas, o regime sionista é apenas uma extensão do Império.
O cessar-fogo não significa o fim do genocídio
O cessar-fogo não traz o fim do genocídio, nem da ocupação, nem do apartheid. Como diz Bisan Owda, “o genocídio está só a desacelerar” – Gaza está destruída, sem infraestruturas básicas, e a população vai continuar durantes muitos meses, se não anos, a sentir os seus efeitos. As doenças que se espalharam continuarão a ceifar vidas, e o sistema de saúde está fortemente debilitado para cuidar dos milhares de feridos e doentes deixados pela barbárie sionista.
Continua a haver ocupação, roubo de terras, morte de pessoas, detenção de pessoas. Uma ocupação de apartheid, que persegue palestinianos em todo o lado, na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, em todo o lado.
Bisan Owda, 19/01/2025
Não esquecer também que a primeira fase do acordo institui apenas uma pausa temporária das hostilidades, de 42 dias, e só a segunda e a terceira fases prevêem estabelecer um cessar-fogo permanente. E nem isso é certo.
Como muitos outros palestinianos, Bisan pede que não se deixe Gaza cair no esquecimento e agradece a solidariedade dos boicotes e protestos por todo o mundo, afirmando que estes devem não só continuar, mas intensificar-se.
A Palestina e Gaza mudaram o mundo para sempre. O mundo mudou com o sangue de Gaza e não deve voltar ao que era antes. (…) Pensem em como podem mudar e continuar a vossa luta, porque a Palestina ainda não é livre. O colonialismo está a comer as nossas terras, os nossos mundos, as nossas vidas.
Bisan Owda, 19/01/2025