O Ocidente tem nas mãos o sangue do jornalista Hossam Shabat~ 8 min

Por F

O jornalista palestiniano Hossam Shabat foi assassinado esta segunda-feira num ataque israelita em Jabalia. Hossam tinha 23 anos e era de Beit Hanoun, tendo desempenhado um papel fundamental na cobertura do brutal cerco ao norte de Gaza iniciado em Outubro passado, quando o regime sionista decidiu implementar o infame “Plano do General”.

A última publicação de Hossam na sua conta pessoal fazia nota da morte do correspondente da Palestine Today Mohammad Mansour que, menos de duas horas antes, tinha sido assassinado no bombardeamento de uma casa em Khan Younis.

Eis a tragédia dos jornalistas em Gaza: documentar um genocídio sabendo que, a qualquer momento, podem ser eles mesmos a estar na manchete da próxima notícia.

«Não deixem o mundo desviar o olhar»

Hossam tinha deixado uma última mensagem à sua equipa, que a publicou pouco depois da sua morte:

Se estiverem a ler isto, significa que fui morto – muito provavelmente de forma intencional – pelas forças de ocupação israelitas. Quando tudo isto começou, eu tinha apenas 21 anos – era um estudante universitário com sonhos como qualquer outra pessoa. Nos últimos 18 meses, dediquei todos os momentos da minha vida ao meu povo. Documentei os horrores no norte de Gaza minuto a minuto, determinado a mostrar ao mundo a verdade que tentaram enterrar. Dormi em passeios, em escolas, em tendas – onde quer que pudesse. Cada dia era uma batalha pela sobrevivência. Passei fome durante meses, mas nunca abandonei o meu povo.

Juro por Deus, cumpri o meu dever de jornalista. Arrisquei tudo para relatar a verdade e agora, finalmente, estou a descansar – algo que não pude fazer nos últimos 18 meses. Fiz tudo isto porque acredito na causa palestiniana. Acredito que esta terra é nossa, e foi a maior honra da minha vida morrer a defendê-la e a servir o seu povo.

Peço-vos agora: não deixem de falar de Gaza. Não deixem o mundo desviar o olhar. Continuem a lutar, continuem a contar as nossas histórias – até que a Palestina seja livre.

Ataque direccionado e preciso

O momento do assassinato de Hossam Shabat foi registado em vídeo por um outro jornalista que se encontrava no local. Como o vídeo mostra, este foi um ataque de precisão, levado a cabo pelas forças sionistas enquanto Hossam se encontrava fora do seu veículo, numa área aberta e na presença de outros jornalistas. O seu carro, a poucos metros de distância, ficou intacto.

Este não foi um bombardeamento indiscriminado sobre edifícios residenciais no qual Hossam foi uma vítima colateral, mas um ataque direccionado especificamente a este que era um dos mais prolíficos jornalistas de Gaza, com o objectivo de intimidar e silenciar os jornalistas que ainda restam após mais de 17 meses de genocídio.

Os criminosos delírios sionistas

Em Outubro de 2024, as forças da ocupação acusaram seis jornalistas palestinianos, todos da Al Jazeera, de ocuparem ou terem ocupado posições importantes no Hamas ou na Jihad Islâmica da Palestina, desde chefes de unidades de propaganda a chefes de divisão de lançamento de rockets. Entre eles estava Hossam Shabat, acusado de ser um sniper no batalhão de Beit Hanoun das Brigadas Al-Qassam.

Estas acusações, para as quais não foi apresentado qualquer tipo de provas, tinham como objectivo descredibilizar estes jornalistas e rotulá-los de “militantes do Hamas”, justificando assim qualquer possível ataque contra eles e pondo estes jornalistas ainda mais em risco do que o normal.

A narrativa israelita quer fazer-nos acreditar que um jornalista palestiniano – que anda sempre sinalizado e de smartphone na mão –, entre a cobertura dos crimes da ocupação, a gestão das suas redes e a busca diária por água e comida, consegue encontrar tempo para missões enquanto sniper das Al-Qassam. Esta ideia é completamente ridícula e só pode ser levada a sério por quem não entende minimamente a realidade no terreno em Gaza – o que, como veremos mais abaixo, é o caso de muitos dos nossos “jornalistas”.

Na altura, Hossam apelou aos meios de comunicação social internacionais que manifestassem a sua solidariedade para com os jornalistas palestinianos, enquanto o escritório de imprensa do governo de Gaza e vários grupos palestinianos exigiram acção imediata para garantir a segurança dos jornalistas que trabalham em Gaza, e para responsabilizar o regime sionista pelos seus crimes.

No entanto, este caso claro de incitação contra jornalistas não mereceu qualquer atenção dos jornalistas ocidentais, que não só ignoram pedidos dos seus colegas palestinianos, como continuam a branquear os crimes do regime sionista – sendo o bombardeamento do Hospital Nasser o exemplo mais recente.

Cumplicidade, da Lusa à Al Jazeera

Hossam, como tantos outros jornalistas palestinianos, apelaram uma e outra vez à acção das associações e sindicatos de jornalistas, da comunidade internacional e dos povos do mundo para pôr fim à impunidade do regime sionista e proteger os jornalistas em Gaza. Essa acção, no entanto, nunca chegou. O silêncio da esmagadora maioria dos ditos “jornalistas” ocidentais é gritante, assim como o é a ausência de acções significativas da parte dos seus sindicatos e associações internacionais.

Mas, como se o silêncio cúmplice não bastasse, muitos são os media ocidentais que vão mais longe e tomam um papel de cúmplices activos deste regime genocida. A Agéncia Lusa, por exemplo, noticiou o assassinato de Hossam com um subtítulo asqueroso, mas infelizmente nada surpreendente: “Israel alega que Hossam Shabat era atirador do Hamas”. A RTP seguiu o mesmo caminho.

Afinal, o que melhor pode um jornalista fazer do que dar palco aos delírios do regime criminoso que assassinou um seu colega?

Pode entender-se, a bem de uma suposta “neutralidade” jornalística que já ninguém finge ter, que um jornalista refira as alegações israelitas, mas teria que informar que não foram apresentadas quaisquer provas, e enquadrá-las na prática comum do regime sionista justificar os seus crimes contra civis com a presença de um “terrorista do Hamas”. Não fazê-lo, e escolher incluir as acusações na manchete, é criminoso.

A Al Jazeera, por sua vez, não papagueou a narrativa israelita sobre a vida secreta do seu jornalista, mas despromoveu-o no momento da sua morte.

Hossam Shabat assinou, em Agosto do ano passado, um contrato com a Al Jazeera Mubasher, a emissão em árabe do canal do Qatar. A partir daí, Hossam foi apresentado como correspondente da Al Jazeera, apenas para, no momento da sua morte, passar a ser um mero “colaborador” – algo que criou desconforto e revolta entre jornalistas palestinianos e dezenas de usuários que criticaram o canal, com vários a responder à publicação dizendo ironicamente que “é a Al Jazeera que é colaboradora [com o regime sionista]”. Como afirmou o colectivo Arabs of Conquest:

A Al Jazeera Mubasher apresentou Hossam como seu correspondente quando isso a beneficiava. Utilizando as suas imagens exclusivas, apresentando as suas reportagens e ampliando a sua cobertura, apenas para o abandonar no momento da sua morte, rotulando-o com frieza de mero “colaborador” para fugir às responsabilidades. 

Beneficiaram da sua coragem e sacrifício durante todo o genocídio, mas quando chegou a altura de honrar esse sacrifício com responsabilidade, preferiram a auto-preservação à justiça.

As nossas mãos estão cheias de sangue

Dos media, dos governos nacionais e das organizações internacionais já nada se espera, mas a verdade é que tampouco nós, os povos do Ocidente, acudimos às preces dos nossos irmãos e irmãs palestinianas para fazermos tudo ao nosso alcance para travar os crimes cometidos contínua e impunemente contra os jornalistas, os médicos, os trabalhadores humanitários – e toda a população de Gaza.

Ao longo dos últimos 17 meses, o regime sionista escalou de forma constante os níveis de barbárie impostos sobre Gaza, com o apoio, a colaboração e a cobertura do Ocidente colectivo. No entanto, os movimentos pró-Palestina, cá e na maior parte do mundo – com excepção da Palestine Action e de algumas iniciativas pontuais –, não escalou a sua solidariedade de maneira alguma, e tudo o que continua a ter para oferecer são petições, vigílias e manifestações pacíficas ao fim-de-semana.

Não há telejornais interrompidos por protestos de jornalistas em directo, não há greves massivas para forçar os nossos governos a isolar o regime sionista, não há motins, não há ministérios nem embaixadas a arder.

Só as tendas, os hospitais, as escolas e os camiões de ajuda humanitária é que ardem – em Gaza, claro.
Com as mortes de Hossam Shabat e Mohammad Mansour, o número de jornalistas assassinados pela ocupação durante o genocídio em curso em Gaza sobe para 208. Os e as jornalistas que seguimos diariamente os e as nossas colegas em Gaza adormecemos todas as noites sem saber qual deles, ao acordarmos, vai ter deixado o nosso mundo um pouco mais vazio.

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