Brasil // Para lá das eleições~ 6 min
Artigo escrito em colaboração com uma companheira do colectivo Aldeia Rexiste.
Por Bruno Garrido
O Brasil encontra-se na ordem do dia. Perante a possível eleição do candidato fascista Jair Bolsonaro, o debate à esquerda centra-se “no mal menor”. Neste cenário, eis algumas notas sobre casos que demonstram a repressão estrutural e racista que o Brasil vive e que tem o aparelho de Estado ao seu serviço. Bolsonaro é apenas a cereja no topo do bolo.
Sendo que o Estado se torna um instrumento político do capitalismo, que estabelece sobre a população uma dominação. “(…) quem fala de Estado, diz necessariamente dominação e, em consequência, escravidão; um Estado sem escravidão, declarada ou disfarçada, é inconcebível (…)” (Bakunin, 1990). O Estado serviu assim para dar uma aparência de legalidade e de direito aos danos causados por alguns à maioria. O constitucionalismo e a democracia tornam-se formas modernas de um suposto consentimento dos governados.
As últimas décadas de Lei Anti-Drogas, Lei das Organizações Criminosas e Lei Anti-Terrorista intensificaram o estado de excepção fortemente repressivo instaurado pelos sucessivos governos no Brasil. Suportado pela narrativa da guerra às drogas e ao crime, não serviu para nada senão atacar, criminalizar, e aprisionar os movimentos sociais, a população negra e das periferias. Por exemplo, se olharmos para os números de aprisionamento da população no Brasil, os dados de 2016 indicam que que mais de 64% das pessoas presas são negras. O documentário “Notícias de uma Guerra Particular” demonstra bem aquilo em que se transformou a política da guerra às drogas no Brasil e quais os seus reais interesses.
Vários casos ganharam notoriedade nacional nos últimos anos enquanto símbolos da luta contra um Estado repressor que não aceita a insurgência popular. Os 6 de Porto Alegre, Rafael Braga ou os 23 do Rio de Janeiro são sinônimo daquilo em que se transformou o Brasil.
Exemplos concretos
“O Estado seja qual for a sua forma ou tendência é por sua própria natureza, conservador, estático, intolerante e contra a mudança (…)” (Goldman, 2015). Através do monopólio da violência – mais intenso, quanto maior for a contestação – o Estado procura perpetuar-se enquanto poder hegemónico.
Rafael Braga é um jovem negro catador de latas da periferia. Tornou-se o primeiro preso político das jornadas de protesto de Junho de 2013. O “crime” de Rafael Braga – transportar garrafas plásticas de Pinho Sol e água sanitária, supostos ingredientes incendiários. Uma prisão envolta em contradições e falsificação de provas, cujos únicos depoimentos são falsificações da Polícia Militar. Sobre este tema, conversámos no nosso podcast com militantes de movimentos sociais do Brasil acerca do seu aprisionamento.
Em Porto Alegre, a perseguição e a criminalização dos protestos levou a que seis activistas do Bloco de Lutas fossem acusados de “formação de associação criminosa armada para prática de dano ao património qualificado, explosão, furto, em concurso material e de pessoas e cometimento de lesão corporal a um polícia militar.” O seu “crime” foi lutar contra o aumento ilegal do transporte público em Porto Alegre.
Os 23 do Rio de Janeiro foram condenados “(…) a penas de 5 a 7 anos em regime fechado, por terem ousado denunciar a máfia do transporte público, a corrupção do governo do Rio de Janeiro e os desmandos do governo Dilma para a realização da Copa do Mundo FIFA.” Outros foram condenados a 30 anos de prisão por homicídio qualificado pela morte do repórter Santiago Andrade, sem qualquer nexo causalidade ou prova de autoria do crime. Falamos ainda de mulheres condenadas e transformadas em “monstros” pela mídia, a qual toma o lugar das provas para gerar o instrumento de sua condenação.
A criminalização dos movimentos sociais iniciados em 2013 tomam inegáveis proporções eleitorais. Por exemplo, entre o primeiro e o segundo turno eleitoral nesse período no Rio de Janeiro, a população encontrava-se encurralada entre dois candidatos que foram significativos em processos de criminalização de movimentos sociais. São eles o juiz Witzel, que ordenou o despejo da Aldeia Maracanã. Realizou diversas declarações em apoio a Bolsonaro durante a sua campanha eleitoral, não escondendo o seu autoritarismo. Junto a este na disputa do segundo turno, com o maior número de votos no primeiro, aparece Eduardo Paes. A sua administração aprovou o despejo de milhares de pessoas para realizar obras a custo inflacionado relativas ao Mundial da FIFA e aos Jogos Olímpicos.
A sociedade brasileira enfrenta agora eleições do medo. Os supostos “partidos de esquerda” escondem a sua adesão cada vez mais profunda ao programas neoliberais e de desenvolvimentismo e apresentam-se como os “salvadores” da sociedade frente à ascensão da extrema direita no país. A ideia de “(…) estado neoliberal é baseada em fortes direitos de propriedade individuais, subjugando as pessoas às regras do direito, e que as instituições do mercado funcionem de forma livre (…)” (Harvey, 2005). Acusam ainda os seus não-eleitores ou aqueles que votam nulo e se abstêm, de terem culpa caso os candidatos fascistas sejam eleitos. Alimentam assim a atmosfera de medo e reflectem a política antiterrorista que apenas pretende manter os interesses da classe dominante.
Seja quem for eleito, temos a certeza de que o fascismo não se encerrará com estes. Os movimentos sociais terão que se organizar para enfrentar tanto um governo desenvolvimentista como um governo fascista, que ameaçará as populações negras quilombolas, indígenas e das favelas. Estas continuarão a enfrentar a violência policial quotidiana.
Bakunin, M. A., & Shatz, M. (1990). Bakunin: Statism and Anarchy. Cambridge University Press.
Goldman, E. (2015). O indivíduo, a sociedade e o estado e outros ensaios. Hedra.
Harvey, David (2005): A Brief History of Neoliberalism. Oxford University Press.