EUA // Uma biografia não bajuladora do legado de G.H.W. Bush~ 8 min
Nunca pedirei desculpa pelos Estados Unidos da América. Não quero saber quais são os factos.
– George H.W. Bush
Por Duarte Guerreiro
Sempre que um destes monstros da História morre de velho e podre, há que ter estômago rijo para ler as hagiografias que são publicadas nos jornais. A maioria delas começam por falar de simpáticos avôzinhos, que deixam um legado de adoração junto da família e amigos. Tudo irrelevante, claro. A importância de figuras como Bush para a História é como figuras de proa e agentes de execução das vastas forças do capital a exercerem a sua vontade sobre o planeta. Se ele gostava muito de cãezinhos e gatinhos não tem lugar junto da pilha de cadáveres que usou para chegar ao topo. Vejamos então alguns dos seus maiores e verdadeiros sucessos.
Começou a sua carreira a servir a indústria do petróleo. Graças aos contactos e dinheiro da sua família, consegue chegar a milionário como dirigente de uma empresa especializada em exploração costeira de petróleo. Daí parte para a política, passando pelo Congresso e Nações Unidas.
Foi director da CIA entre 1976 e 1977, no início da operação Condor. Esta coordenou as forças repressivas das várias ditaduras militares e regimes caciques que então governavam a América Latina com o aparelho militar e de espionagem dos EUA. Estima-se que a operação foi responsável pela prisão de 400 000 pessoas e a morte de 60 000, para não falar da habitual panóplia de raptos, torturas, violações e desaparecimentos. O seu objectivo era purgar toda a oposição de esquerda, fosse ela de linha dura marxista-leninista ou social-democrata de meias medidas e desse modo assegurar a aplicação das medidas neoliberais exigidas pelos EUA. Tal garantiria que a América do Sul permaneceria o continente-plantação de onde o capital americano poderia continuar a extrair recursos e mão-de-obra ao preço da uva mijona.
Em 1988, quando Bush era vice de Reagan, um navio de guerra americano abate um avião de passageiros iraniano com 290 pessoas a bordo. Dois anos depois, com Bush já presidente, o capitão do navio recebe medalhas de mérito. Bush mantêm-se fiel à sua palavra e nunca pede desculpas ao povo iraniano.
Em 1989, já presidente, Bush relançou a fúria intervencionista norte-americana, que estava meio grogue desde o olho negro no Vietname, ao invadir ilegalmente o Panamá para remover o ditador Manuel Noriega. Este era anteriormente um amigalhaço do imperialismo americano, inclusive permitindo a instalação no seu país da infame “Escola das Américas”, que treinava assassinos e torturadores para os regimes de direita na América do Sul. Mas quando Bush precisou de subir a sua taxa de aprovação junto dos eleitores e banir a sua imagem pública de franganote das escolas privadas, os media dos Estados Unidos descobriram subitamente que havia violações dos direitos humanos e tráfico de drogas no Panamá – naturalmente o Estado americano já o sabia, visto que foi o mesmo que incentivou ambos.
Esta campanha permitiu lançar uma guerrinha rápida de agressão – o crime supremo – contra um país pequeno e incapaz de se defender. 500 a 2 000 civis morreram, mas Bush conseguiu dar um ar de durão à sua reputação, tendo portanto valido a pena. Nas suas acções contra o Panamá, Bush foi tanto inteligente como inovador. Inteligente porque levou a cabo uma operação rápida que resultou numa “vitória” fácil, evitando os erros do Vietname. Inovador porque descobriu o novo filão ideológico dos “direitos humanos”, a explorar para justificar intervenções externas, agora que o comunismo estava a receder e já não servia como desculpa.
Em 1990, Bush vê uma oportunidade para repetir a façanha quando o Iraque invade o Kuwait por este estar a quebrar a disciplina de preço da OPEC e a explorar campos de petróleo em território iraquiano. Por uma segunda vez, os Estados Unidos descobrem subitamente que um anterior aliado, apoiado com armas e recursos durante anos na guerra Iraque-Irão em que morreram mais de um milhão de pessoas, era na verdade um monstro irredimível. De facto, Saddam usou armas químicas contra o Irão durante todos os 8 anos do conflito (1980-1988), mas como só estava a matar iranianos, ninguém considerou tal coisa um crime de guerra digno de intervenção. Agora Saddam estava a colocar em risco o baixo preço do barril de petróleo durante uma recessão económica – um crime muito mais sério.
Num episódio que teria eco em posteriores manobras de propaganda contra a Líbia e Síria, a administração Bush usa o “testemunho Nayirah” como umas das justificações para intervir. Nele, uma emocionada suposta enfermeira explica perante a Comissão de Direitos Humanos do Congresso americano como os soldados iraquianos baionetaram bébes em incubadoras no Kuwait para roubar o equipamento. A Amnistia Internacional, nunca querendo perder uma oportunidade para apoiar uma narrativa intervencionista, confirma a história. Mais tarde descobre-se que a enfermeira é na realidade a filha do embaixador do Kuwait nos EUA e que no terreno não há quaisquer provas do suposto infanticídio. Mas a guerra está lançada. Depois de pulverizar os seus inimigos do momento a partir do ar e matar mais uns milhares de pessoas, Bush evita novamente o erro de ocupação que o seu filho cometeria e retira-se em vitória, reforçando a sua fama de durão.
A Guerra do Golfo foi também palco de outra inovação, o “jornalismo embutido”. Apenas jornalistas pré-aprovados podiam acompanhar as tropas e deslocar-se livremente na zona de operações. Os seus relatos passaram a ser censurados pelos militares antes de chegaram a público. Ao mesmo tempo, os militares passaram a controlar muito mais cuidadosamente a informação que disponibilizavam. Garantiam assim que a guerra era contada como queriam que fosse contada, evitando mais um erro cometido no Vietname.
É também durante a sua presidência que Bush continua a arrastar os pés em relação à epidemia do HIV SIDA, recusando-se a disponibilizar recursos para prevenção e tratamento para não desagradar à sua base evangélica. Uma década depois do seu começo, a pandemia já tinha enviado 100 000 americanos para a cova.
Em 1991, o golpe de estado de Boris Yeltsin dissolve a União Soviética contra a vontade da população e com o apoio do amigo Bush. Este torna-se o primeiro presidente a gerir a transição desastrosa da Rússia e ex-repúblicas para um capitalismo selvagem que foi responsável por milhões de mortes prematuras, a maior queda da esperança média de vida alguma vez registada, barrando guerras, epidemias e catástrofes, junto com um exôdo populacional maciço. Bush é portanto um dos responsáveis pela presente Rússia oligárquica e pelo manicómio em que se transformou a Europa do Leste. Este episódio é apresentado nas hagiografias oficiais como a manutenção da estabilidade internacional.
Em 1992, Bush assina o acordo comercial NAFTA entre os EUA, Canadá e México. O seu propósito era derrubar as barreiras fronteiriças ao capital estado-unidense no continente norte-americano, ao mesmo tempo que reforçava o seu controlo sobre questões de propriedade intelectual. Nos EUA, a indústria aproveitou a oportunidade para escapar para o México onde os salários eram mais baixos. 700 000 empregos evaporaram nos EUA. A indústria que não fugiu, usou a ameaça de deslocalização para quebrar sindicatos e reduzir a compensação e condições dos trabalhadores. “Ou aceitas ou vamos para o México.”
No México, o tsunami de produtos de indústrias subsidiadas do outro lado da fronteira foi a ruína dos agricultores e comerciantes locais, deslocalizando milhões de pessoas e iniciando uma fuga para as grandes cidades ou para norte da fronteira, onde estes imigrantes desesperados seriam uma adicional pressão descendente sobre os salários. O NAFTA foi o modelo do que viriam a ser um sem fim de outros acordos comerciais que se sucederiam.
Bush terá agora a sua imagem lavada pelos media. Era um homem sério, dizem. Quando matava gente castanha, gays e eslavos e empobrecia a classe trabalhadora, só o fazia pelas mais nobres virtudes republicanas e humanistas. E, pelo menos, não era o Trump.