Portugal // Greve Feminista – O que é? Qual a sua história?~ 9 min
Artigo de autoria da Assembleia Feminista de Lisboa
O que é uma Greve Feminista
A Greve Feminista é já em si mesma uma subversão. Entendemos por greve “a suspensão coletiva e concertada da prestação de trabalho por iniciativa dos trabalhadores com vista à obtenção de certo interesse ou objetivo comum”. O recurso à greve é uma decisão primordialmente das associações sindicais. Isto supõe que a greve é um mecanismo de luta coletiva reservado às pessoas que participam do trabalho assalariado. Ou seja, do que o sistema capitalista considera trabalho produtivo.
Este mercado de trabalho capitalista não reconhece o valor produtivo e imprescindível do trabalho de cuidados. Este implica todos os aspectos materiais, relacionais e afetivos ligados ao cuidado das pessoas. De fato, o mercado tem ignorado e invisibilizado o trabalho e tempo das pessoas que se responsabilizam pela vida humana e pelos corpos vulneráveis (crianças, idosos, pessoas dependentes, doentes…). Quem faz este trabalho nas sociedades patriarcais são na sua maioria mulheres.
A economia neoclássica institucionaliza desta forma a separação entre o público e o privado, entre a produção mercantil e a reprodução doméstica, situando no centro das nossas sociedades o capital em detrimento da vida.
Esta divisão sexual do trabalho tem permitido historicamente aos homens focarem-se no trabalho assalariado sem os constrangimentos que implica a responsabilização pelo trabalho de cuidados. Aos mesmo tempo, nós mulheres temos sido obrigadas a assumir esse trabalho em nome do afeto e da condição maternal. Um estudo publicado recentemente revela que faltam cinco gerações para que os homens portugueses partilhem em igualdade as tarefas domésticas.
Isto condena cinco gerações de mulheres portuguesas a assumirem duplas e triplas jornadas laborais. Ou seja, somar às horas dedicadas ao trabalho assalariado – sem o qual se veriam numa situação de total vulnerabilidade e dependência – , às horas assumidas de trabalho de cuidados. Que por vezes não só implica o cuidado de crianças, mas também de idosos e outras pessoas dependentes
No âmbito do trabalho assalariado, nós mulheres continuamos a receber em média 16,7% a menos que os homens e encontramo-nos sub-representadas em setores considerados de elite e cargos de decisão. Ao mesmo tempo, constituímos a maioria da força de trabalho nos empregos mais precários e socialmente desprestigiados, vistos como femininos. Em Portugal, representamos 58,2% das pessoas que recebem o salário mínimo. A nível mundial, existe uma feminização da pobreza. Somos também nós quem mais sofre com o assédio moral e sexual no local de trabalho.
Ainda dentro desta realidade, nós mulheres devemos contabilizar mais alguns gastos em termos de tempo e dinheiro para cumprir o papel que a sociedade patriarcal nos impõe: ser objeto de desejo. Ou seja, cumprir com o padrão de beleza definido pelo sistema capitalista patriarcal. Esta lógica força-nos a consumir toda uma série de produtos destinados a quebrar a auto-confiança em nós próprias, a nossa auto-estima e a nossa dignidade. A aceitar e reproduzir a constante pornificação e sexualização dos nossos corpos, que passam a ser normalizados como objeto de consumo.
Por outro lado, assistimos ainda a uma realidade na qual, apesar de existirem cada vez mais mulheres no âmbito académico, acabamos por nos deparar com o “teto de cristal”. Não chegamos a lugares de topo na academia, nem tampouco nos são reconhecidos os nossos contributos científicos, os quais são invisibilizados na narrativa histórica. Somos também as primeiras a abandonar os estudos quando as condições familiares obrigam a que alguém da família assuma o trabalho de cuidados.
Por último, a Greve Feminista é um movimento internacional de luta contra a violência machista, a qual se tem vindo a agravar e tornar cada vez mais mortal como resposta à progressiva emancipação das mulheres por todo o mundo. Vai desde os femicídios em massa na América Latina, passando pelo fundamentalismo religioso em várias sociedades até ao tráfico sexual e à indústria do sexo.
As estruturas patriarcais têm tentado limitar e proibir a liberdade das mulheres através da humilhação, do medo e inclusive do assassínio. Em apenas dois meses foram assassinadas doze mulheres em Portugal. A Justiça, uma das maiores estruturas patriarcais existentes, posiciona-se constantemente contra as vítimas. Desculpa e iliba os agressores e perpetua assim um regime de impunidade alicerçado na misoginia.
Por estes e outros motivos, a Greve Feminista ultrapassa o conceito tradicional de greve. Trabalha sobre quatro pilares interligados: trabalho assalariado, cuidados, estudantil e consumo.
Partindo de cada pilar, analisamos as violências, desigualdades e opressões com base no sexo que se dão a nível estrutural e sistêmico. Lançamos também reivindicações concretas que nos permitam erradicar essa desigualdade estrutural que ainda persiste atualmente.
Considerando a dependência que temos em termos sociais do trabalho assalariado e as mencionadas limitações do conceito de greve, torna-se fulcral contar com o apoio dos sindicatos para garantir a participação das mulheres na greve feminista. É imperativo que seja o próprio movimento feminista, desde as suas bases, a marcar as pautas desta ação coletiva.
De momento, já cinco sindicatos fizeram pré-aviso em 2019: SNEsup – Sindicato Nacional do Ensino Superior; SIEAP – Sindicato das Indústrias, Energia e Águas de Portugal; STSSSS – Sindicato dos Trabalhadores da Saúde, Solidariedade e Segurança Social; STCC – Sindicato dos Trabalhadores de Call Center e o STOP – Sindicato de Todos os Professores. Isto é uma grande conquista para o movimento feminista de bases português, uma vez que não existiu qualquer apoio público à greve nos dois anos anteriores por parte do feminismo institucionalizado. Bem pelo contrário. O que existiu foi rejeição e ridicularização.
A história da Greve Feminista Internacional em Portugal
Em 2017, um grupo de mulheres indignadas com o carácter institucional e conformista do feminismo em Portugal (evidente na marcha do 25 de Novembro, Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, encabeçada por membros do governo) funda a Assembleia Feminista de Lisboa. Esta teve por objetivo organizar um protesto no dia 8 de Março e juntar-se, assim, ao movimento feminista internacional, subscrevendo o manifesto do Paro Internacional de Mujeres / International Women’s Strike.
As principais reivindicações exigiam o fim da violência machista, a igualdade salarial para homens e mulheres no desempenho das mesmas funções, o fim da dupla e tripla jornada de trabalho nas tarefas domésticas, a criação de creches públicas para apoio à parentalidade, o fim do assédio sexual e moral e, por último mas não menos importante, uma maior participação das mulheres na vida pública. A concentração de apoio à Greve Feminista Internacional reuniu cerca de 400 pessoas no Rossio.
Em 2018, a Assembleia Feminista de Lisboa convoca uma vez mais um dia de luta pelos direitos das mulheres. Este contou com a presença de outras organizações e com o apoio do Movimento Alternativa Socialista (MAS). A manifestação reuniu cerca de 2 000 pessoas.
Tal como no ano anterior, este caminho foi trilhado por mulheres corajosas e reivindicativas, organizadas fora do feminismo mainstream e dos partidos políticos instituídos. Tanto em 2017 como em 2018, existiu um total silêncio por parte da comunicação social quanto aos protestos do dia 8 de Março.
Reflectindo sobre o sucesso da Greve Feminista Internacional no Estado espanhol, e considerando a elevada participação em Portugal em 2018 em relação ao ano anterior, a Rede 8 de Março convoca uma reunião. Esta Rede 8 de Março havia-se constituído em 2011, também no âmbito das manifestações do dia 25 de novembro, e esteve ativa até 2017. É nessa reunião que se forma a atual Rede 8 de Março.
Hoje em dia é entendida como a rede nacional de coletivos, partidos e associações, na qual também participa a Assembleia Feminista de Lisboa, que organiza de forma conjunta a Greve Feminista Internacional. No momento da sua constituição, as organizações feministas institucionalizadas e vários partidos afastaram-se uma vez mais desta ação. Consideravam-na apenas simbólica, uma vez que não tinha apoios de sindicatos.
Depois de um longo processo de trabalho, de produção de materiais, divulgação e acções de rua; de reuniões e contatos com sindicatos, escolas e associações, entre outras organizações e grupos; este ano conseguimos obter cinco pré-avisos de greve – um deles da CGTP- IN.
Todo o processo de construção da Greve nas diversas cidades foi sempre feito numa lógica horizontal e de participação aberta. Qualquer pessoa se poderia juntar a qualquer momento a uma das reuniões, contribuir para a discussão e atividades e fazer parte dos canais de comunicação. São todas bem-vindas a juntar-se e a fazer parte do grupo organizador. Este aspecto diferencia pela positiva o movimento feminista e, em particular, a construção da Greve Feminista Internacional de outros movimentos e iniciativas.
Em 2019, a Greve Feminista Internacional em Portugal, organizada pelos cerca de 30 coletivos que constituem a Rede 8 de Março, terá lugar em 13 cidades com manifestações e concentrações: Albufeira, Amarante, Aveiro, Braga, Coimbra, Covilhã, Évora, Fundão, Lisboa, Porto, São Miguel-Ponta Delgada, Vila Real e Viseu.