Apelar ou ser poder na luta pela justiça climática?~ 10 min
Esta é uma versão abreviada e com alguns ajustes da apresentação feita pela Guilhotina no evento CineClima, organizado pelo Climáximo e 2degreesartivism, na Casa Ninja em Lisboa a 23 de Setembro de 2019. É baseada em textos anteriormente publicados por Bruno Garrido e Simone Vieira. O mote foi um vídeo baseado no texto de Derrick Jensen “Forget shorter showers” (“Esqueçam os duches mais curtos”).
A apresentação também contou com a participação do Jornal Mapa, Mídia Ninja, Pólen, PTrevolutionTV e Shifter. O evento teve livestream do PTrevolutionTV durante as apresentações e sessão de perguntas.
Por Duarte Guerreiro
Em Portugal, numa altura em que os incríveis perigos das alterações climáticas e da extracção de recursos já são mais que óbvios, abrem-se concursos para licenças de exploração de petróleo, gás e minérios de uma ponta à outra do país.
Na Guilhotina, focámo-nos na forma como os milhentos mecanismos legais que envolvem estes processos nunca são um impedimento, mas sim uma forma de legitimação destes processos, a que a população é suposto assistir passivamente.
Por exemplo, em relação aos processos de concessão de exploração a empresas de petróleo e gás como a Australis Oil & Gas.
Primeiro, o decreto-lei que regula a Avaliação de Impacte Ambiental diz que sondagem e prospecção com métodos convencionais não precisa de avaliação por ainda não se tratar de exploração, mesmo que exista impacto ambiental. Vemos logo aqui um padrão que se repete na Lei – o minar do seu suposto objectivo por um sem fim de casos de excepção.
Depois, muitos terão ouvido falar das consultas públicas que estes processos envolvem. Este é um instrumento de participação pública não vinculativo, ou seja, independentemente dos resultados, o governo pode fazer o que lhe der na bolha. Também não requer um número mínimo de participantes. Podem ser consultadas um milhão de pessoas, podem ser três. No caso do furo requisitado pela Australis, a maioria dos pareceres foram a favor de uma Avaliação de Impacto Ambiental.
A inutilidade do instrumento é agravada pelo facto de que muitas vezes estas consultas são feitas sem disponibilizar toda a informação pertinente – no caso do furo de Aljubarrota, a consulta foi feita apenas com base no documento providenciado pela empresa interessada no furo, a Australis, que naturalmente tem todo o incentivo para ser tendenciosa.
Tanta informação há, que alguns concelhos abrangidos pelas zonas de exploração só descobriram o que se passava pelas notícias. Não que isso interesse muito, já que todo o processo de decisão é feito ao nível do governo central.
Depois de toda esta fantochada, a Agência Portuguesa do Ambiente tem 20 dias para dizer se vai haver Avaliação ou não. Se não o fizer, está a prospecção autorizada por omissão. Quem cala, consente.
Para o cidadão curioso que queira seguir todo este processo e descobrir a decisão, como o pode fazer? Não pode. Neste caso, só a Australis seria informada via a sua conta no Balcão Único Electrónico, uma plataforma de comunicação entre o Estado e as empresas à qual não temos acesso.
Sobre o caso específico do furo de Aljubarrota pedido pela Australis, já depois dos 20 dias previstos na Lei, foi comunicada uma “não decisão” pela Agência Portuguesa do Ambiente, com requisição de mais documentação à Australis.
O que fazer de tal juízo? Significa que tudo fica suspenso até chegarem os novos documentos? Que a Australis pode avançar apesar disso? Depende de quem se chegar à frente no mundo do Direito para dar a interpretação que o governo desejar, já que nestes momentos a Lei, normalmente rígida, se enche de maleabilidades.
Eis que a própria Australis se oferece para saltar todo este processo e submeter-se a uma Avaliação de Impacto Ambiental, por auto-recriação. Porquê a confiança? Porque entre 2008 e 2017, apenas 5% das avaliações tiveram um parecer negativo. De 765 projectos, a maioria vindos da indústria extractiva, apenas 38 não obtiveram licença.
O que nos diz todo este processo? Que a Lei não é garante de nada.
Quando existe legislação, tem excepções como um queijo suíço tem buracos. Quando contempla participação pública, esta não conta para nada. A palavra e boa fé das empresas é assumida à partida. As populações locais e os seus mecanismos de poder é como se não existissem. As agências do poder central não cumprem as suas próprias regras. O resultado dos processos é entre o Estado e as empresas. Em caso de dúvida, dobra-se a mola à Lei para o lado onde der mais jeito.
E mesmo quando todo o processo é feito como devia, as hipóteses de isso chegar a uma decisão benéfica para a população é minúscula.
A juntar insulto à injúria, o parlamento português também declarou estado de emergência climática, como se vem a tornar moda no Ocidente. O que é tal coisa aos olhos da Lei? Nada. Excepcionalmente, o Ministro do Ambiente disse algo correcto quando comentou que era apenas um gesto simbólico. As declarações não se sobrepõem à restante legislação nem criam obrigatoriedade de determinadas acções.
Mais fundamentalmente, o que tudo isto nos diz é que o futuro do território e os fins para os quais é usado é decidido algures num gabinete em Lisboa ou Bruxelas entre o Estado burguês, as empresas e os altos padres da propriedade privada, as firmas de advogados. Um processo de decisão completamente insulado da população geral, não por acidente ou corrupção, mas por design.
Bem vindos à ditadura do capital.
O desastre do Brumadinho no Brasil, algo sobre o qual também escrevemos, é uma janela para o futuro destes processos extractivistas. Umas quantas empresas engordam e tornam-se “jóias” da nação, como disse o ex-presidente da Vale, e que portanto não podem ser condenadas “por maior que tenha sido a tragédia”.
Façamos agora o contraste.
Nas zonas revolucionárias do Curdistão tenta implementar-se um modelo diferente de sociedade, em que a ecologia é um dos pilares fundamentais.
É um território desgastado pelas necessidades do capital. Durante anos, o governo sírio implementou uma política de agricultura de monocultura do trigo e olival para manter a zona subdesenvolvida e incapaz de resistir. Com a monocultura veio a desflorestação massiva e a proibição de plantação de árvores e vegetais, obrigando as populações locais a migrar e a tornarem-se mão-de-obra barata para a indústria nas cidades.
A par disto, a exploração de energia fóssil junto com má gestão de resíduos levou à destruição de solos e contaminação da água e ar. Os recursos hídricos existentes são desviados da região, tanto pelo Estado sírio como pelo turco.
Desde o recuar do Estado sírio devido à guerra, os comités regionais que agora governam o território, apesar da guerra e de grandes dificuldades de meios, conhecimentos técnicos e falta de consciência da população local, têm feito um grande esforço para renovar a região.
A campanha “Tornar Rojava Verde de Novo” é a bandeira à volta do qual se reúnem estes esforços. Foram lançados planos para replantar 100 000 árvores, reutilização e reciclagem de águas, projectos eólicos e de auto-sustentabilidade alimentar.
Foi criada uma Comuna Internacionalista que recebe voluntários para implementar os planos de restauração ecológica. Dentro desta foi criada a Academia Internacionalista, que reúne os conhecimentos de quem por lá passa e procura estabelecer ligações com movimentos ecologistas radicais de todo o mundo que queiram escapar à habituais dinâmicas do capitalismo verde.
Tanto quanto sabemos, não houve um único escritório de advogados envolvido.
Portanto, que lições a tirar para a luta pela justiça climática? Não podemos colocar as nossas esperanças em Leis reformistas e na boa vontade do Estado burguês para nos trazerem a mudança.
“As ferramentas do senhor nunca irão desmantelar a casa do senhor” como disse Audre Lorde. Apenas um movimento de massas, bem organizado e disciplinado, que liga a teoria à prática e é capaz de agir no terreno terá hipóteses de extrair concessões ao poder – ou tornar-se ele próprio poder e prescindir de intermediários na luta por um planeta que seja um paraíso para toda a vida que alberga.