Curdistão // Um ano na Comuna Internacionalista de Rojava~ 16 min
Por Bruno Garrido
Conversámos com Rok Brossa, internacionalista catalão e membro da Comuna Internacionalista de Rojava. Falámos sobre o internacionalismo no século XXI, as experiências de Rok no ano que passou em Rojava a apoiar a Federação Democrática do Norte da Síria e como foi viver a ocupação de Afrin pelo regime de Erdogan.
O que é a Comuna Internacionalista de Rojava e como nasce o projecto?
A comuna internacionalista é o marco organizativo de internacionalistas que estão em Rojava a trabalhar no campo civil e procura ser o espaço de apoio para todas as pessoas que querem desenvolver projectos. É um espaço de aprendizagem, de estudo e que procura compreender o que é o internacionalismo e qual o seu papel no século XXI.
Temos um slogan que é ” Aprende, Apoia, Organiza”, porque é um pouco essa a ideia. Não focar o internacionalismo em Rojava em levar internacionalistas para explicar-lhes como fazer as coisas, mas sim ir ali e aprender e conhecer o que significa organizar uma revolução social, uma sociedade sem Estado.
Portanto, também há essa busca de procurar experiências de internacionalismo para que em Rojava possam conhecer essas distintas lutas. Ali encontramos um estudo aprofundado do internacionalismo e quisemos dar uma forma concreta a essas experiências práticas que viajam até lá.
No âmbito da Comuna Internacionalista constroem a Academia Internacionalista e criam o projecto Make Rojava Green Again (Tornar Rojava Verde de Novo).
Quando começamos os primeiros debates na Comuna, existia a ideia de ver como podemos aprender com as nossas experiências para que os internacionais que venham no futuro não encontrem os mesmos problemas que nós encontramos. Depois destes primeiros debates, percebemos a necessidade de ter uma academia própria, onde possamos juntar e armazenar todas estas experiências de internacionalismo e também para poder receber e dar as boas-vindas a internacionalistas que chegam a Rojava.
Na academia há um espaço para formação onde desenvolvemos a primeira formação [teórico-prática] para internacionalistas. Há também o espaço onde estamos a desenvolver o projecto Make Rojava Green Again. É um projecto de ecologia pensado para Rojava, mas que não procura apenas ficar-se por ali. Procuramos criar relações com movimentos ecologistas radicais de todo o mundo.
Por um lado, temos a cooperativa de árvores que é o projecto prático que queremos desenvolver para apoiar a reflorestação em Rojava. Mas é também toda a estrutura ideológica para pensar o que significa ecologismo e dar perspectivas a movimentos ecologistas de todo o mundo para saírem das dinâmicas de ambientalismo, reciclagem, capitalismo verde, etc.
Pretendemos romper com a deriva liberal que ocorre em alguns sectores dos movimentos ecologistas e recuperar a identidade radical do ecologismo. Entendê-lo como uma oposição frontal ao sistema extrativista e tecno-industrial do capitalismo.
Para quem não conhece o livro que editaram recentemente, o que nos podes contar?
O livro foi o culminar do estudo e dos debates que fizemos sobre o porque pensamos ser importante trabalhar o tema da ecologia em Rojava. Lá existe muita influência do imaginário de Ecologia Social do Murray Bookchin, mas também a ligação com o território e a sua defesa desde um ponto de vista mais indígena.
O povo curdo, o maior povo sem Estado do mundo, também têm de alguma forma essa identidade indígena. A luta anti-colonial está muito presente nesse imaginário. É ver como a luta contra a ocupação, contra o colonialismo também se pode observar desde esta visão ecologista de defesa do território. No livro tratamos de aprofundar todos os debates que tivemos e, por outro lado, o marco prático do que estamos a fazer: o projecto de plantar árvores, de reciclagem de águas e os temas de permacultura que estamos a investigar, assim como os diferentes trabalhos que pretendemos desenvolver com o projecto.
Estiveste um ano em Rojava, o que nos podes contar da tua experiência lá?
A experiência lá foi muito intensa e enriquecedora. Estive em Rojava desde o Verão de 2017 até ao Verão de 2018, de forma que vivi coisas intensas. A libertação de Raqqa, a ocupação de Afrin… Visitámos muitas cidades, desde Shengal até Afrin.
É muito interessante ver o que significa desenvolver essa sociedade sem Estado. O que significa organizar instituições sociais auto-geridas pelas pessoas. Dás-te conta que, no final, um dos passos mais importantes é o desenvolvimento da experiência de vida comunitária.
Senti muito isso ao regressar à Europa, onde há individualismo extremo e a mentalidade liberal de não pensar além do indivíduo, da economia individual. Dás-te conta que o modelo do capitalismo que vivemos neste momento na Europa está muito centrado nesse imaginário do individualismo, enquanto ali é precisamente o contrário. Procuram reforçar a vida em comunidade.
A guerra também obrigou muito a dar-se conta da necessidade de “ser sociedade”. Se não és capaz de defender-te e gerar mecanismos de auto-defesa coletivos, o risco no Oriente Médio é claro. Vimos isso sobretudo na guerra contra o Daesh. Foi precisamente essa vida comunitária, esse “ser sociedade”, que permitiu desenvolver este movimento e que permitiu vencer a guerra contra o Daesh.
Como é para o movimento curdo receber os internacionalistas? Como se geraram essas dinâmicas , ou seja, como é viver o confederalismo democrático?
Temos de ver que este movimento tem um carácter internacionalista desde o primeiro momento. Quando o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) se estrutura no final dos 70, vemos que não existe somente população curda que participa. É também turca, arménia, etc., de forma que essa identidade internacionalista de alguma forma já nasce no coração do movimento de libertação do Curdistão.
No dia de hoje, os vínculos com movimentos de todo o mundo também se estão a expandir porque o movimento percebeu que uma revolução no Curdistão não tem futuro se o Curdistão livre estiver rodeado de Estados capitalistas. Entendem portanto que a revolução tem de ser global, porque o sistema capitalista que nos ataca é global.
Se não formos capazes de gerar um imaginário internacionalista que possa conectar-se com os movimentos revolucionários de todo o mundo, este movimento não triunfará. Por isso, existe muito esforço em aprender, ensinar, viver e partilhar de forma colectiva com internacionalistas, porque percebem que é necessário para que o movimento não fique fechado em si.
Procuram influências de outros movimentos, outros territórios, e a partir daí conhecer e partilhar vínculos. Temos de ver que é um movimento que fez uma análise muito profunda da história. Salientam que o estudo dos processos revolucionários ocorridos é muito importante e que é conhecimento que deve ser socializado e partilhado.
No fim, poder conhecer e aprender com outros movimentos revolucionários leva a que o internacionalismo seja um valor central. Receber internacionalistas é muito importante para o povo curdo. Os internacionalistas podem ver como o povo curdo sofreu muitos processos de genocídio, grandes ataques, que muitas vezes a comunidade internacional ignorou.
O povo curdo vê que há pessoas de todo o mundo que vão a Rojava e aprendem a língua curda. Dá alma e muita motivação para seguir com a luta e construir a resistência que desenvolvem em Rojava. Para internacionalistas, poder ver esse modelo de sociedade que estão a construir ali dá-nos muita inspiração. E também muitas ideias na hora de pensar como construir movimentos nos nossos territórios.
Referiste Afrin, que se tornou um ponto crítico na luta do povo curdo, como foi viver esse momento ali?
Afrin foi um momento muito intenso. Depois de anos de guerra contra o Daesh, as Forças Democráticas Sírias (SDF) desenvolveram um sistema de auto-defesa que estava muito adaptado à guerra contra esse inimigo. De repente, em Janeiro de 2018 a Turquia começa a invasão de Afrin com toda a tecnologia da NATO – drones, mísseis, aviões de combate, tanques e outro tipo de veículos blindados. É radicalmente diferente combater contra o Daesh do que contra o segundo maior exército da NATO.
Foi muito duro ver a incapacidade da comunidade internacional em reagir. Vias que existia a esperança de que depois do movimento ter estado a lutar e derrotar o Daesh, [que a comunidade internacional impedisse a invasão de Afrin]. Foi uma luta que começaram não só para defender os povos do norte da Síria, mas por toda a humanidade.
Desde a libertação de Raqqa que se esperava que a comunidade internacional não permitisse que um país da NATO, ainda por cima a Turquia, invadisse o cantão de Afrin. Este nem tinha sofrido guerra até ao momento da invasão do Estado turco.
Esperava-se que a comunidade internacional interviesse, mas vimos qual é a realidade e quais são os interesses do Ocidente. Em todo o momento deram prioridade a proteger o seu sócio da NATO. Em nenhum momento pararam para pensar em apoiar o povo curdo e dar pelo menos um pouco de valor a essa guerra contra o Daesh que travaram no norte da Síria.
Nesse sentido, foi muito triste ver a actuação do Ocidente. Sim, é certo que a cidadania e as forças democráticas de todo o mundo organizaram manifestações, actos, inclusivamente alguns municípios posicionaram-se contra essa ocupação da Turquia. Mas tudo isso não foi suficiente para travar a guerra.
Esta situação leva-nos a pensar que internacionalismo necessitamos hoje em dia. Porque é verdade que esse internacionalismo solidário, cívico, de manifestação e pressão nas instituições, bom… Dá moral e motivação às pessoas que lutam mas não conseguiu parar a guerra.
A Turquia ocupou Afrin sem que ninguém a impedisse. Então temos que pensar que internacionalismo temos que construir. Que movimentos revolucionários temos que construir para que algo assim não volte a acontecer.
Sete anos depois de Rojava ter declarado autonomia, continua cercada por Estados que negam o seu projecto. Mencionaste também a Turquia, que pretende o genocídio do povo curdo. Que análise fazes do futuro da Federação Democrática do Norte da Síria (DFNS)?
Sem dúvida é uma situação muito complexa. Desde Dezembro de 2018, quando Trump anuncia a retirada dos EUA da Síria, começa um processo onde a Turquia prepara a invasão. Acumulam tanques e vários grupos jihadistas na fronteira para participar nessa ocupação.
As estratégias diplomáticas da DFNS, fruto de muitas aprendizagens e de um forte trabalho diplomático, conseguiram que outras forças impedissem que a Turquia usasse aviação, como pretendiam fazer.
No fim, o juiz da Síria no dia de hoje é a Rússia, que se consolidou como potência hegemónica na zona. Ninguém pode mover-se sem autorização russa. Vemos que a Rússia não deu luz verde à Turquia para entrar com aviação, como fez em Afrin.
Agora temos de ver como prossegue. Sabemos que o Estado turco tem a intenção de entrar a qualquer preço. Existem muitos grupos islamitas que estão à espera da Turquia para realizar essa ocupação. De modo que Rojava encontra-se agora mesmo em alerta máximo, à espera de uma possível invasão. Nos finais de Março são as eleições na Turquia e sabemos que Erdogan tem o costume de atacar o povo curdo antes das eleições, para ganhar votos.
Rojava está agora numa situação de emergência e continuam os processos de negociação activos com o regime de Bashar Al-Assad. O movimento sempre fez todos os esforços para manter vias de diálogo. Nos últimos meses vimos aproximações diplomáticas mais claras. Inclui a criação do Conselho por uma Síria Democrática. Este engloba uma confederação de todos os conselhos civis que existem nas zonas do Norte e Este da Síria, para gerar um processo de diálogo com as estruturas do Estado sírio e negociar autonomia.
Assad realizou várias declarações em que rejeita qualquer tipo de autonomia para a DFNS, embora a Rússia também tenha declarações em que não se posicionam contra a ideia de criar um Estado federal.
Todos os processos de negociação continuam em curso, mas é certo que prosseguem de uma forma muito complexa. Vemos que Assad não quer de nenhuma forma ceder algum tipo de autonomia à população do Norte e Leste da Síria, pese que uma ocupação da Turquia não interessa a nenhuma das partes. Basta olharmos para o Chipre e vemos essa postura Neo-Otomana da Turquia, que procura aumentar as suas fronteiras e recuperar o antigo esplendor do império.
Do meu ponto de vista, parece-me que essas negociações também são uma forma de ganhar tempo. Não é tanto o acordo a que se chegue com o Estado sírio [que importa], mas sim ganhar tempo para consolidar as estruturas de comunas. Vemos que a cada dia que passa, a estrutura civil e o movimento de mulheres estão cada vez mais organizados.
No fim, se for alcançado um acordo com Estado sírio, tampouco será um grande acordo porque a realidade é muito limitada. Na melhor hipótese, talvez possamos ver algo como as comunidades autónomas no Estado espanhol. Mas o importante é que o movimento social que existe por detrás esteja muito mais organizado e preparado. Quanto mais se organiza a sociedade e menos dependente se esteja do Estado, menos poder terá o mesmo sobre a Federação.
O confederalismo democrático baseia-se muito nisto. Organizar a sociedade para que não dependam do Estado. Não é a vontade de atacar o Estado, mas sim gerar mecanismos de autonomia e mecanismos de auto-defesa. Para que no caso de sermos atacados pelo Estado, nos possamos defender. Assim quanto mais tempo o movimento possa acumular experiência, conhecimentos e força, mais poderá desenvolver o modelo de confederalismo democrático à margem das negociações que se alcancem com o Estado sírio.
Sempre que falamos de Rojava, torna-se central falar sobre Jineoloji e a luta das mulheres curda. O que sentiste no teu contacto com o movimento de mulheres?
É importante falar da Jineoloji e da luta do movimento de mulheres porque é a criação de um imaginário novo. Vimos que muitas das coisas que acontecem em Rojava, como o cooperativismo e comunas, já existiram noutros processos revolucionários. Mas, sem dúvida, o enorme movimento de mulheres e a liderança das mulheres neste processo de transformação social, é algo novo. Nunca tal existiu nesta escala e envergadura. Assim que acredito que a análise que fazem é muito acertada.
O movimento de mulheres é o que está a permitir assegurar os avanços democráticos que se desenvolvem lá. Creio que é muito importante ver a relevância do movimento de mulheres na hora de gerar processos revolucionários que ajudem a desenvolver estruturas democráticas.
Sobretudo no Médio Oriente, onde o conflito armado tem sido uma constante, mas também no Ocidente onde pensamos que os feminismos ocidentais estão muito desenvolvidos.
Quando vais a territórios como Rojava, dás-te conta que a libertação da mulher que se consegue no Ocidente não traz realmente uma libertação para a sociedade. Ali é muito claro, a sociedade não pode ser livre, se as mulheres não são livres. Por isso, a libertação da mulher é a prioridade absoluta deste processo revolucionário.
Desde a Europa como se torna possível contribuir e procurar mais informação?
Para as pessoas interessadas nos projectos civis, temos a página da comuna internacional. Lá podem ler em inglês e outros idiomas artigos que publicamos sobre a actualidade de Rojava, vários vídeos e outras coisas.
Para a iniciativa Make Rojava Green Again, lançámos uma página que onde podem encontrar mais informações sobre o projecto de ecologia.
Algo muito bonito neste movimento é que encontramos diversos comités de apoio ao Curdistão que se vão consolidando em todo o mundo. Convido-vos a procurarem o vosso colectivo local. Se ainda não existir, criem-no vocês e desenvolvam redes junto dos comités de todo o mundo.
Criar essa rede internacionalista e conhecer outras pessoas, conhecer a comunidade curda que se encontra na diáspora, é uma forma muito bonita de apoiar e ir criando comunidade.