Prostituição vs Aborto: nem profissão, nem crime~ 5 min
Por Aline Rossi
Parte um de três.
Pare de comparar prostituição com aborto.
Apenas pare.
Eu acho que prostituição é como o aborto: proibir ou fingir que não acontece não vai fazer com que deixe de acontecer, apenas tornará mais inseguro. Se as mulheres podem escolher o que abortar, por que não podem escolher se prostituir?
Este argumento é lugar-comum entre pessoas que se consideram minimamente progressistas. Assenta basicamente nos seguintes pressupostos:
- Recusar a regulamentação da prostituição como “trabalho sexual” é equivalente a proibi-lo ou não fazer nada a respeito;
- Prostituição é sobre o direito à escolha e soberania sobre o próprio corpo;
- Prostituição é insegura e perigosa porque não é considerada “trabalho”;
Vamos dissecar essas premissas para entender porque prostituição e aborto não são simétricos nem para falar de escolha, nem para falar de soberania e muito menos sobre políticas públicas.
1. Legalizar o prostituidor ou criminalizar a prostituída?
Não, obrigada.
Essa é a tática argumentativa mais comum do lobby regulacionista: enquadrar a discussão como se reconhecer a prostituição como “trabalho sexual” nas leis fosse a única opção possível. A única capaz de ajudar as pessoas na prostituição e tornar tudo “mais seguro”.
A discussão é, desde o início, conduzida dentro de um enquadramento pré-estabelecido. Leva os ouvintes e leitores a depreender que toda pessoa que se opõe à regulamentação da prostituição é, automaticamente, a favor da criminalização ou contra a aplicação de qualquer política pública a respeito, devendo “deixar como está”.
O ouvinte e leitor rapidamente entenderá que a ideia subjacente transmitida por este enquadramento é que toda pessoa se opondo à regulamentação não pode estar a favor das pessoas prostituídas. Afinal, criminalizá-las é injusto e deixar como está não é imaginável. Sabemos que algo precisa ser feito, e que a pessoa que se prostitui não está cometendo nenhum crime e, portanto, não deveria ser presa.
Dizer às mulheres prostituídas que sua única saída é vestir a camisola da prostituição ou “deixar como está” é, no mínimo, cruel. Isto não são alternativas.
É evidente que a ideia de delimitar o debate exclusivamente em torno da mulher prostituída (digo mulher, mas incluo aqui todas as pessoas em situação de prostituição) funciona dentro da ótica de culpabilização da vítima. Estamos sempre procurando o problema, o erro, a culpa na mulher: ela escolheu? Ela deve ser criminalizada? Ela é vítima ou agente? Por que ela está na prostituição? Por que ela entrou para a prostituição, em primeiro lugar?
Assim funciona a culpabilização machista. Quando uma mulher sofre uma violação, a imprensa, a “justiça”, todos correm para revirar o seu passado e encontrar a sua culpa: ela saía com muitos gajos? Ela pediu? O que usava naquele dia? Ela tentou resistir? Mas por que ela estava naquele lugar? Por que estava sozinha? Será que ela consentiu e mudou de ideia? Ela está a mentir?
Nós nunca olhamos para aqueles que foram beneficiados e causaram o problema. Por que não olhamos para os homens e perguntamos por que eles pagam para obter acesso sexual ao corpo de mulher? O que o faz pensar que ele pode fazer isso? Como ele vê a mulher? Por que ele faz isso a essas mulheres especificamente e não a outras? Ele deve ser criminalizado?
Deve haver quem se oponha à regulamentação, como o CDS, porque queira impor um ideal de mulher conservador: a dona de casa beata, comportada, submissa. Privatizada. Assim como deve haver quem reivindique a regulamentação não pelo direito das mulheres, mas por interesse em lucrar, acumular capital e explorar uma ferida aberta social que já funciona.
Abolicionistas fazem oposição à regulamentação da prostituição não por um ideal conservador de mulher, como o CDS. Nem por uma ideia neoliberal de liberdade, como do Bloco de Esquerda. Ou por interesses económicos, como os empresários da indústria bilionária do sexo. Nós recusamos o paradigma “Criminalizar a Mulher vs. Legalizar a Compra”.
Propomos diferente: invés de regulamentar a prostituição como um trabalho e, assim, dar permissão estatal para que homens usem seu poder económico para adquirir acesso sexual às mulheres mais vulneráveis (via de regra), nós propomos um modelo que tira o julgamento dos ombros da pessoa prostituída. Dá a ela o poder de decidir quando houve ou há abuso e coloca a responsabilidade sobre os ombros de quem usa a desigualdade económica como agente de coerção para obter sexo de outras pessoas.
Isto na prática significa: descriminalizar a prostituição; criminalizar quem compra e quem explora; criar dispositivos para auxiliar aquelas que querem sair da prostituição; e criar um programa ativo de educação sexual para a sociedade em geral e para infratores, de maneira a mudar a mentalidade patriarcal que naturaliza a comodificação do corpo feminino, especialmente para sexo.
Portanto, o paradigma não é se criminalizamos a prostituta ou legalizamos o comprador, mas sim se legalizamos ou criminalizamos aqueles que criam a demanda e que lucram com a comodificação dos corpos. O foco sai da mulher, que não criou a situação da prostituição, e passa para o homem comprador, que é o verdadeiro agente nesta troca.
Parte dois: Prostituição vs Aborto: escolha e soberania ao corpo.
Aline Rossi escreve no blogue Feminismo com Classe, onde também publica de forma prolífica traduções de textos feministas de todo o mundo. Recomendamos a visita.