Síria // Só o Império pode usar armas químicas~ 7 min
Por Duarte Guerreiro e Nguyen.
A fase final da guerra na Síria está a aproximar-se. Ao longo dos últimos anos, de forma a acelerar o fim do conflito, o governo tem levado a cabo acordos de reconciliação nas zonas retomadas. Aos combatentes sírios que assim o desejaram, foi oferecida uma amnistia em troca de renderem as armas e aceitarem a autoridade do Estado sírio. Aos que desejaram continuar a combater e aos combatentes estrangeiros (aos quais a amnistia não se aplica) tem sido oferecida a evacuação nos agora já famosos “autocarros verdes”. Desse modo evita-se o fenómeno de “lutas até à morte” e preserva-se o que sobra das cidades e população civil.
Tal evacuação tem como destino Idlib, a noroeste do país, perto da fronteira com a Turquia. Sendo que eventualmente não haveria mais regiões a evacuar na marcha do exército sírio e seus aliados para expulsar os jihadistas, o conflito chegou finalmente a Idlib. Com o tempo, esta zona tornou-se inevitavelmente um dos últimos bastiões dos corta-cabeças.
Sabendo que os sinos estão a dobrar por eles e que não há muito mais por onde fugir caso a Turquia não lhes abra a porta, os jihadistas tomaram medidas proactivas. Estas incluem erguer forcas em praça pública para dissuadir quaisquer pensamentos por entre os locais de reconciliação com o governo sírio – junto com os habituais raptos e execuções de quem quer que os olhe de lado.
Inconsoláveis por estarem prestes a perder os seus aliados barbudos da Al-Nusra na guerra imperialista contra o Médio Oriente, os Estados Unidos e amigos voltaram à boa velha estratégia de rasgar as roupas em praça pública enquanto gritam que Assad está prestes a usar armas químicas contra civis. Ninguém menos do que John Bolton, um dos principais responsáveis pelo lançamento da guerra contra o Iraque, sem a qual o ISIS nunca teria nascido, fez ameaças a partir de Jerusalém de que os EUA irão tomar medidas se forem levados a cabo ataques químicos. Menos de um mês depois, declarou publicamente que os EUA poderiam impor sanções aos membros do Tribunal Penal Internacional e cessar toda a colaboração com este corpo depois de ter sido discutido julgar os crimes de guerra americanos no Afeganistão. A mensagem, como habitual, é clara: “ou nós ou o caos”.
O Ministério da Defesa Russo emitiu comunicados em resposta a estas ameaças, acusando os EUA e seus aliados de estarem a preparar mais um acto de teatro mediático em que se falsifica o uso de armas químicas por parte do governo sírio para justificar novas campanhas de bombardeamento. Na habitual infalível lógica americana, o que os sírios precisam para serem salvos das bombas do malvadão ditador Assad é levar com bombas americanas livres e democráticas.
E se no passado as acusações do uso de armas químicas pelo governo sírio já pouco sentido faziam, agora que se encontra na fronteira da vitória total ainda menos fazem. Porquê usar armas químicas, extraordinariamente falíveis e inconstantes no seu efeito, quando dispõe de acesso a armas convencionais que fazem um melhor trabalho e não convidam a retribuição de potências imperialistas hipócritas?
E é de hipocrisia de que falamos. Os Estados Unidos já foram apanhados a usar fósforo branco na Síria aquando da ofensiva contra Raqqa. A convenção de Genebra considera o fósforo branco uma arma química e proíbe o seu uso contra civis ou alvos militares nas imediações de civis. A mais recente denúncia do seu uso pelos EUA remete a apenas dia 8 de Setembro. Estes casos estão longe de ser isolados.
Durante as várias guerras, invasão e subsequente ocupação do Iraque pelos EUA, foram utilizadas armas de legalidade dúbia. Estas incluem o uso extensivo de munições de urânio empobrecido. Não é proibido, mas têm existido várias tentativas internacionais de proibir a sua utilização. São radioactivas (apesar de não na mesma escala que armas nucleares) mas também tóxicas e causam danos de longo prazo em quem é atingido ou estiver perto da zona atingida, devido à pulverização das munições no impacto dispersar pó de urânio empobrecido. Induzem danos neurológicos, leucemia, defeitos e más formações no nascimento, entre outros efeitos.
O uso destas munições e de outras mais convencionais mas também disseminadoras de chumbo e mercúrio levou ao aumento do número de pacientes com cancro no Iraque. O número de crianças que têm sido particularmente afectadas por defeitos genéticos, leucemia e cancro não param de aumentar. É desconhecido o número total de casos, apesar de existirem hospitais e médicos por todo o país e acesso a estes por parte de organizações internacionais – ninguém parece estar muito interessado. No entanto, sabe-se que os casos de leucemia em crianças quadruplicaram e a mortalidade destes casos é a mais alta do mundo desde a invasão dos EUA.
As próprias tropas americanas foram afectadas pelo uso de urânio empobrecido e de outros tipos de munições, sendo que os veteranos das guerras do Iraque têm maior probabilidade de contrair cancro dos pulmões, doença de Parkinson, esclerose múltipla, dores de cabeça crónicas, problemas gastrointestinais, entre outras condições. Estima-se que entre 250.000 a 700.000 veteranos das guerras contra o Iraque tenham problemas de saúde por exposição a substâncias tóxicas e radioactivas, sendo as munições de urânio empobrecido uma das principais causas suspeitas. Cerca de 80% dos pedidos de compensação pelos problemas de saúde são recusados, porque o governo dos EUA considera “controversos” os estudos sobre os danos do seu armamento e sobre os problemas de saúde das suas tropas.
As munições de fósforo branco também foram utilizadas. Esta substância entra em ignição em contacto com ar e é extremamente difícil de extinguir. Provocam terríveis queimaduras químicas que causam morte ou ferimentos graves nas pessoas afectadas, queimando a carne até ao osso. Estas munições foram utilizadas não só na Síria mas também no Iraque – nas batalhas de Fallujah e Mossul. Tal constitui um crime de guerra, pelo qual não houve consequências. Estas munições são também uma ferramenta favorita de Israel contra os palestinianos e da Arábia Saudita contra os iémenis, mas quando são os amigos dos EUA a usar armas químicas não conta como crime de guerra merecedor de bombas democráticas.
E isto são apenas exemplos de guerras mais recentes. Era possível citar outros conflitos onde não só foram usadas estas mesmas armas, mas também outras como o desfolhante Agente Laranja no Vietname, amaldiçoando geração sobre geração com cancro, mutações e malformações.
Mas tal pouco importa. Quando são os Estados Unidos a violar as convenções de Genebra, é pelo bem. Quando acusam os seus inimigos de fazerem o mesmo, independentemente da verdade, trata-se apenas de mais uma oportunidade para os EUA fazerem ainda mais o bem.