Portugal // O que é a Assembleia Feminista de Leitura?~ 6 min
Pela Assembleia Feminista de Lisboa
Antes mesmo do aparecimento dos famosos grupos de consciencialização e clubes de leitura feministas nascidos durante a segunda vaga do feminismo norte-americano (década de 60 e 70), a participação das mulheres em grupos dedicados à discussão de textos literários era já um dado histórico desde o Iluminismo.
Que as mulheres tenham, ao longo de séculos, dominado a participação em clubes de leitura não é irrelevante – para além de serem espaços de partilha e de educação literária, era frequentemente aí que as mulheres tinham a oportunidade de fazer ouvir as suas vozes e de se cultivarem. É com esta ideia em mente, e confrontadas com a necessidade de reconectar pensamento e ativismo feminista, que as mulheres da Assembleia Feminista de Lisboa (AFL) decidiram retomar a prática do clube de leitura.
A Assembleia Feminista de Leitura decorre uma vez por mês, em associações lisboetas amigas e aliadas da luta feminista, e suficientemente generosas para disponibilizarem o seu espaço a uma tarde de leituras. As sessões têm hora e local marcado, mas não têm um limite de duração. O tema e a quantidade de material trazido ditam o tempo necessário – nunca suficiente – para a discussão, que se arrasta pela tarde fora. Pensámo-la como uma verdadeira assembleia da leitura: um espaço democrático em que cada leitura dá lugar a uma discussão séria sobre uma preocupação concreta da praxis feminista.
A primeira sessão, realizada em Junho sobre o tema “Escrita e Pensamento Feminista”, revelou a necessidade de ter algum controlo sobre o limite dos tópicos em discussão. Assim, para não correr o risco de se personalizar a discussão e evitar introduzir temas distintos a cada nova intervenção, optou-se pela moderação de cada sessão, uma função que se limita a assegurar que os objetivos temáticos do debate sejam cumpridos.
Na segunda sessão, realizada em Julho e dedicada à discussão da “Igualdade de Direitos Formais”, decidimos começar a produzir newsletters mensais que incluem um resumo da sessão e textos lidos. Quem sabe que novas ideias sairão da próxima sessão, “Feminismo Para Além das Vagas Feministas?”, marcada para 21 de Setembro?
É importante referir que as sessões da Assembleia Feminista de Leitura são encontros não-mistos, ou seja, não estão abertas a homens. Esta decisão teve em conta a experiência dos grupos de mulheres que se formaram nas últimas décadas e que só se conseguiram fortalecer politicamente quando separadas dos camaradas masculinos – algo que se mostrou particularmente evidente nos grupos socialistas/ de esquerda e nos grupos de luta pelos direitos civis nos EUA. As mulheres e as suas preocupações foram sempre relegadas para último plano pelos seus companheiros políticos (que eram, em muitos casos, companheiros amorosos).
Como tal, defendemos que a construção do pensamento emancipatório no feminino se faça em grupos só de mulheres, uma vez que as preocupações masculinas, consideradas universais, têm ainda a primazia.
Por outro lado, existe uma tendência em grupos masculinos para o culto do(s) líder(es) e a competição interna em situações de grupo, a qual nos interessa desafiar e evitar a todo o custo na nossa prática política. Há, no entanto, a vontade de estabelecer outro tipo de encontros de discussão teórica e política com os companheiros homens, para que se possam debater preocupações e soluções comuns, bem como diferenças e incompatibilidades.
A leitura como acto de resistência
A organização das primeiras sessões foi guiada pela ideia de que o grupo de leitura deve ser entendido como um espaço horizontal, criado e recriado pelas participantes. Sonhámos a construção de um espaço dedicado ao aprofundamento teórico das pautas feministas, é certo, mas procurámos também promover um tipo de debate que se aproxime do ativismo, de forma a não perder o contacto com a realidade. Um espaço não-académico que reconhece a importância da teoria somente quando esta esteja em contínuo diálogo com a prática, partindo dela e a ela voltando. Um clube de leitura como um ato de resistência. Resistência à despolitização e esvaziamento do feminismo de massas, através da partilha horizontal do legado teórico do movimento feminista, mas também resistência às formas tradicionais e patriarcais de fazer política.
Nesse sentido, promovemos a leitura não apenas das grandes teóricas académicas, como também de mulheres que actualmente escrevem em blogues e noutras plataformas, que não são formalmente reconhecidas como teóricas, mas que produzem verdadeira teoria e pensamento feminista através do diálogo com o passado e fazendo uma análise da sociedade e das mulheres na atualidade.
É nosso objectivo divulgar o trabalho destas mulheres, mais ou menos desconhecidas, muitas delas sem qualquer perfil académico, mas que estão efectivamente a construir o feminismo hoje em dia. Promover a ideia de que a teoria não é estanque, que ela se atualiza nas análises contemporâneas e, sobretudo, dar a conhecer as grandes teóricas feministas que teorizaram fora da academia e que não tiveram reconhecimento imediato. Feministas que produziram e que produzem através do contacto com a experiência directa das mulheres, sobretudo no âmbito de grupos de consciencialização.
Numa época em que o feminismo voltou a estar nas bocas do mundo, e que ruidosos protestos ocupam as ruas um pouco por todo o lado, (veja-se o caso mais recente dos protestos feministas no México), é fundamental impedir que o movimento seja absorvido pelas estruturas de poder, transformando-se num arrastão de mulheres alienadas dispostas a aceitar os termos do sistema sem um pensamento crítico sobre os mesmos.
É necessário resistir ao feminismo mainstream neoliberal, o feminismo da purpurina e das banalidades e aliado do sistema capitalista; que prioriza a escolha individual sobre o combate às estruturas de poder e de opressão e que fez da mercantilização dos corpos e da luta das mulheres o seu alicerce.
É neste contexto que retomar as práticas das nossas antecessoras, reabilitar os espaços de mulheres, voltar a escutá-las, a escutar-nos, partilhar destemidamente as nossas mais íntimas preocupações e compreender que não estamos sozinhas – que nunca mais estaremos sozinhas -, é o primeiro passo para pensar uma mudança de paradigma real, que já não será ditada pelos interesses do patriarcado.