Portugal // O que é a Assembleia Feminista de Leitura?~ 6 min

Círculo de Leitura de Mulheres, Nova Iorque, 31 de Janeiro de 1976. Foto de Freda Leinwand.

Pela Assembleia Feminista de Lisboa

Antes mesmo do aparecimento dos famosos grupos de consciencialização e clubes de leitura feministas nascidos durante a segunda vaga do feminismo norte-americano (década de 60 e 70), a participação das mulheres em grupos dedicados à discussão de textos literários era já um dado histórico desde o Iluminismo. 

Que as mulheres tenham, ao longo de séculos, dominado a participação em clubes de leitura não é irrelevante – para além de serem espaços de partilha e de educação literária, era frequentemente aí que as mulheres tinham a oportunidade de fazer ouvir as suas vozes e de se cultivarem. É com esta ideia em mente, e confrontadas com a necessidade de reconectar pensamento e ativismo feminista, que as mulheres da Assembleia Feminista de Lisboa (AFL) decidiram retomar a prática do clube de leitura.

A Assembleia Feminista de Leitura decorre uma vez por mês, em associações lisboetas amigas e aliadas da luta feminista, e suficientemente generosas para disponibilizarem o seu espaço a uma tarde de leituras. As sessões têm hora e local marcado, mas não têm um limite de duração. O tema e a quantidade de material trazido ditam o tempo necessário – nunca suficiente – para a discussão, que se arrasta pela tarde fora. Pensámo-la como uma verdadeira assembleia da leitura: um espaço democrático em que cada leitura dá lugar a uma discussão séria sobre uma preocupação concreta da praxis feminista.

A primeira sessão, realizada em Junho sobre o tema “Escrita e Pensamento Feminista”, revelou a necessidade de ter algum controlo sobre o limite dos tópicos em discussão. Assim, para não correr o risco de se personalizar a discussão e evitar introduzir  temas distintos a cada nova intervenção, optou-se pela moderação de cada sessão, uma função que se limita a assegurar que os objetivos temáticos do debate sejam cumpridos. 

Na segunda sessão, realizada em Julho e dedicada à discussão da “Igualdade de Direitos Formais”, decidimos começar a produzir newsletters mensais que incluem um resumo da sessão e textos lidos. Quem sabe que novas ideias sairão da próxima sessão, “Feminismo Para Além das Vagas Feministas?”, marcada para 21 de Setembro?

É importante referir que as sessões da Assembleia Feminista de Leitura são encontros não-mistos, ou seja, não estão abertas a homens. Esta decisão teve em conta a experiência dos grupos de mulheres que se formaram nas últimas décadas e que só se conseguiram fortalecer politicamente quando separadas dos camaradas masculinos – algo que se mostrou particularmente evidente nos grupos socialistas/ de esquerda e nos grupos de luta pelos direitos civis nos EUA. As mulheres e as suas preocupações foram sempre relegadas para último plano pelos seus companheiros políticos (que eram, em muitos casos, companheiros amorosos).

Como tal, defendemos que a construção do pensamento emancipatório no feminino se faça em grupos só de mulheres, uma vez que as preocupações masculinas, consideradas universais, têm ainda a primazia. 

Por outro lado, existe uma tendência em grupos masculinos para o culto do(s) líder(es) e a competição interna em situações de grupo, a qual nos interessa desafiar e evitar a todo o custo na nossa prática política. Há, no entanto, a vontade de estabelecer outro tipo de encontros de discussão teórica e política com os companheiros homens, para que se possam debater preocupações e soluções comuns, bem como diferenças e incompatibilidades.

A leitura como acto de resistência

A organização das primeiras sessões foi guiada pela ideia de que o grupo de leitura deve ser entendido como um espaço horizontal, criado e recriado pelas participantes. Sonhámos a construção de um espaço dedicado ao aprofundamento teórico das pautas feministas, é certo, mas procurámos também promover um tipo de debate que se aproxime do ativismo, de forma a não perder o contacto com a realidade. Um espaço não-académico que reconhece a importância da teoria somente quando esta esteja em contínuo diálogo com a prática, partindo dela e a ela voltando. Um clube de leitura como um ato de resistência. Resistência à despolitização e esvaziamento do feminismo de massas, através da partilha horizontal do legado teórico do movimento feminista, mas também resistência às formas tradicionais e patriarcais de fazer política. 

Nesse sentido, promovemos a leitura não apenas das grandes teóricas académicas, como também de mulheres que actualmente escrevem em blogues e noutras plataformas, que não são formalmente reconhecidas como teóricas, mas que produzem verdadeira teoria e pensamento feminista através do diálogo com o passado e fazendo uma análise da sociedade e das mulheres na atualidade.  

É nosso objectivo divulgar o trabalho destas mulheres, mais ou menos desconhecidas, muitas delas sem qualquer perfil académico, mas que estão efectivamente a construir o feminismo hoje em dia. Promover a ideia de que a teoria não é estanque, que ela se atualiza nas análises contemporâneas e, sobretudo, dar a conhecer as grandes teóricas feministas que teorizaram fora da academia e que não tiveram reconhecimento imediato. Feministas que produziram e que produzem através do contacto com a experiência directa das mulheres, sobretudo no âmbito de grupos de consciencialização.

 Numa época em que o feminismo voltou a estar nas bocas do mundo, e que ruidosos protestos ocupam as ruas um pouco por todo o lado, (veja-se o caso mais recente dos protestos feministas no México), é fundamental impedir que o movimento seja absorvido pelas estruturas de poder, transformando-se num arrastão de mulheres alienadas dispostas a aceitar os termos do sistema sem um pensamento crítico sobre os mesmos. 

É necessário resistir ao feminismo mainstream neoliberal, o feminismo da purpurina e das banalidades e aliado do sistema capitalista; que prioriza a escolha individual sobre o combate às estruturas de poder e de opressão e que fez da mercantilização dos corpos e da luta das mulheres o seu alicerce.

É neste contexto que retomar as práticas das nossas antecessoras, reabilitar os espaços de mulheres, voltar a escutá-las, a escutar-nos, partilhar destemidamente as nossas mais íntimas preocupações e compreender que não estamos sozinhas – que nunca mais estaremos sozinhas -, é o primeiro passo para pensar uma mudança de paradigma real, que já não será ditada pelos interesses do patriarcado.

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