Portugal // O legado da Geringonça – Salários, Desemprego e Pobreza~ 8 min

Este é um de quatro artigos que vamos lançar sobre o legado da “Geringonça”. Estes artigos visam principalmente a nossa audiência externa, que muitas vezes recebe uma ideia completamente errónea sobre supostos “milagres económicos” que se passam no país, quando na verdade continuamos entregues ao bom velho neoliberalismo do centrão com pagamentos da dívida à mistura. Algumas noções básicas a ter em conta relativamente a entidades referidas neste artigo, para quem não está familiarizado com a política portuguesa:

Geringonça – A alcunha do governo formado pelo Partido Socialista, com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e da Coligação Democrática Unitária (Partido Comunista Português e Partido Ecologista “Os Verdes”). Inicialmente um pejorativo, o nome acabou a pegar e é agora mais ambíguo. Governa desde 2015, com novas eleições a dia 6 de Outubro.

Partido Socialista – Um dos dois partidos do centrão neoliberal que se alternam no poder. A face mais gentil do capital, com o Partido Social-Democrata a ser a contraparte com mais espuma na boca. O nome é um artefacto histórico do período pós-revolução de 1974, em que foi preciso ao capital promover uma força mais “moderada” que puxasse o tapete aos partidos com ambições revolucionárias. A empurrar o país para a direita desde então.

Bloco de Esquerda – Bloco de pequenos partidos de esquerda que vive principalmente do mediatismo e que tem como base de apoio a pequena-burguesia e aristocracia laboral cosmopolita com problemas de consciência. Preocupados com direitos civis e humanos e cheios de fé que “o Estado somos todos nós”.

Partido Comunista Português – Uma das forças mais bem organizadas e responsáveis na governação em Portugal, ou pelo menos assim está sempre a ser elogiado pelos seus oponentes partidários – fica por saber se isso é uma coisa boa. Funciona em tandem com a principal confederação sindical nacional, a CGTP. A sua inacção ou incapacidade perante a degradação das condições de vida não o tem exactamente ajudado a capturar o voto trabalhador.

Por Víctor Boaventura

A “Geringonça” utiliza muitas vezes a “recuperação de rendimentos” dos últimos quatro anos como bandeira deste governo. Argumento que é noticiado por vários meios de comunicação progressistas estrangeiros como o “milagre português”. Como se Portugal fosse o paraíso social-democrata na terra. Vamos então tentar desconstruir este tema utilizando dados reais.

Aumentos salariais na função pública

Na função pública, o aumento de salários verificados entre 2009 e 2019 foi de apenas 2,2% na remuneração base média ilíquida e de apenas 3,6% no ganho médio mensal ilíquido. Isto antes de sofrer o imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) e os descontos do Instituto de Proteção e Assistência na Doença (ADSE), Caixa Geral de Aposentações (CGA) ou Segurança Social. 

Tendo em conta todos os descontos e adicionando o subsídio de refeição (pois este não está sujeito a descontos) de todos os trabalhadores da administração pública, verificamos que houve uma “diminuição de 2,8% nas remunerações entre 2009 (último ano em que se verificou uma atualização geral das remunerações destes trabalhadores) e 2019”. 

Segundo dados do Ministério das Finanças e do Instituto Nacional de Estatística (INE), o poder de compra médio dos trabalhadores da função pública, entre 2009 e 2019, reduziu-se em 13,2%.

Aumentos salariais no sector privado 

No sector privado, a remuneração líquida total, após descontos, subiu apenas 43€ (5,2%).  

Mas se tivermos em conta o efeito dos aumentos dos preços neste últimos dois anos, o aumento real dos salários foi apenas de 2,5%. Ou seja, o que nos é vendida como a fantástica recuperação de rendimentos traduz-se apenas no aumento de 10,5€ do poder de compra por ano entre 2017 e 2019.

2 milhões recebem menos de 900€/mês

Outro dado preocupante relativo ao governo do Partido Socialista apoiado pelo Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português, é a diminuição brutal do rendimento médio bruto em Portugal, aproximando-se cada vez mais do salário mínimo. Em 2015, ano de tomada de posse do actual governo, o salário mínimo nacional correspondia a 58,1% do valor da remuneração bruta regular média, e em 2019 corresponde a 63,3%.

Tendo em conta os últimos números divulgados pelo Ministério do Trabalho (Abril de 2018), 25,1% dos trabalhadores recebia o salário mínimo que então era apenas de 580€. Actualmente, tendo em conta a tendência verificada nos últimos anos, acreditamos que a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo, agora de 600€, tenha aumentado. 

Segundo o INE, no 2º trimestre de 2019, 55,4% dos trabalhadores no activo (2,262 milhões) recebiam menos de 900€ líquidos mensais. Cerca de 408,5 mil recebem menos do que o salário mínimo.

Aumenta fosso salarial entre homens e mulheres

Outro dado preocupante é o agravamento do fosso salarial entre homens e mulheres. A diferença de remunerações entre sexos no início deste Verão chegou aos 17,2%. O que representa um aumento de 1,4%  face ao mesmo período do ano passado.

No final de Junho, cada trabalhadora em Portugal levava para casa em média 830€, menos 172€ do que a média masculina de 1002€.

Em alguns sectores, as diferenças são brutais. No caso da  indústria, entre operadores de máquinas e trabalhadores de montagem, as mulheres recebem em média menos 27,5% que os homens, ou seja, menos 237€. “No trabalho intelectual e técnico atinge os 15,7% e 18%, respetivamente. Nos serviços chega aos 21,7% e no trabalho qualificado da indústria aos 18,5%. É ainda elevado no emprego não qualificado, com uma diferença de 24,5%.”

Aumento da precariedade

Nestes últimos quatro anos de Geringonça houve um aumento da precariedade laboral. Dos mais de 800 mil novos contratos celebrados desde 2015 (início desta legislatura), 53% são temporários e/ou parciais. Ou seja, mais de metade do emprego criado em Portugal nos últimos 4 anos é precário. 

O número de trabalhadores com vínculo precário tem vindo a aumentar ao longo desta legislatura. Em 2015 encontravam-se nestas condições perto de 700 mil trabalhadores/as. Segundo os últimos dados do INE o número de precários em 2019 é de 732,2 mil, o que significa um aumento de 33,4 mil trabalhadores.

Em Portugal, um trabalhador precário recebe em média menos 30% que um trabalhador com vínculo estável.

Terceiro país da União Europeia com maior proporção de contratos não permanentes

Portugal tem ainda uma das piores situações a nível europeu no que diz respeito à “involuntariedade” da precariedade laboral. Cerca de 82% dos contratados a termo em Portugal fizeram-no por não terem alternativa ou melhor proposta. Pior só no Chipre (quase 90%), revelam dados do Eurostat.

Desemprego real de 12,8%

De facto houve uma diminuição substancial do desemprego em Portugal nos últimos anos. De acordo com a estimativa mensal do INE, em Agosto a taxa de desemprego foi de 6,2%. Mas como verificámos anteriormente, a maioria de trabalho criado foi precário. 

Há alguns anos, o INE deixou de contar os desencorajados, os subempregados e os desempregados ocupados em estágios e contratos emprego-inserção para calcular a taxa de desemprego nacional. 

Se contabilizarmos toda a população desempregada em Portugal, a taxa de desemprego e subocupação é de 12,8% (correspondendo a 688,2 mil pessoas).

2 milhões em risco de pobreza

Segundo os últimos dados fornecidos pelo INE, 2,223 milhões de pessoas encontravam-se em risco de pobreza ou exclusão social, de uma população total de pouco mais de 10 milhões. Este número resulta do somatório das 1,777 mil pessoas que estavam em risco de pobreza em 2017, com as 532 mil que viviam em agregados com intensidade laboral ‘per capita’ muito reduzida em 2017, mais as 615 mil pessoas que viviam em privação material severa em 2018.

“Deste conjunto, 109 mil pessoas encontravam-se simultaneamente nas três condições adversas: pobreza, privação e baixa intensidade laboral”, refere o INE.

Em 2018 as disparidades nos extremos continuam muito acentuadas. A distância entre o rendimento monetário líquido respeitante aos 20% da população com maiores recursos e dos 20% com menores recursos foi de 5,2 – ou seja, os 20% de portugueses mais ricos têm cinco vezes mais do que os 20% mais pobres. 

Se tivermos em conta o rácio S90/S10, que mede a distância entre o rendimento monetário líquido relativo aos 10% da população com maiores recursos e o rendimento dos 10% da população com menores recursos, os números são ainda mais brutais – os 10% mais pobres ganham quase 9 vezes menos que os 10% mais ricos.Apesar de ter havido uma ligeiríssima diminuição na distribuição de rendimentos em Portugal, continua a existir um fosso gigante entre ricos e pobres. Portugal é o 6º país com maior desigualdade entre ricos e pobres na União Europeia, segundo dados do Eurostat.

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