Portugal // O legado da Geringonça – O estado miserável da habitação~ 14 min
Este é um de quatro artigos que vamos lançar sobre o legado da “Geringonça”. Estes artigos visam principalmente a nossa audiência externa, que muitas vezes recebe uma ideia completamente errónea sobre supostos “milagres económicos” que se passam no país, quando na verdade continuamos entregues ao bom velho neoliberalismo do centrão com pagamentos da dívida à mistura. Algumas noções básicas a ter em conta relativamente a entidades referidas neste artigo, para quem não está familiarizado com a política portuguesa:
Geringonça – A alcunha do governo formado pelo Partido Socialista, com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e da Coligação Democrática Unitária (Partido Comunista Português e Partido Ecologista “Os Verdes”). Inicialmente um pejorativo, o nome acabou a pegar e é agora mais ambíguo. Governa desde 2015, com novas eleições a dia 6 de Outubro.
Partido Socialista (PS) – Um dos dois partidos do centrão neoliberal que se alternam no poder. A face mais gentil do capital, com o Partido Social-Democrata a ser a contraparte com mais espuma na boca. O nome é um artefacto histórico do período pós-revolução de 1974, em que foi preciso ao capital promover uma força mais “moderada” que puxasse o tapete aos partidos com ambições revolucionárias. A empurrar o país para a direita desde então.
Partido Social-Democrata (PSD) – Como descrito acima, o lado B da cassete do centrão neoliberal. Para quando o capital perde a paciência e é preciso implementar à bruta vastos programas de austeridade e privatização, enquanto se mantém uma sociopata expressão de piedoso sofrimento pelos “sacrifícios das famílias portuguesas”. Costuma colaborar com o CDS, sendo o governo anterior à Geringonça uma coligação entre estes dois partidos.
Centro Democrático Social (CDS) – Como o PS, o CDS também tem uma história engraçada ligada à revolução de 1974. A parte engraçada é que costumavam ser colaboradores do fascismo que depois da revolução descobriram subitamente as virtudes da democracia e humanismo. Colado à anca com a Igreja Católica e a máfia da caridadezinha. O tipo de partido que apela à burguesia rural tacanha e à pequena burguesia que entra em apoplexia quanto a tudo o que toca na sua propriedade privada mixuruca. Se conhecem um senhorio que empurraria uma idosa das escadas abaixo para poder subir a renda ao próximo inquilino 100€, é garantido que é um eleitor do CDS.
Partido Comunista Português (PCP) – Uma das forças mais bem organizadas e responsáveis na governação em Portugal, ou pelo menos assim está sempre a ser elogiado pelos seus oponentes partidários – fica por saber se isso é uma coisa boa. Funciona em tandem com a principal confederação sindical nacional, a CGTP. A sua inacção ou incapacidade perante a degradação das condições de vida não o tem exactamente ajudado a capturar o voto trabalhador.
Coligação Democrática Unitária (CDU) – Coligação do PCP e o Partido Ecologista “Os Verdes”. Este último é frequentemente descrito como o partido melancia – verde por fora, vermelho por dentro.
Bloco de Esquerda (BE) – Bloco de pequenos partidos de esquerda que vive principalmente do mediatismo e que tem como base de apoio a pequena-burguesia e aristocracia laboral cosmopolita com problemas de consciência. Preocupados com direitos civis e humanos e cheios de fé que “o Estado somos todos nós”.
Pessoas, Animais e Natureza (PAN) – Partido “nem de esquerda nem de direita” mas do veganismo e direitos dos animais que recentemente entrou no parlamento. Partilha a base de apoio com o Bloco, o que explica andarem constantemente às turras. Para quando a classe média abandona a consciência pesada e opta por abraçar o ennui misantrópico.
Por Humberto Palma
Entre 2011 e 2015, o direito à habitação foi um dos mais atacados pelo governo da direita que precedeu a Geringonça. Passam agora quatro anos de um governo suportado à esquerda. Os preços da habitação continuam a subir. Em 2019 arrendar uma casa era, em média, 41% mais caro do que era em 2015. Enquanto que o salário mínimo nacional apenas subiu 19% no mesmo período. As famílias que contraíram créditos à habitação quando lhes eram apresentados como melhor solução, continuam a ver as suas dívidas a serem vendidas de instituição financeira em instituição financeira, em transações de milhões. Apesar do motivo do incumprimento até ter sido um qualquer infortúnio, como a doença ou o desemprego.
À procura de casa: comprar ou arrendar?
As três principais soluções disponíveis para quem procura uma casa em Portugal são o arrendamento social ao Estado, o arrendamento privado ou a compra de uma casa. No entanto, a habitação social representa apenas 3% do total do parque habitacional. Uma consequência de décadas do reduzido investimento público direto em habitação. Sobram por isso as duas faces de um sistema de habitação baseado na propriedade privada. Quem necessitar de alojamento tem duas hipóteses: recorrer ao arrendamento privado junto de um senhorio ou à compra de uma habitação, implicando a contração de uma dívida ao banco.
Turismo e especulação
Portugal vive um momento de fama curiosa ao nível do turismo com prémios a desdobrarem-se em mais prémios e com os números de turistas a crescerem de ano para ano. Parafraseando a Secretária de Estado do Turismo isto “não é um fenómeno, é o resultado de anos de investimento” do Estado. Esta explosão turística apresenta, obviamente, consequências.
O alojamento local para alugar a turistas compete diretamente com o alojamento para residentes trabalhadores nas cidades. Em Agosto de 2019 haviam 88 634 alojamentos locais em todo o país, sendo que a maior parte destes se concentram na região do Algarve (mais de 33 mil) e cidades de Lisboa (mais de 23 mil) e Porto (mais de 10 mil). A capital portuguesa é cidade europeia com mais casas convertidas em alojamento turístico por habitante.
Esta explosão surgiu num momento em que as leis que regulam o mercado imobiliário eram mais permissivas e visavam beneficiar detentores de propriedade. Em 2012, o então governo PSD / CDS aprovou uma alteração ao NRAU – Novo Regime de Arrendamento Urbano. Esta alteração a uma lei de 2006 ficaria conhecida como “Lei Cristas”, numa referência ao nome da então Ministra do Ordenamento do Território da altura, pertencente ao CDS.
O seu suposto objetivo era promover a reabilitação urbana, liberalizando o mercado de arrendamento. Para o fazer promoveu o descongelamento das rendas mais antigas, essencialmente localizadas nos centros históricos das cidades.
Criou ainda uma forma de despejar inquilinos sem que isso implicasse a chatice burocrática de ir a tribunal – o Balcão Nacional do Arrendamento (BNA) – especializado na agilização de despejos. Curiosamente, os inquilinos que desejem opor-se a um despejo continuaram a ter de recorrer a um tribunal.
Como disse a ex-ministra referida há uns dias atrás, “o direito à propriedade prevalece ao direito à habitação”. E assim foi. Após a entrada em vigor da lei verificaram-se aumentos brutais nas rendas dos contratos mais antigos. Afetou essencialmente as populações trabalhadores com baixos rendimentos, reformados e pensionistas.
O BNA agilizou mais de 4300 despejos entre 2013 e 2018. E verificou-se uma subida das rendas, especialmente nos centros das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Segundo o Deutsche Bank, Lisboa é actualmente a cidade europeia com maior taxa de esforço salarial para pagar rendas e a sexta a nível mundial.
Durante o actual governo foram revertidas algumas medidas do governo anterior, protegendo essencialmente os idosos com mais de 65 anos e pessoas com mais de 60% de incapacidade. Algumas alterações foram feitas também no sentido de tornar a relação senhorios-inquilinos menos desequilibrada, mantendo-se, no entanto, o Balcão Nacional do Arrendamento.
Seria uma inverdade dizer que tais alterações não fazem diferença. Da mesma forma que é inegável que a liberalização do mercado de arrendamento terá amplificado as consequências de uma explosão turística; quando a renda potencial de uma parcela de terreno se adivinha muito maior do que a renda actual, essa será certamente a oportunidade mais apetecível para o capital investir. Se for mais fácil despejar quem está a empatar, mais ágil é o processo.
No entanto, estas alterações são como tentar apagar o fogo enquanto se atira mais lenha para a fogueira. Por um lado, devido à continuação do investimento no turismo. Mas principalmente pela promoção do investimento privado no sector imobiliário. O que não garante de todo que o dinheiro alocado será usado para a atribuição de casas acessíveis a quem trabalha em detrimento de investimentos mais apetecíveis do ponto de vista do capital.
Dois exemplos que ilustram a linha do governo sobre a matéria são a criação das Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária – SIGI – e a manutenção dos vistos dourados.
As SIGI foram aprovadas em Julho de 2019. Podem ser descritas como fundos de investimento que lucram com o arrendamento de imóveis para fins habitacionais ou não – uma espécie de mega senhorios. Certamente contribuirão para o aumento da pressão imobiliária e estarão mais interessadas em arrendamento para “inquilinos de melhor qualidade”, como empresas.
Os vistos dourados permitem que investidores externos obtenham vistos de residência temporária na troca de investimento em território nacional. Desde 2016 até 2018 foram concedidos 4174 vistos dourados, que correspondem a 60% do total dos vistos atribuídos desde 2012 – ano em que surgiram. Dos 4622 milhões de euros de investimento acumulado desde o primeiro ano do programa, mais de 90% está associado ao sector imobiliário.
Da compra de casa à compra de dívidas
Como a Guilhotina.info já reportou em Setembro do ano passado, muitas famílias trabalhadoras estão a ver as suas dívidas serem vendidas a fundos de investimento. Estes, além da compra de carteiras de crédito malparado, são capazes de fazer extorsão do dinheiro, ficar com as casas e devolvê-las ao efervescente mercado imobiliário.
A venda do crédito malparado vem da recomendação e obrigação do Banco Central Europeu e do Banco de Portugal. É apresentada como uma medida de sustentabilidade económica do sector bancário. Só em 2018, os maiores bancos portugueses venderam 5,7 mil milhões de euros em crédito malparado. Incluindo a Caixa Geral de Depósitos, banco público cuja gestão é apontada pelo governo, tal como o é o Conselho de Administração do Banco de Portugal.
No entanto, a face humana desta transação é o drama de muitas famílias. Desde Janeiro até Junho, a associação de defesa do consumidor DECO recebeu cerca de 17 mil pedidos de ajuda de pessoas com dificuldades em pagar os seus empréstimos (64%) ou já em incumprimento (36%). Das pessoas que já se encontravam em incumprimento, uma em cada nove estavam a lidar com entidade externas ao sistema bancário. Provavelmente, uma empresa de cobrança de dívidas a trabalhar para ou propriedade de um dos vários fundos de investimentos que operam no país.
É importante notar que a maior parte das dívidas das famílias portuguesas são dívidas relativas ao crédito à habitação e o seu incumprimento resulta muitas vezes de condicionantes como o desemprego ou a doença. Em 2013, mais de 80% do valor total da dívida das famílias correspondia a crédito à habitação. Tal valor é tão elevado porque durante as décadas anteriores tanto a conjuntura económica era favorável como as políticas públicas eram de incentivo à compra de casa própria. Cerca de 75% dos portugueses possui casa própria.
Seja nos despejos, através da venda de carteiras de dívidas a fundos de investimento, ou através da recuperação do crédito diretamente pelo banco e com menos intermediários, este sector de negócio parece estar a florescer. O número de agentes de execução inscritos na sua respectiva Ordem mais do que duplicou, com um aumento de 114%, entre o pré-crise e 2018.
Políticas públicas: fermento para arrendamento privado?
Segundo a SIC, o total de pedidos de habitação social em espera superou os 32 mil em 2019, como consequência da actual crise de habitação. No entanto, o número de casas disponíveis corresponde apenas a 1% deste número.
Qual tem sido a resposta do governo? Uma panóplia de políticas públicas que na sua maioria colocam a responsabilidade de resolver esta crise no mercado de arrendamento privado.
Por exemplo, o Programa Arrendamento Acessível permite ao senhorio receber benefícios fiscais se arrendar uma habitação ou parte desta a uma renda abaixo do preço de mercado e ajustada aos rendimentos do inquilino. No entanto, estas rendas são ainda incomportáveis para a maioria das pessoas de baixos rendimentos. Após dois meses e meio da existência do programa houve apenas 30 contratos de arrendamento estabelecidos.
O programa Chave na Mão coloca o Estado a gerir a propriedade de quem viva numa zona com pressão imobiliária e decida ir viver para o interior do país. Com as rendas a ficarem ajustadas à luz do Programa Arrendamento Acessível e o proprietário da habitação a continuar a receber uma grande fração destas.
O Programa Porta 65 Jovem permite que jovens (até 35 anos), singulares ou casais, recebam do Estado em dinheiro uma fração da sua renda. Através da conta bancária dos inquilinos, este dinheiro passará quase directamente do Estado para o bolso dos senhorios.
As duas principais políticas que vão além da promoção do arrendamento privado são o 1º Direito e o Projecto Habitacional de Almada Poente.
O primeiro é um programa de financiamento aos municípios para a aplicação em estratégias locais. Não existe a garantia de que o investimento público será realizado na promoção de arrendamento social ao Estado e destinado a quem possui menores rendimentos, mas esta pode ser uma opção dos municípios. O último representa um grande investimento público directo na promoção de habitação e prevê a construção de um total de 3500 fogos públicos para arrendamento, dos quais 1100 deverão estar prontos em 2023. Almada está localizada no outro lado do rio de Lisboa.
Tendo em conta a demonstrada ineficácia do mercado em prestar habitação em condições aceitáveis e acessíveis para quem vive do seu trabalho, estas aparentam ser as melhores medidas. Mas o que são 3500 fogos em Almada a médio prazo e talvez outros tantos financiados pelo 1º Direito no resto do país? Pouco, muito pouco. Quase nada, quando comparados aos mais de 23 mil que são agora alojamentos locais só na região de Lisboa. Ou aos 32 mil pedidos de habitação social pendentes neste momento em todo o país.
O passe metropolitano e a purga do centro das cidades
Em Abril de 2019, a seis meses das eleições, a Geringonça implementou um passe metropolitano que reduzia drasticamente os gastos dos utentes de transportes de Lisboa e Porto. Por um preço único mensal de 40€ para indivíduos e 80€ para famílias, é agora possível utilizar toda a rede de transportes públicos na respectiva área metropolitana das duas cidades.
Na verdade, muitos destes transportes são privados que serão compensados pelo Estado pelas suas “perdas” com a implementação do novo passe via 104 milhões de euros do Fundo Ambiental e pagamentos das autarquias. É mais uma parceria público-privada que vem pavimentar com dinheiro público os buracos causados pela inexistência de uma política congruente de transportes públicos.
Tendo em conta o salário mínimo nacional de 600€ e que alguns dos anteriores passes podiam chegar a quase 160€ por mês, foi uma medida de grande impacto na carteira de quem trabalha.
Mas mais do que uma medida relativa aos transportes, foi uma forma de lubrificar a purga da população trabalhadora do centro das cidades para desempatar o capital e ao mesmo tempo acalmar a contestação social que se estava a gerar naqueles presos entre tentar morar perto do local de trabalho e poupar tempo e dinheiro em transportes mas ser roubado na renda; ou ser atirado para a periferia de rendas mais baixas mas deixar um quarto do salário em passes, mais duas horas de viagem diárias em transportes públicos.
NOTA: Dia 1 de outubro entrou em vigor a Lei de Bases da Habitação, que foi deliberadamente excluída do artigo por ter maiores implicações nas próximas legislaturas e merecer uma análise mais completa do que aquela que é possível fazer neste balanço.