Iraque // O antes e o depois do assassinato de Soleimani e Mahdi~ 14 min

Por Duarte Guerreiro e Francisco Norega

Na última semana vimos sucederem-se a um ritmo desenfreado acontecimentos que podem facilmente dar origem a um novo e sangrento conflito no Médio Oriente. As notícias vindas desse lado do mundo, para a maior parte de nós tão longe na distância como no entendimento, estão repletas de referências, siglas e nomes que nos são estranhos. Tentamos, com este artigo, fazer algum sentido dos mais recentes acontecimentos no Iraque.

Os protagonistas

As Forças de Mobilização Popular (PMF) são uma organização composta por cerca de 40 milícias, maioritariamente grupos xiitas, mas de que também fazem parte entre 15 mil e 40 mil combatentes sunitas, assim como indivíduos cristãos e yazidis. É, portanto, uma organização multi-confessional. Existe como organização desde 2014 e esteve presente em praticamente todas as maiores batalhas contra o ISIS no Iraque. Desde 2016, fazem formalmente parte do exército iraquiano.

As Kata’ib Hezbollah são um grupo paramilitar xiita activo desde 2003. Fazem parte das PMF e, por isso, também do exército iraquiano, e têm apoio directo do Irão. Durante a Guerra do Iraque, o grupo combateu contra as forças de ocupação lideradas pelos EUA. Durante as guerras civis na Síria e no Iraque, combateu contra o ISIS e o Exército Livre da Síria.

As Forças Quds fazem parte do Islamic Revolutionary Guard Corps (IRGC), um braço do exército iraniano. São a unidade encarregada de operações não-convencionais fora do território iraniano, mais ao menos equivalentes às Forças de Operações Especiais norte-americanas.

Desde o início da guerra contra o ISIS, enquanto o Ocidente fechava os olhos e esperava que o conflito provocasse a balcanização da Síria e mais desestabilização no Iraque para poder fazer mais uns biliões com o petróleo e a venda de armamento, as Forças Quds estiveram no terreno nos dois países a prestar apoio militar a forças que combateram a barbárie. As Kata’ib Hezbollah são um dos seus principais aliados no Iraque.

Sequência de acontecimentos

Dia 29 de Dezembro de 2019, os EUA levaram a cabo uma série de ataques aéreos contra bases das Kata’ib Hezbollah na Síria e no Iraque. 25 pessoas morreram e mais de 50 ficaram feridas.

De acordo com o Pentágono, esta foi uma retaliação a um ataque contra uma base militar em Kirkuk (norte do Iraque) dois dias antes, em que um consultor americano morreu e seis pessoas ficaram feridas (dois militares iraquianos e quatro americanos).

Os EUA responsabilizaram as Kata’ib Hezbollah pelo ataque, apesar de estas não o terem reivindicado. Considerando que Kirkuk não é uma zona xiita, a probabilidade de ter sido o grupo a realizar o ataque é baixa. Mas, mesmo assumindo que são elas as responsáveis, é patente a desproporcionalidade da resposta. De acordo com o Primeiro-ministro iraquiano, estes ataques correspondem a uma “violação da soberania do Iraque e uma ameaça para a segurança do Iraque e da região”.

Dia 31 de Dezembro, centenas de manifestantes com bandeiras das PMF e das Kata’ib Hezbollah concentraram-se na embaixada norte-americana em Bagdade, na “Zona Verde” altamente fortificada onde os americanos se instalaram, entoando cânticos contra os EUA e Israel.

A multidão atacou o portão principal da embaixada e, segundo vários relatos, foram atiradas pedras a portas do edifício, pelo menos uma sala da área de recepção foi invadida por manifestantes e partes do muro que protege o complexo incendiadas.

Forças americanas responderam com gás lacrimogéneo e três snipers foram avistados nos telhados do edifício, mas não foram disparadas balas reais. Forças iraquianas acabaram por intervir, fazendo um cordão entre a multidão e o edifício e, no dia seguinte, os manifestantes acabaram por se retirar. As PMF afirmam que cerca de 20 pessoas ficaram feridas, enquanto o Secretário da Defesa norte-americano assegura que nenhum pessoal da embaixada sofreu ferimentos.

Há que fazer uma distinção entre este protestos e os movimentos de protesto que assolam o Iraque desde o início de Outubro. Os manifestantes da Praça Tahrir, que protestam contra a situação económica, a elite governante e as milícias, distanciaram-se deste protesto. Inclusive, Soleimani era visto negativamente por estes, devido a suspeitas de que foi um dos principais impulsionadores da resposta violenta aos manifestantes de Tahrir.

A resposta dos EUA não se fez tardar e, na noite de 2 de Janeiro, mísseis americanos atingiram dois veículos nas imediações do Aeroporto Internacional de Bagdade. 10 pessoas morreram no ataque, entre elas Qassem Soleimani, líder das Quds Forces, Abu Mahdi al-Muhandis, segundo-comandante das PMF e líder das Kata’ib Hezbollah, e Muhammad Reza Al-Jabri, director de relações públicas das PMF.

O assassinato de duas figuras de estado cruciais no combate ao ISIS, sem qualquer contacto com o governo e as forças iraquianas, constitui uma atrocidade diplomática e uma violação completa da soberania iraquiana e do direito internacional. Imagine-se que qualquer um na longa lista dos “mais procurados” pelos EUA visita Portugal. Aproveitando a oportunidade, sem aviso, os nossos “aliados” norte-americanos bombardeiam o Aeroporto de Lisboa.

Convém relembrar que as forças americanas estão no Iraque a pretexto do combate ao ISIS, convidados pelo governo iraquiano em 2014, ao contrário do que acontece na Síria, onde estão de forma totalmente ilegal.

Donald Trump, do alto do seu trono cibernético, vangloriou-se por ter sido ele a dar a ordem de abate de Soleimani, segundo ele o “terrorista número 1 do mundo”, mas estas acções são tudo menos consensuais, até na arena internacional e entre os aliados dos EUA.

Emmanuel Macron, por exemplo, telefonou ao primeiro-ministro iraquiano para expressar apoio à soberania do país, numa crítica implícita ao ataque norte-americano, enquanto um antigo chefe do MI6 britânico descreveu o assassinato de Suleimani como “um acto de guerra”. Quando acontece concordarmos com um antigo chefe de um serviço-secreto imperialista, algo está muito errado.

O assassinato de um comandante de uma das mais importantes forças do exército iraquiano é, obviamente, um desrespeito por esse mesmo convite e as suas consequências são altamente imprevisíveis. O mesmo se pode dizer do assassinato de umas das figuras de topo do Estado iraniano.

Destruir estes dois homens, bem amados como heróis pelas populações resgatadas dos fanáticos salafistas (não só no Irão e Iraque, mas também na Síria), no mesmo inferno explosivo só terá como efeito aproximar ainda mais o povo iraquiano e iraniano e reduzir as tensões sectárias que os EUA tanto fizeram para promover, agora substituídas pelo ódio ao inimigo comum que tanta miséria trouxe à região.

Tornando o ataque ainda mais estúpido, matá-los nada irá fazer para mudar o que quer que seja. As suas missões estavam cumpridas, as suas ideias cimentadas nas instituições. Tudo o que lhes bastava era tornarem-se mártires para ascenderem ao estatuto de lendas. Os EUA fizeram o favor.

Nos dias que se seguiram, ameaças foram trocadas de um lado para o outro. Um comandante do IRGC afirmou que o Irão se reserva o direito de retaliar pela morte de Soleimani e que “35 alvos americanos na região estão ao seu alcance”. Trump, por outro lado, diz que o exército americano identificou “52 alvos de importância vital para o Irão e a sua cultura” que, caso este decida retaliar, serão atacados “VERY FAST AND VERY HARD” (assim mesmo, em Caps Lock).

O Irão não é conhecido por levar a cabo, no domínio da geopolítica, acções irreflectidas que ponham em causa a sua segurança e legitimidade, sendo pouco previsível que desencadeie ataques do nível daqueles a que os EUA nos têm habituado. É mais provável que assegurem o reforço da sua posição e das dos seus aliados na região, esperando por algum descuido do outro lado que lhe permita usar a força de forma legítima e legal do ponto de vista do direito internacional.

Pelo contrário, a situação no Iraque, um território devastado por várias guerras e conflitos nas últimas duas décadas, é altamente instável. No dia 4 de Janeiro, há relatos de que pelo menos um rocket terá explodido perto da embaixada americana na “Zona Verde” de Bagdade, danificando a estrada que lhe dá acesso. Também a Base Aérea de Balad, que alberga algumas forças americanas a 70km a norte da capital iraquiana, terá sido atacada com rockets. Não foram registadas vítimas.

As Kata’ib Hezbollah não reivindicaram estes ataques mas, entretanto, emitiram um comunicado às forças de segurança locais, apelando às pessoas para manter uma distância de pelo menos 1km das bases militares e outras instalações que alberguem tropas americanas a partir da noite de domingo, 5 de Janeiro.

A opinião pública iraquiana tem ultimamente estado bastante dividida no que toca ao papel do Irão e dos seus aliados na política interna do Iraque. No entanto, à luz destes últimos acontecimentos, essas questões passaram para um lugar menor nas preocupações da população e das principais forças iraquianas. As enormes multidões que se reuniram em Bagdade e noutras cidades iraquianas para acompanhar as marchas fúnebres de Mahdi e Soleimani, antes do corpo de este último seguir para o Irão, lançaram uma mensagem clara de que querem o fim das tropas americanas no país.

O Irão foi palco de gigantescas procissões funerárias em celebração de Soleimani.

No domingo, 5 de Janeiro, o Parlamento iraquiano reuniu em sessão extraordinária para discutir a resposta às acções norte-americanas. Apesar da ausência de cerca de 150 deputados sunitas e curdos, foi aprovada por maioria absoluta uma recomendação ao governo em que se lê que “o governo Iraquiano deve trabalhar no sentido de acabar com a presença de forças estrangeiras em solo iraquiano e proibi-las de usarem a sua terra, espaço aéreo e águas por qualquer razão”.

A coligação international anti-ISIS suspendeu entretanto as operações em território iraquiano, concentrando esforços na protecção das tropas americanas, britânicas e de outras forças ocidentais estacionadas no país. 

O Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão afirmou o seu interesse em que a estabilidade e unidade no Iraque não caia por terra vítima dos últimos acontecimentos, que “respeitará qualquer decisão” e que a permanência das suas forças militares no país depende da vontade do governo iraquiano.

Já Trump deu uma das suas respostas de bezerro: que, caso sejam convidados a sair, “Vamos impor-lhes sanções como nunca viram antes, jamais. Farão as sanções iranianas parecerem mais ou menos inofensivas.” e que “Temos uma base aérea extraordinariamente cara [no Iraque], que custou biliões de dólares a construir” e que os EUA não retirarão as suas forças a menos que o Iraque pague esses biliões de volta.

Porquê agora?

“O patriotismo é o último refúgio de um canalha.” Tal como Erdogan apostou em começar uma guerra contra os curdos para garantir a sua reeleição em termos favoráveis (com sucesso), Trump parece ter apostado numa jogada semelhante. Por entre o processo de destituição e os constantes escândalos em que a sua administração de patos-bravos está envolvida, começar uma guerra é uma manobra que raramente falha. Permite projectar uma imagem de macho patriótico e acusar a oposição de cobardia. Se tudo acabar em milhares de mortos mais à frente é de pouca consequência. Ou não fosse assim que toda esta tragédia no Iraque começou, no tempo de Bush Júnior.

Certamente não deverão ter faltado vozes de apoio na administração Trump e aparelho de Estado cheio de neocons e especuladores que vêem numa guerra com o Irão uma oportunidade de ouro de encher os bolsos às custas de sangue inocente. Contam nesta missão com o apoio do lobby saudita, turco e israelita, ansiosos de verem os EUA arcar com os custos de um conflito com o seu principal inimigo na região.

Pelo menos alguém está a ter uma boa semana.

Nos próximos tempos será importante ficar atento à forma como os media vão tentar vender-nos mais um acto de agressão imperialista. Soleimani é apresentado como um “bad guy” que gosta de matar americanos porque sim, a mesma retórica para débeis mentais com envenenamento cerebral terminal provocado por excesso de Fox News que levou à destruição do Afeganistão, Iraque e Síria.

Toda a gente que até à semana passada não sabia que Soleimani existia hoje sabe que era o novo Hitler.

Onde estavam esses martirizados americanos? A beber cocktails nas praias da Flórida? Ou a ocupar, destruir e pilhar a terra dos outros? Quem com ferros mata, com ferros morre.

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