Irão // Resistir às provocações dos vendedores de guerras~ 11 min
Por Duarte Guerreiro e Francisco Norega
O governo iraniano assumiu a responsabilidade pela queda do Voo 752 da Ukraine International Airlines nos arredores de Teerão, pedindo desculpa por um “erro humano” que custou a vida a 176 pessoas. Esta revelação provocou protestos na capital iraniana e um clamor nos mass media ocidentais contra o malvado regime.
A morte de civis inocentes é imperdoável e um pedido de desculpas não devolve as vítimas às suas famílias. No entanto, há algo de inédito aqui: o pedido de desculpas público e a ordenação de um inquérito às IRGC para apurar responsabilidades.
Quando é que ouvimos pela última vez um líder de um governo ocidental pedir desculpa pela morte de civis numa das suas aventuras imperialistas, e prometer encontrar e punir os culpados dentro das suas Forças Armadas? Nestes casos, o que acontece é as mortes de civis serem desvalorizadas como infelizes danos colaterais, e os culpados muito mais rapidamente são condecorados do que punidos.
O Irão tem um sistema político que é difícil de ver com bons olhos – autoritário e teocrático, implacável a reprimir as vozes dissonantes. E, ainda assim, um sistema que demonstrou ser mais sério e ponderado do que qualquer outro interveniente no que diz respeito aos acontecimentos das últimas semanas no Médio Oriente.
O assassinato de Soleimani e Mahdi na noite de 4 de Janeiro, num ataque ordenado directamente por Trump, colocou o Médio Oriente à beira de um novo e sangrento conflito. Soleimani foi executado por ser o “world’s number 1 bad guy” e presumivelmente Mahdi ganhou o direito de morrer a seu lado por ser o seu associado no Iraque. Sobre as restantes 8 pessoas que os acompanhavam, ninguém se questionou, ninguém emitiu qualquer pedido desculpas nem ninguém foi responsabilizado ou punido.
Após os 3 dias de luto pela morte de uma das figuras mais emblemáticas do Estado iraniano, a retaliação foi levada a cabo pelas forças armadas iranianas de uma forma incisiva e, acima de tudo, limpa. Tão limpa que não fez grandes manchetes nem abriu telejornais, porque os mass media não a puderam usar como casus belli. Uma retaliação que enviou uma mensagem clara aos EUA e aos seus aliados, mas cujo significado não chegou ao público.
Na noite de 7 de Janeiro, 22 mísseis balísticos foram disparados pelo Irão contra duas posições norte-americanas: a base aérea Al Asad, no oeste do Iraque, e instalações em Erbil, no Curdistão Iraquiano. O Ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano afirmou que o ataque era “uma medida proporcional de defesa de acordo com o Artigo 51 da carta das Nações Unidas”, que o Irão dava por terminada a retaliação pela morte do seu general e que desejava uma resolução diplomática da crise, apesar de estar pronto para “se defender contra qualquer agressão”.
O detalhe mais importante deste ataque: apesar de os mísseis terem atingido os seus alvos, não houve mortes. Porquê? Porque o objectivo do Irão não era assassinar mas danificar a máquina de guerra dos EUA, e mostrar que estão equipados para o fazer. Por isso, duas horas antes de lançarem o ataque, alertaram as autoridades iraquianas das suas intenções, que passaram a mensagem às forças norte-americanas que, assim, se puderam pôr a salvo.
O Irão mostrou desse modo que as posições norte-americanas não são assim tão invulneráveis, nem mesmo a base Al Asad, onde Trump disse sentir-se “muito seguro” durante a sua visita no passado Dia de Acção de Graças. Não sabemos se as defesas anti-aéreas americanas foram activadas mas, se foram, não conseguiram impedir que 15 dos 17 mísseis dirigidos a esta base atingissem o alvo.
E a mensagem parece ter sido compreendida pelo bezerro, que recuou nas suas ameaças. Num comunicado na manhã seguinte, Trump rejeitou a possibilidade de uma retaliação de força contra o Irão, optando antes por mais uma ronda de sanções.
Não fosse a tragédia do avião ucraniano, o Irão teria conseguido uma saída diplomática e militarmente brilhante desta delicada crise. Mas, nessa mesma manhã, enquanto o IRGC estava em estado de alerta máximo para a eventual retaliação dos EUA prometida dias antes por Trump, um erro humano ditou a morte das 176 pessoas a bordo do voo 752 da Ukraine Airlines.
Este avião tinha descolado do aeroporto de Teerão minutos antes e foi erroneamente identificado como um míssil de cruzeiro que se aproximava de uma importante posição dos IRGC. O operador que recebeu a informação estava obrigado a estabelecer contacto com o comando para verificação. Uma alegada falha no sistema de comunicações e uma janela de apenas 10 segundos para decidir terminou com o lançamento de um míssil contra o avião.
Amir Ali Hajizadeh, comandante das Forças Aeroespaciais dos IRGC, aceitou as responsabilidades pela tragédia, afirmando numa conferência de imprensa que “desejava ter morrido e não ter testemunhado este acidente”.
A admissão da culpa pelos IRGC pela morte destas 176 pessoas, muitas delas iranianas, despertou uma onda de descontentamento nas redes sociais e as vigílias pelas vítimas rapidamente se transformaram em protestos contra o governo, em contraste com as demonstrações de ampla união da semana passada, em resposta ao assassinato de Soleimani.
Trump não perdeu tempo, publicando no Twitter em inglês e farsi uma mensagem “ao bravo, sofredor povo do Irão: estive ao vosso lado desde o início da minha Presidência, e a minha Administração vai continuar a apoiar-vos”.
Também Mike Pompeo, Secretário de Estado, tweetou o seu apoio ao povo iraniano, que afirma estar “farto das mentiras, da corrupção, da inaptidão e da brutalidade do regime”. De notar que o Twitter está bloqueado no Irão e de qualquer modo nunca foi uma plataforma popular. Estes são tweets para consumo doméstico. Afinal de contas, só o consentimento do público americano é necessário para uma guerra contra o Irão, os iranianos não têm opinião no assunto.
O Secretário da Defesa Mark Spencer, por seu lado, afirmou numa entrevista que os EUA estão disponíveis para dialogar com as autoridades em Teerão, admitindo que “ainda são o governo legítimo” do país, mas que esse diálogo devia girar à volta de “uma série de passos através dos quais o Irão se tornará um país mais normal”.
Não cheira isto a intervenção em preparação a pretexto de libertar o povo dos seus tiranos? Talvez o último aviso de Trump esclareça algumas dúvidas que restem: “Não pode haver outro massacre de manifestantes pacíficos, nem um bloqueio da Internet. O mundo está a ver.”
Tomara que os EUA fossem igualmente céleres a criticar as políticas de repressão do estado espanhol contra os organizadores e participantes no referendo pela independência da Catalunha em 2017 (pelo qual 13 políticos catalães acabaram por ser condenados a pesadas penas de prisão). Ou os intermináveis casos de brutalidade policial contra os Coletes Amarelos e outros movimentos de contestação em França durante o último ano – nos quais pelo menos 2 pessoas morreram (nas estimativas mais tímidas), 25 pessoas ficaram cegas de pelo menos um olho, mais de 500 ficaram feridas e largas centenas identificadas ou detidas.
A verdade é que antes mesmo de o Irão assumir as responsabilidades, já choviam condenações vindas de vários respeitáveis líderes. Dá para imaginar que as reacções do “mundo democrático” e dos seus meios de comunicação terão sido bem diferentes aquando da queda do Voo 655 da Iran Air em 1988, depois de ter sido atingido por um míssil norte-americano. Nesta tragédia morreram 290 pessoas.
O governo norte-americano nunca pediu oficialmente desculpas pelo sucedido e ofereceu compensações ao Irão e às famílias dos falecidos apenas na base de ex gratia, ou seja, que o faziam por gentileza e benesse. Bush Sénior, então vice-presidente, disse num dos seus discursos “Nunca pedirei desculpas pelos Estados Unidos da América.”. Em 1990, o capitão e o segundo oficial do USS Vincennes, de onde foi disparado o míssil, foram condecorados pelo seu serviço.
Não há como desvalorizar nem como desculpar a mais recente tragédia. No entanto, é preocupante a possibilidade de, em última instância, ser utilizada como pretexto para mais uma guerra imperialista no Médio Oriente e para a eliminação de um entrave à hegemonia mundial dos EUA e dos seus compinchas. Imaginemos que em 1988, a queda do Voo 655 provocava protestos nos EUA em que milhares de pessoas pediam a deposição do presidente e o fim do governo norte-americano, levando os líderes do Médio Oriente a lançar uma ofensiva contra os EUA para libertar o povo do sistema que o oprimia.
A demonização do Irão e das suas figuras prepara o caminho para uma eventual “intervenção musculada” para dar à população oprimida a democracia pela qual tanto anseia, como o ocidente tem o hábito de fazer em todos os países que lhe façam frente, seja na América Latina, em África ou na Ásia.
É por isso que é importante desconstruir este discurso que demoniza o Irão e Soleimani como um malvado opressor e assassino. Que Soleimani era um comandante de forças especiais que faziam o que as forças especiais fazem – matar, torturar, raptar, terrorismo, etc. – é duvidoso que alguém o negue. Provavelmente até o apoiante mais fervoroso do “regime” o admite.
Mas era também uma das figuras mais amadas por boa parte da população iraniana, como demonstram as enormes multidões nas marchas fúnebres por todo o Irão, mesmo em regiões de maior oposição ao governo iraniano. Talvez por ser um símbolo de que é possível vencer contra o poderio imperialista dos EUA e seus aliados e devolver paz à região – e ter orgulho nisso.
O sentimento é perfeitamente compreensível, tendo em conta o calvário que a região sofre há décadas às mãos dos EUA. Sem o Irão, sem Soleimani, o ISIS teria enfrentado forças opositoras muito mais divididas – o principal papel de Soleimani foi como diplomata com uma mão na pistola, capaz de convencer milhentas forças distintas quasi-inimigas a trabalhar conjuntamente contra um inimigo comum.
Pela forma como executou a sua parte da dança geopolítica das últimas semanas de forma limpa, sem mortes, o que em última análise contribuiu para não se iniciar um novo conflito de larga escala na região, o Irão merece o nosso respeito, mesmo que não se passe cheques em branco a tudo o resto que o seu governo faz.
Merece o nosso respeito por ter sido, nos últimos anos, uma das principais forças a apoiar no local grupos que fizeram frente ao ISIS. Merece o nosso respeito por ser um dos últimos entraves à selvajaria do imperialismo ocidental que há décadas tenta desestabilizar todo o Médio Oriente e Norte de África pela força. E merece o nosso respeito também por assumir as responsabilidades por atingir o Boeing ucraniano, pedindo desculpa e prometendo apurar e punir os culpados pela morte destas 176 pessoas.
Quando é que Bush e os seus compinchas europeus pediram desculpa por terem invadido o Iraque sobre o falso pretexto de que a ditadura de Saddam Hussein tinha armas de destruição massiva, desencadeando um conflito que deixou, segundo estimativas conservadoras, cerca de 200 000 civis sem vida?
As Forças de Operações Especiais da era de Barack Obama passaram anos na Síria a treinar e armar grupos de “rebeldes moderados”. Estas armas acabaram repetidamente nas mãos de grupos jihadistas, quando não eram os próprios rebeldes a desertar para esses grupos depois do término dos programas de treino. O treino e o armamento dos EUA contribuíram para a tortura, morte, decapitação e escravatura de milhares de pessoas nos territórios controlados por grupos jihadistas como a al-Nusra (o braço da al-Qaeda na Síria).
Quando é que Obama pediu desculpa por isto, e prometeu punir os responsáveis? Quando é que as potências europeias pediram desculpa pela agressão à Líbia, a morte de Muammar Kaddafi e a espiral de violência que se seguiu?