O coronavírus expõe a grosseira estupidez do sistema capitalista~ 16 min
Por Francisco Norega
Com mais de 182 mil casos e 7 mil mortes em menos de três meses, o coronavírus tornou evidentes as fragilidades de uma saúde pública sob pressão do neoliberalismo e colocou a economia mundial à beira da maior crise desde 2008. O encerramento massivo de indústrias, a supressão de um sem número de rotas aéreas e uma queda abrupta nas actividades ligadas ao turismo – coisas de um modo geral vistas com bons olhos pelas gentes adeptas do Decrescimento e tidas como impensáveis por qualquer burocrata, capitalista ou fã deste mundo em eterno e impossível crescimento económico – tornaram-se, pela força das circunstâncias, uma realidade. Ao pânico dos mercados e daqueles que, ao final do mês, contam os ganhos aos milhões, ou milhares de milhões, contrapõe-se certamente um regozijo do planeta, um alívio (mesmo que momentâneo) dos ecossistemas constantemente sob pressão da febre do “progresso”.
Do lado humano, claro, não há nada a celebrar. Mesmo que pudéssemos sentir um certo schadenfreude perante o facto das nossas estimadas elites políticas andarem todas a apanhar coronavírus, por entre as suas importantes reuniões internacionais e apertos de mão que decidem o destino dos restantes mortais, é parca consolação. Novamente, a classe ditará quem irá sofrer mais com as decisões políticas dos que pensaram ser uma excelente ideia extirpar sistemas de saúde públicos para beneficiar capital investido em sistemas privados e seguradoras. Agora, subitamente, todos eles descobrem que afinal a “sociedade” existe, ao contrário do que disse Thatcher. Ou descobririam, se não estivessem todos a fugir para os seus bunkers, para esperar que os pobretanas acabem de morrer longe.
Serão os trabalhadores, impossibilitados de fugir ao trabalho de limpar, alimentar e produzir para o mundo. Para nós não há como escapar nem tão-pouco desejo de abandonar os nossos semelhantes a quem o coronavírus mais fustigará. Somos nós que vivemos em casas em más condições, húmidas e bolorentas (caso especialmente grave em Portugal, que tem das taxas de pneumonia mais altas da Europa), expulsos de habitação saudável a preços comportáveis por salários miseráveis pelos especuladores do AirBnB, que agora vão chorar aos governos que os salvem.
São também os trabalhadores que não terão escolha senão tornar-se o último amparo dos seus membros de família mais vulneráveis ao vírus, os idosos e doentes. Somos nós quem irá perder os nossos trabalhos porque os idiotas que governam a economia mundial preferiram fugir aos impostos a garantir que existem sistemas sociais robustos, e agora o coronavírus está a empurrar a sua preciosa economia para mais uma depressão. E adivinhem quem irá pagar por essa também?
Medidas de contenção em comparação
O coronavírus não é provavelmente razão para um estado de pânico completo, mas também não deve ser menosprezado. Embora seja cedo para tirar conclusões definitivas, a taxa de mortalidade estimada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 3,4%. Uma vez que o coronavírus é mais letal em pessoas de maior idade, é expectável que a mortalidade na UE seja diferente da dos países com populações menos envelhecidas. Estes são valores bastante mais altos que os da taxa de mortalidade da gripe normal, muito inferior a 1% (no caso dos países com bons sistemas de saúde, ronda os 0,1%). A título de comparação, estima-se que a taxa de mortalidade da epidemia de gripe de 1918 tenha estado abaixo dos 5%, mas que tenha custado a vida a entre 17 a 50 milhões de pessoas (entre 1% a 3% da população mundial da altura) devido à transmissão generalizada.
As medidas draconianas impostas em Wuhan e na província de Hubei, por muito drásticas e chocantes que possam parecer, foram muito provavelmente cruciais para impedir a propagação descontrolada deste vírus por toda a China, o que poderia ter custado a vida a milhões de pessoas. A existência de um aparelho de estado altamente centralizado e burocrático teve consequências contraditórias no desenrolar da epidemia.
Por um lado, o seu carácter repressivo levou à censura dos primeiros médicos a alertar sobre este novo vírus e atrasou a resposta à epidemia. Por outro, o controlo estatal da economia permitiu que, quando foi decretada quarentena, não fossem apenas encerrados serviços e espaços públicos mas todas as actividades económicas não-essenciais. A saúde pública foi colocada à frente do lucro e do bem-estar das bolsas de valores, e até as enormes indústrias que são o motor das exportações chinesas ficaram paradas durante mais de um mês, o que provocou uma redução da poluição inédita não só em Hubei mas em toda a China.
Já na Europa, a história está a desenrolar-se de forma bastante diferente. A demora das autoridades na reacção aos surtos no Irão e na China foi duramente criticada pelo Ocidente e, no entanto, quando a epidemia cá chegou em força, não se pode dizer que as autoridades tenham respondido da forma rápida e agressiva que fora exigida àqueles malvadões regimes, e recomendada pela própria OMS. Em vez disso preferiu-se desperdiçar o tempo comprado e as aprendizagens feitas pela China a publicar artigos a regojizarem-se pela miséria alheia.
O primeiro surto em Itália foi identificado a 21 de Fevereiro na vila de Codogno, na Lombardia, tendo sido confirmados nos dias seguintes dezenas de casos nas povoações vizinhas e numa outra povoação no Véneto. O isolamento dessas povoações foi insuficiente para conter a propagação do vírus, que se espalhou nas duas semanas seguintes por todas as regiões italianas. Centenas de casos começaram a aparecer em praticamente todos os países europeus, a grande maioria ligados a indivíduos que tinham regressado de Milão, Veneza ou outras partes de Itália. Ao não se ter optado por medidas mais agressivas para conter a propagação do vírus, cerca de 28 mil pessoas estão infectadas em Itália e outras 38 mil no resto da Europa.
Durante este período, um pouco por toda a Europa, escolas e universidades em que foram confirmados casos foram encerradas, bem como certos equipamentos públicos nas zonas mais afectadas, e eventos que impliquem uma grande concentração de pessoas foram cancelados. No entanto, só 16 dias depois da eclosão do surto de Codogno, é que foram anunciadas medidas mais agressivas no Norte de Itália, onde está o “coração” da economia italiana e o maior foco europeu desta epidemia. Essas medidas foram depois alargadas a toda a Itália. O encerramento e isolamento deste país é uma decisão difícil que terá um impacto enorme na vida dos 60 milhões de pessoas que aí habitam, mas certamente a decisão certa.
As medidas anunciadas incluem: a limitação de deslocações para dentro e fora do país, e mesmo dentro dele, a “necessidades profissionais verificadas, situações de emergência e razões de saúde”; o encerramento de todas as escolas, universidades, museus, centros culturais, cinemas, teatros, bares, casinos, discotecas, resorts de ski, piscinas e pavilhões desportivos; a suspensão de todos os eventos culturais, religiosos ou festivos; e a proibição de baptismos e casamentos.
Ainda assim, há algumas diferenças importantes relativamente às medidas postas em prática em Wuhan, intrinsecamente ligadas ao modelo económico e social ocidental. O ponto que diz respeito, por exemplo, aos centros comerciais e às grandes superfícies comerciais, apenas obriga ao encerramento nos feriados nacionais e nos dias que os antecedem. Também os restaurantes e bares estão autorizados a funcionar, embora apenas entre as 8h e as 18h, desde que os clientes mantenham entre si uma distância de segurança de um metro. Sobre outros estabelecimentos comerciais e industriais, não parece haver quaisquer indicações.
É importante que os patrões e os grandes industriais continuem a ter disponíveis as massas para fazer os seus negócios trabalhar, para a economia não parar. A gravidade da situação encerra vários pilares da nossa sociedade – os estabelecimentos de endoutrinação (sejam eles de ensino ou religiosos) e os estabelecimentos de alienação e distracção massiva -, mas há duas coisas que permanecem praticamente intocáveis: a produção e o consumo. Mesmo numa situação de emergência no que toca à saúde pública.
Ao constatar que mesmo estas medidas não estavam a ser suficientes para conter o vírus, o governo italiano anunciou durante a semana mais medidas: o encerramento de todas as lojas (excepto supermercados e farmácias) e de quaisquer restaurantes em que não fosse possível garantir a tal “distância de segurança” entre clientes. Quase deu esperança de que a saúde pública estivesse a ser finalmente colocada à frente da sagrada produção. Mas não. Todas as empresas são aconselhadas a fechar todos os seus departamentos menos, adivinhem, aqueles que sejam essenciais… à produção. Também as indústrias podem permanecer abertas, assim como os bancos.
No que toca aos mecanismos institucionais de “solidariedade”, há também um fenómeno interessante. À eclosão da epidemia em Itália, a China respondeu enviando mais de mil ventiladores pulmonares, dois milhões de máscaras, uma equipa de médicos, plasma de doentes curados e toneladas de material médico. Também Cuba enviou uma equipa de médicos para apoiar os profissionais de saúde locais. Entretanto, a Itália continua à espera pela resposta ao pedido de activação do Mecanismo de Protecção Civil da União Europeia, que foi feito a 27 de Fevereiro.
No resto da Europa, quando Espanha, França e Alemanha já contavam com mais de 2 mil casos cada, muito poucas medidas tinham sido anunciadas, tendo-se tornado praticamente impossível conter a propagação do vírus. Só nos últimos dias, quando já havia perto de 30 mil casos em toda a Europa, é que começaram a ser anunciadas medidas mais agressivas por parte de vários países. No entanto, o cenário é o mesmo – em Espanha, por exemplo, todas as pessoas estão proibidas de andar na rua a não ser que seja para irem comprar comida, à farmácia ou… trabalhar.
Também nos EUA a resposta está a ser muito lenta – consequência do seu sistema de saúde privado e do negacionismo do poder político como forma de proteger a indústria – e o número real de casos deverá ser bastante superior aos números oficiais – muitos dos casos confirmados não têm histórico de viagem a áreas afectadas nem relação com outros casos, o que quer dizer que a transmissão dentro das comunidades está a acontecer livremente e poderá ser grande. Desde Janeiro até sexta-feira, apenas tinham sido realizados em todos os EUA cerca de 11 mil testes, sensivelmente os mesmos que a Coreia do Sul estava a fazer diariamente durante o seu pico. Mais uma vez, quem pagará pela estupidez das autoridades serão os segmentos mais vulneráveis da sociedade: pessoas idosas, pessoas sem acesso a cuidados de saúde, pessoas sem-abrigo e os presos e as presas.
A população prisional é uma das mais vulneráveis das nossas sociedades, por razões mais que evidentes. Mais ainda em países em que o sistema prisional é privado ou semi-privado, como no caso dos EUA e de França. A eclosão de surtos nas prisões teria consequências trágicas, pelo que medidas preventivas são absolutamente necessárias. Em vários países europeus foram reduzidas, ou mesmo totalmente proibidas, as visitas com o argumento de proteger esta população. Mas será que faz sentido isolar completamente quem já está de tal maneira privado de liberdade? Depois das revoltas dos últimos dias nas prisões italianas, em que morreram pelo menos 6 pessoas, é urgente encontrar soluções adequadas à situação excepcional que estamos a viver.
Uma estratégia diferente foi encontrada pelo Irão, esse malvadão regime, que decidiu libertar 70 mil presos e presas (quase um terço do total) num esforço de conter o surto. Será que as virtuosas democracias ocidentais serão capazes de seguir o mesmo caminho? Provavelmente estão mais preocupadas em não contrariar os EUA e a sua estratégia de sanções criminosas ao Irão, à Venezuela e a outros malvadões regimes, sanções que englobam inclusivamente produtos médicos e que apenas contribuem para exacerbar o problema e agravar a pandemia global.
Revolta contra o autoritarismo ou responsabilidade colectiva?
É crucial estarmos sempre atentos a derivas autoritárias sustentadas em perigos ou inimigos fabricados, que se alimentem de preconceitos e medos irracionais. Resistiremos sempre a qualquer limitação arbitrária da liberdade individual.
Infelizmente, neste caso, não há qualquer arbitrariedade e o inimigo é bem concreto. O conjunto das nossas acções individuais vai determinar qual será o desfecho desta história. A aparente despreocupação com que centenas de pessoas inundaram as praias de Cascais na quarta-feira e o incumprimento da quarentena por parte de várias pessoas no concelho de Felgueiras são dois exemplos de como a irresponsabilidade pode contribuir para o agravar da situação.
A questão que se impõe é se vamos momentaneamente adaptar o nosso estilo de vida para tentar conseguir dar um desfecho menos trágico a esta epidemia, ou se queremos continuar a fazer as nossas vidas despreocupadamente, como se nada se passasse. Porque, se optarmos por esta última hipótese, estaremos a pôr em risco os sectores mais vulneráveis da nossa sociedade, arriscar-nos-emos ao colapso de um sistema de saúde já debilitado por mais de uma década de cortes e abriremos portas a que este vírus consiga encontrar caminho para sociedades muito mais vulneráveis do que as nossas, como as dos continentes africano e sul-americano.
O continente africano é uma das regiões mais vulneráveis do mundo onde a escassez de meios nos serviços de saúde faz temer consequências desastrosas na eventualidade do surgimento de grandes surtos. Seria, por isso, essencial que os senhores turistas e os homens de negócios europeus repensassem as viagens a todos esses destinos exóticos. Um exemplo de como o egoísmo e a estupidez de um só indivíduo pode ter consequências desastrosas chega-nos do Senegal: dos 21 casos aí confirmados, 16 foram infectados pelo mesmo homem que chegou ao país vindo de Itália.
Coronavírus, o campeão da luta contra as alterações climáticas?
A única coisa positiva desta epidemia parece mesmo ser a redução massiva das actividades que mais contribuem para as alterações climáticas. Nos dois maiores focos no continente asiático, na China e no Irão, as decisões do poder político levaram ao encerramento de um sem número de indústrias e a uma inédita redução dos níveis de poluição. Embora a uma escala menor, os níveis de poluição também estão em queda no Norte de Itália.
No Ocidente, a maior parte dos avanços no campo do combate às alterações climáticas não vêm de decisões políticas para responder à emergência de saúde pública, mas das oscilações na procura e na oferta. A maior parte das fábricas que está com o funcionamento afectado está-o por falta de matérias primas e de produtos fornecidos normalmente pela China, e é a baixa da procura que está a levar um sem número de companhias aéreas a cancelar rotas ou, pelo menos, a reduzir a sua frequência. Uma companhia aérea britânica, a FlyBe, faliu há duas semanas, e outras poderão seguir-se. Um pouco por toda a Europa, os hotéis e outros alojamentos viram as reservas cair abruptamente e as actividades ligadas ao turismo estão a registar enormes perdas.
Em dois meses, uma epidemia fez mais pelo ambiente do que as pomposas conferências sobre o clima em que centenas de governantes se reúnem todos os anos. Está a mostrar que uma redução das actividades industriais não é só possível como pode ter consequências positivas e visíveis num curto espaço de tempo. Que provavelmente não necessitamos da absurda quantidade de aviões que circulam diariamente nos nossos céus. Que as populações da União Europeia não têm de sustentar centenas de burocratas em constantes viagens, estadias em hotéis e refeições fastas para participar nas reuniões dos Conselhos de Ministros europeus, da Comissão Europeia e restante panóplia de órgãos, já que foi agora descoberto que as videochamadas são uma alternativa igualmente funcional.
Claro que é pela classe trabalhadora que vão ser sentidas as consequências deste abrandamento de uma série de actividades económicas, mesmo aquelas mais prejudiciais para o ambiente. Aos milhões perdidos pelos gestores e accionistas corresponderão milhões de pessoas atiradas para o desemprego ou com salários cortados. É em alturas como esta que é mais urgente fortalecer as relações de solidariedade e apoio mútuo, exigir sistemas de saúde que não estejam reféns dos interesses privados e mecanismos efectivos de protecção social.