Portugal // Coronavírus é usado para suspender direito à greve~ 5 min
Por Duarte Guerreiro e Simone Vieira
O Presidente da República, depois de ouvir o governo e com o apoio da Assembleia da República (com os votos favoráveis do PS, PSD, Bloco de Esquerda, CDS e PAN), decretou ontem o estado de emergência. Desta forma, tornou-se possível publicar o decreto que define os termos legais em que o Estado pode atuar neste contexto de emergência. À semelhança do que aconteceu noutros países, o atual cenário de calamidade pública nacional e internacional serviu de mote para o efeito.
O estado de emergência revela-se essencial para que o governo possa agir além do previsto na Constituição da República Portuguesa. Os direitos nesta consagrados funcionam, como defende alguma doutrina jurídica, como um sol que irradia todo o sistema jurídico. Um sol que é suposto ser intocável. Mas, com fundamento no combate à calamidade pública, o Estado pode agora aplicar medidas que contrariam o previsto na Constituição. Este tipo de enquadramento serve para salvaguardar os Estados e garantir que não tomam medidas inconstitucionais porque o inconstitucional passa, de certa forma, a ser aceitável.
Com a justificação de evitar a transmissão e propagação do vírus e de uma forma geral, limita-se o direito de deslocação dentro do território nacional, restringe-se o direito de deslocação internacional, torna-se possível demarcar o direito de reunião e manifestação e veda-se o direito de resistência, nos termos do Decreto.
Mas faz-se mais do que isto. Suspende-se o direito à greve.
Fica suspenso o exercício do direito à greve na medida em que possa comprometer o funcionamento de infraestruturas críticas ou de unidades de prestação de cuidados de saúde, bem como em setores económicos vitais para a produção, abastecimento e fornecimento de bens e serviços essenciais à população;
Em países como Espanha, França ou Itália, a suspensão deste direito não se considerou, por se tratar de um direito constitucional. Apesar de estarem entre os países com mais casos de coronavírus em mãos, nem assim se justificou atentar contra o fundamental direito à greve. Tanto mais que tem sido crucial, por exemplo em Itália, para que os trabalhadores pudessem zelar pelo bem comum e fechar os negócios de patrões mais zelosos dos seus lucros, que se recusavam a encerrar empresas não-essenciais. O facto de também em Portugal se tratar de um direito constitucional, não o deixou a salvo de um Governo que se diz “socialista”.
Assumir a suspensão do direito à greve, implica compactuar com uma medida que mete em causa a relação de forças entre os trabalhadores e as entidades empregadoras, aumentando (ainda mais) a vulnerabilidade dos primeiros. Aceita-se que, em pleno contexto de calamidade pública, se sujeitem trabalhadores dos setores vitais da economia a uma maior exposição ao vírus, mas recusa-se-lhes o direito de resistirem e de reagirem caso neguem os seus direitos enquanto trabalhadores.
Os “socialistas” que odeiam greves
A decisão de incluir restrições à greve no estado de emergência deve ser vista no contexto do histórico recente do Partido Socialista, em que foi extremamente activo no ataque ao direito à greve, e tendo em conta que está decorrer uma importante greve do sindicato de estivadores SEAL [Actualização 2020/03/20 – A greve foi voluntareamente suspensa devido ao decreto de emergência].
No seu mandato anterior, optou por quebrar uma greve de enfermeiros via ameaças de processos disciplinares em massa, tentou quebrar uma greve de estivadores com o uso de fura-greves escoltados pelo corpo de intervenção da polícia e abusou da requisição civil para quebrar a greve dos motoristas de matérias perigosas, que tiveram direito a polícia e guarda republicana à caça ao grevista incumpridor e militares a substituírem os motoristas no serviço.
A greve dos estivadores no porto de Lisboa começou devido a repetidos atrasos graves, pagamentos parciais e não actualização de salários dos estivadores afiliados à empresa de trabalho portuário A-ETPL. A título de exemplo, a meio de Fevereiro deste ano, os visados apenas tinham recebido 390€ por 45 dias de trabalho. Pouco mais de metade do salário mínimo nacional por mês e meio de trabalho.
Alegando incapacidade financeira da empresa, os operadores portuários querem agora dá-la como insolvente, de modo a justificar o despedimento de 54 estivadores. Desde o dia 17 que a A-ETPL está a impedir os seus trabalhadores de aceder aos seus postos de trabalho e cumprir os serviços mínimos, numa manobra de lockout patronal, impedindo o abastecimento da população em tempo de pandemia.
O novo decreto de emergência e as suas provisões para a suspensão de greves assentariam que nem uma luva à purga que o Partido Socialista há muito se dispôs a fazer das forças sindicais organizadas e combativas nos locais de trabalho em Portugal.
Se a intenção fosse salvaguardar o bem-estar da população, o governo há muito que teria agido em situações de indústrias não-essenciais, como os call centers, onde dezenas de pessoas trabalham em espaços apertados com ar recirculado e identificação biométrica que exige que toda a gente ande a palmilhar as mesmas superfícies. Isto apesar dos repetidos alertas e denúncias por parte de sindicatos como o STCC que exigem encerramentos e teletrabalho.