EUA // Covid-19: negócio das prisões ameaça milhares~ 8 min
Por Simone Vieira
O sistema de justiça penal americano conta com quase 2,3 milhões de pessoas, distribuídas por 1833 prisões estaduais, 110 prisões federais, 1772 estabelecimentos prisionais juvenis, 3134 prisões locais, 218 estabelecimentos prisionais para imigrantes e 80 prisões para nativo-americanos. Depois há ainda as prisões militares, os centros de compromisso civil, os hospitais psiquiátricos estaduais e as prisões nos territórios ultramarinos dos EUA.
Os número chegam-nos através de um relatório produzido no mês de Março deste ano pela Iniciativa pela Política Prisional, uma plataforma focada em denunciar os danos provocados pelas políticas de segregação racial e de criminalização massiva implementadas pelos EUA..
Ao longo de décadas, a “guerra às drogas” foi usada como pretexto por presidentes como Richard Nixon, Ronald Reagan e Bill Clinton para dar continuidade às políticas de segregação racial (leis de Jim Crow) aplicadas no final do século XIX, depois da abolição da escravatura; e condenar milhares ao isolamento social. Políticas focadas em perseguir a população afro-americana e que se foram estendendo ao longo dos anos às populações latino e nativo-americanas. Atualmente, 60% dos 2,3 milhões de pessoas enclausuradas são afro-americanas (40%), latinas (19%) e nativo-americanas (1%). Todos de contextos socioeconómicos vulneráveis.
A “guerra às drogas” foi travada com enquadramentos legais específicos que facilitaram a detenção das populações mais pobres, com o intuito de perpetuar a segregação racial e ao mesmo tempo alimentar o negócio das prisões nos EUA. Muita da regulação que mais contribuiu para o aprisionamento em massa que se intensificou a partir dos anos 70 foi desenhada pelo Conselho de Intercâmbio Legislativo Americano (ALEC). Criado em 1973 por conservadores políticos e legisladores, este conselho dedicou-se a criar propostas de leis que beneficiaram determinados interesses corporativos em diversas áreas ao longo das últimas décadas; desde a agricultura, passando pela saúde, educação, trabalho, entre outras.
Na área das prisões, armas, crime e imigração, o ALEC desenvolveu projetos de lei com arquitecturas legais pensadas para incentivar as detenções. Projetos de lei que foram apresentados junto de diversos governadores que decidiram vender-se ao lobby corporativo em troca da aprovação desses projetos nos seus estados federais. O crescente número de prisioneiros, promovido pela nova regulação, foi aumentando os lucros das corporações dedicadas à indústria das prisões, desde o fornecimento de refeições aos (inúteis) seguros de saúde, atribuídos a cada novo prisioneiro que entra no sistema.
A tudo isto acresce ainda o trabalho forçado com mão de obra a ser explorada a custo zero ou a receber valores entre os 0,86 cêntimos e os 3 dólares por dia. A exploração dos prisioneiros alimentou durante anos, e a título de exemplo, a produção da conhecida Victoria Secrets – entre muitas outras marcas.
O resultado está à vista. O sistema prisional americano cresceu e os prisioneiros vivem amontoados em edifícios sem as mínimas condições de segurança e higiene. Mais de 555 000 pessoas estão presas sem julgamento ou sentença. Incapazes de pagar as cauções no valor de 10 000 dólares que lhes são exigidas para que sejam libertadas e incapazes também de suportar os custos que um julgamento acarreta, estas pessoas são induzidas a não irem a julgamento sob a ameaça da sentença as condenar a vários anos de prisão. Por isso, o que o sistema judicial lhes diz é que compensa mais cumprirem o tempo que lhes é atribuído no momento da detenção do que tentarem defender-se.
Depois, há a liberdade condicional. Um terço da população dentro dos estabelecimentos prisionais foi detida por violações, na sua maioria não provadas, da liberdade condicional. Outros tantos em prisão preventiva. Imigrantes detidos por falta de documentos. E refugiados com pedidos de asilo legítimos amontoados em prisões enquanto esperam por uma resposta que nunca mais chega.
77 milhões de pessoas têm registo criminal. E 113 milhões de adultos têm um familiar direto que passou pela prisão. Uma vez preso, perde-se o direito ao voto e o acesso ao trabalho ou a uma habitação digna torna-se praticamente impossível; no que é um sistema que condena estas pessoas ao eterno isolamento social.
Em tempos de pandemia Covid-19
A pandemia Covid-19 aumentou a insegurança dentro dos estabelecimentos prisionais. A falta de condições e o risco de contágio geraram uma onda de protestos por todo o sistema prisional. O Departamento Federal das Prisões ainda não divulgou nenhum plano de ação para proteger os prisioneiros e prisioneiras. E as empresas privadas contratadas para gerir alguns dos estabelecimentos prisionais também não parecem muito preocupadas. Suspenderam-se as visitas familiares, isolando ainda mais quem vive esta crise atrás das grades, mas nada foi feito para diminuir o risco de transmissão dentro das prisões. Toda a população prisional está em perigo.
Em especial perigo estão as 14 000 crianças migrantes detidas pela Imigração e Execução Aduaneira (ICE) ou pelo Serviço de Regularização dos Refugiados (ORR). O Tribunal de Comarca dos EUA pondera a sua libertação, mas até agora ainda nada foi feito. Algumas dezenas de manifestantes têm protestado junto dos estabelecimentos prisionais onde estas crianças se encontram, exigindo a sua libertação.
Entretanto, o risco de contágio Covid-19 deu lugar a diversas greves. Greves de fome e greves à exploração laboral a que os reclusos estão sujeitos dentro dos estabelecimentos. Exigem a libertação imediata dos reclusos com mais de 50 anos, com graves risco de saúde, reclusos que tenham sofrido violações da sua liberdade condicional e com menos de um ano de sentença para cumprir.
O estabelecimento prisional Essex County, em Nova Jérsia, onde se encontram muitos imigrantes detidos pela ICE, foi o primeiro a entrar em greve. Em greve de fome e em greve ao trabalho dentro da prisão. As condições desta prisão, já bastante degradantes antes da chegada pandemia, agravaram-se. Os reclusos defendem agora a libertação imediata de todos os que lá se encontram.
Os prisioneiros de Hudson County, em Nova Jérsia – entre eles, vários detidos pela ICE – também entraram em greve. Exigem artigos de higiene pessoal básicos, como sabonete e papel higiénico. Denunciam a falta de condições dentro da prisão e o isolamento a que estão sujeitos, sem acesso a qualquer informação sobre o estado da pandemia. Sabe-se que alguns dos guardas prisionais foram contaminados, mas a administração optou por os substituir, não prestando qualquer declaração sobre o assunto aos reclusos.
No Centro de Detenção Elizabeth – gerido por uma empresa privada – também em Nova Jérsia, outros 40 reclusos fizeram greve, depois de passarem 3 dias sem sabonete e sem qualquer ação de limpeza dentro do estabelecimento. Testemunhos dizem que, apesar de ter circulado um panfleto com a indicação de que não entrariam novos reclusos devido ao risco de contágio, todos os dias entram novos prisioneiros, vindos do exterior e que não são sujeitos a quaisquer medidas de prevenção.
Em solidariedade com a greve do estabelecimento prisional de Hudson County, 45 reclusos na prisão Rikers Island em Nova Iorque interromperam o trabalho na cadeia. A greve pretendia pressionar a administração a tomar medidas de prevenção da transmissão do Covid-19. Neste momento, cerca de 180 pessoas estão agora infectadas, entre prisioneiros e funcionários.
Do Centro de Detenção Macomb, em Michigan, uma das zonas mais afectadas pela pandemia, chegam-nos relatos de 24 casos de Covid-19 confirmados dentro da prisão. Nenhuma medida adicional foi tomada e os casos continuam a aumentar.
Na prisão federal de Ohio, os infectados permanecem dentro das instalações, partilhando o mesmo espaço com os restantes reclusos. A polícia vai recolhendo os mortos e coloca-os numa tenda fora das instalações, como relata Aaron DeShawn Campbell, num vídeo divulgado inicialmente via Facebook Live:
Numa ação de solidariedade, foi criado um crowdfunding para tentar responder às necessidades dos reclusos, dada a ausência de resposta por parte do Departamento Federal das Prisões para diminuir os riscos desta crise pandémica. E têm sido difundidas várias campanhas de denúncia coletiva com apelos à sociedade para que liguem para os diversos estabelecimentos prisionais, exigindo a libertação dos prisioneiros.
Para já, e perante as pressões internas e a ameaça de tragédia dentro das prisões, cerca de 3000 prisioneiros foram recentemente libertados nos estados de Las Vegas, Nova Iorque e Nova Jérsia. Um número baixo face aos 2,3 milhões que permanecem prisioneiros do sistema de justiça penal americano. Prisioneiros detidos por ofensas não violentas, que não tiveram direito a julgamento ou que foram detidos por violações leves (muitas não provadas) durante a liberdade condicional. Pessoas que tudo indicam que nunca deveriam ter sido apanhadas na armadilha do sistema de justiça penal americano.