Portugal // Resistência popular afugenta exploração de hidrocarbonetos~ 13 min
Por Simone Vieira
Com a queda dos preços do petróleo desde o início da actual pandemia Covid-19 e com a nova crise económica à porta, a Australis Oil&Gas deparou-se com uma rápida desvalorização das suas ações nos últimos meses. Talvez o actual contexto económico tenha influenciado a decisão da Australis Oil&Gas Portugal (Australis) de rescindir os contratos de concessão de direitos de prospecção, pesquisa, desenvolvimento e produção de gás, que mantinha com o Estado desde 2015, nas áreas de Batalha e Pombal; mas não fosse a persistência da organização coletiva e mobilização local e talvez o desfecho fosse outro. A decisão foi comunicada pela empresa à Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) no passado dia 24 de Agosto e terá efeitos no final de Setembro.
Um processo conveniente
Em Fevereiro de 2018, com vista a obter uma licença para a prospeção, a Australis inicia o procedimento de Apreciação Prévia de decisão de sujeição a avaliação de impacte ambiental (AIA) (previsto no Decreto-Lei n.º 152-B/2017, de 11 de Dezembro), para o seu projeto de Sondagem de Prospecção e Pesquisa de Hidrocarbonetos na área de concessão “Batalha” – a primeira das quatro fases previstas no Decreto-Lei n.º 109/94, de 26 de Abril, que estabelece o regime jurídico das atividades de prospecção, pesquisa e produção de petróleo e que se aplica também ao gás.
O procedimento de Apreciação Prévia viria a culminar numa “não decisão” por parte da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), autoridade competente para gerir o processo AIA. Talvez influenciada pelo trabalho da Plataforma Algarve Livre de Petróleo (PALP) e a forte contestação no Sul face à sua decisão de não sujeitar o furo de prospecção de petróleo em Aljezur a AIA, a APA optou por não decidir e incentivou a Australis, no parecer que emitiu, a avançar para o procedimento AIA.
A Australis assim faz e desencadeia, meses mais tarde, a fase de Proposta de Definição de Âmbito do estudo de impacto ambiental (EIA). Desta vez, para dois projetos de Sondagem de Prospecção e Pesquisa de Hidrocarbonetos: um na área de concessão “Batalha” e outro na área de concessão “Pombal”. Uma fase facultativa que permite à empresa consolidar o documento EIA, de forma a aumentar a probabilidade dele vir a ser aceite e resultar na atribuição da licença de prospecção requerida. Uma fase facultativa após a qual a DGEG decidiu, no âmbito de um enquadramento legal desenhado para isso, suspender os prazos dos contratos de concessão. A suspensão dos contratos permitiu à Australis não ter de cumprir os prazos a que estava obrigada em ambos os contratos e impedia a rescisão por parte do Estado.
O procedimento administrativo da atribuição da licença de prospecção arrastou-se no tempo, talvez para evitar o processo de contestação com que a APA e demais autoridades se depararam no sul. Mas a mobilização local resistiu e manteve-se sempre presente.
Resistência popular
Em 2018, em plena luta contra os contratos de concessão de prospecção e exploração de petróleo encabeçada pela PALP no sul, Catarina Gomes (com o apoio da Linha Vermelha) e João Vinagre, naturais da Marinha Grande e Caldas da Rainha, zonas abrangidas pelas concessões, iniciam uma série de sessões de esclarecimento um pouco por toda a área de concessão prevista nos contratos: Caldas da Rainha, Nazaré, Ourém, Leiria, Porto-de-Mós, Marinha Grande, Monte Redondo, Bajouca, Aljubarrota… As sessões de esclarecimento pretendiam dar a conhecer a Australis às populações locais e a intenção desta de explorar gás na região, de forma a suprir a falha de informação por parte do Estado.
Com o propósito de apoiar as populações locais que viriam a ser afectadas pelas concessões, o Movimento do Centro Contra a Exploração de Gás (MCEG) viria a formar-se durante uma ação de sensibilização levada a cabo durante a Feira Medieval de Aljubarrota, em Agosto de 2018. Reuniu em si pessoas com as mais diferentes origens dentro da região, desde as Caldas da Rainha, passando por Alcobaça, Marinha Grande, Leiria, Maceira, Nazaré, Bajouca e Monte Redondo.
É na Bajouca que a mobilização local ganha forma e força para enfrentar a Australis. Em Novembro de 2018, é organizada uma sessão de esclarecimentos na sede da Associação Bajouquense para o Desenvolvimento (ABAD) e dá-se início ao movimento Bajouca sem exploração de gás e petróleo, no âmbito do qual a ABAD viria a desempenhar um papel crucial.
A Australis ia prometendo “mundos e fundos” para a região, mas a população foi retaliando. O movimento da Bajouca marcou presença em várias assembleias de freguesia, assembleias municipais e intermunicipais, reuniões de Câmara, comícios do PS na região e até na Volta a Portugal. Reuniu com grupos parlamentares, presidentes de câmara e presidentes de juntas de freguesia. Ocorreram ainda manifestações tanto na Bajouca como em Leiria.
Pela Bajouca, passou ainda o Camp-In-Gás. Um acampamento que, com o apoio essencial da ABAD, contou com a organização de coletivos climáticos que, a partir da capital do país, se empenharam em envolver a população da Bajouca; a qual convidaram, inclusive, a participar de várias formas no evento.
No evento Camp-In-Gás, ainda que de forma despercebida, estiveram presentes elementos da Asamblea vecinal zona Úrbel y Rudrón, uma das várias assembleias populares que integrou a plataforma Fractura Hidráulica NO!, que encabeçou a mesma luta no país basco. O coletivo basco teve tempo para fazer uma sessão de esclarecimentos em Aljubarrota, a caminho do acampamento na Bajouca. Consigo trouxeram experiências de luta e materiais, como autocolantes e panos, que acabaram a ser partilhados com toda a população.
Talvez os factores económicos tenham pesado na decisão da Australis, mas a mobilização local levada a cabo pelos bajouquenses revelou-se imprescindível para pressionar os autarcas a tomarem posição e a agirem sobre o assunto. E, acima de tudo, revelou-se essencial para lembrar o Estado de que a população local também deve ser envolvida nas decisões sobre negócios que digam respeito ao território em que habitam; ainda para mais quando impactam os recursos naturais e economia locais.
A luta da população foi fundamental. Fez a Australis renunciar um projeto que teria dificuldade de levar a bom termo, face à mobilização local contra o furo. Agora, é preciso revogar o Decreto-Lei 109/94 e impedir novas concessões.
— Fátima Fernandes, da ABAD, uma das representantes da mobilização local na Bajouca
Estou ciente que a pandemia alterou por completo o panorama e o consumo a nível mundial, e que a decisão do Banco Central Europeu de deixar de financiar este tipo de explorações levou a que a Australis ficasse sem apoios e se visse obrigada a desistir. A rescisão dos contratos por parte da Australis foi, sem dúvida, uma excelente notícia que nos deixou imensamente felizes e aliviados. Sem o envolvimento de todas estas pessoas que abdicaram de muitas horas do seu tempo livre, e por vezes de tempo a nível profissional, para lutarem por uma causa em que acreditavam, tal não seria possível. Mas falta ainda um pequeno passo para arrumar de vez com este assunto. Falta a revogação do Decreto-Lei n.º 109/94, pois enquanto esse decreto-lei estiver em vigor, poderemos vir a ter novas concessões, com a possibilidade do uso do Fracking encapuçado, em qualquer área do país.
— Jairo Dias – um dos representantes do movimento Bajouca sem exploração de gás e petróleo, ABAD, MCEG
Casos como o da região centro trazem a nu as insuficiências da actual legislação nacional. Uma legislação dos anos 90, o Decreto-Lei n.º 109/94, de 26 de Abril, que fomenta a concessão de direitos de prospecção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo/gás via “negociação direta”, e que não prevê mecanismos jurídicos que considerem os interesses das populações locais e garantam a preservação do ambiente e do clima. Um Decreto-Lei que, como referido pelo MCEG no seu comunicado e seguindo o já defendido pela PALP nos últimos anos, deve urgentemente ser revogado, de forma a impedir qualquer exploração de hidrocarbonetos no território. Para salvaguardar as populações e o ambiente, precisamos mais do que os meros processos não vinculativos de consulta pública que ocorrem já em fase de atribuição de licença (como previsto no RJAIA, Decreto-Lei n.º 152-B/2017, de 11 de Dezembro), muito depois da assinatura dos contratos de concessão.
A luta contra o gás na região Centro termina por agora, mas a população garante que se manterá atenta caso surjam novas concessões. Até porque esta foi já a segunda tentativa por parte do Estado de conceder, naquelas áreas, direitos de exploração de gás aos privados.
Deixamos aqui comunicado, na íntegra, enviado pelo MCEG:
Fim das concessões “Batalha” e “Pombal”: uma vitória da população local
A Australis Oil&Gas Portugal desistiu dos contratos de prospecção e exploração de hidrocarbonetos que assinou com o Governo português em 2015 – concessões “Batalha” e “Pombal” na Bacia Lusitânia, de acordo com informação divulgada durante o dia de hoje, 4 de setembro de 2020. A comunicação à Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) foi feita no passado dia 24 de agosto e deverá produzir efeitos no final setembro.
Aplaudimos o fim de uma luta encabeçada pela população local, em especial da Bajouca, contra os interesses do capital e do lobby dos combustíveis fósseis, em defesa do ambiente, da qualidade de vida da população e da economia local. Nos últimos anos, presenciámos uma saga que uniu cidadãos e cidadãs dos vários concelhos do distrito de Leiria com vista ao fim dos contratos. Foram várias as sessões de esclarecimento, marcadas um pouco por todo o território previsto nas concessões, que serviram para colmatar as falhas de informação do Governo sobre o assunto junto das populações locais, em particular, e perante o país, no geral. A população da Bajouca marcou presença em várias assembleias de freguesia, assembleias municipais, reuniões de Câmara e mesmo em comícios do PS na região. Ocorreram manifestações tanto na Bajouca como em Leiria, junto à Câmara Municipal. Apesar de vários setores da sociedade civil se terem posicionado contra, a mobilização coletiva local, que juntou cidadãos e autarcas, foi determinante para o desenrolar deste processo que culminou agora numa desistência por parte da Australis. Sem a mobilização local, o desfecho teria sido outro.
Os contratos foram assinados no âmbito de um enquadramento legal dos anos 90, o Decreto-Lei n.º 109/94, de 26 de abril, que estabelece o regime jurídico das atividades de prospecção, pesquisa e produção de hidrocarbonetos. Um Decreto-Lei desatualizado e que ignora o problema das alterações climáticas com profundas consequências no nosso dia-a-dia. Por isso, não só exigimos ao Governo que confirme o fim desses contratos como termine com este enquadramento legal que ainda permite a prospecção e exploração de hidrocarbonetos em Portugal e que coloca qualquer região do país em risco de ficar à venda; atrasando ainda mais a tão necessária transição energética.