Ucrânia // Nova lei laboral vai atirar trabalhadores de volta para o séc. XIX~ 10 min
Projecto de lei promete liberalizar despedimentos, acabar com a negociação colectiva e tirar os sindicatos de cena. Com a desculpa da guerra e a pretexto da liberdade, claro. Tradução livre e adaptação do artigo “Ukraine’s new labour law could ‘open Pandora’s box’ for workers”. Por Francisco Norega.
Em Março, o parlamento ucraniano passou uma lei de excepção que limitou severamente a capacidade dos sindicatos representarem os seus membros, introduziu a “suspensão do emprego” (ou seja, os trabalhadores não são despedidos, mas o seu trabalho e os salários são suspensos), passou a permitir despedimentos sem justa causa e aumentou a semana de trabalho para 60 horas, entre outras medidas.
Como já tinha acontecido com a ilegalização de partidos da oposição, estas medidas temporárias, aprovadas com o objectivo inicial de estar em vigor durante o período da lei marcial, podem em breve tornar-se permanentes.
Um grupo de deputados ucranianos, vários deles do Servo do Povo, está a trabalhar nesse sentido, com o suposto objectivo de aprofundar a “liberalização” e “des-sovietização” das leis laborais ucranianas. O projecto de lei, que já está em discussão no parlamento, prevê que as leis laborais actualmente existentes deixem de ser aplicadas a trabalhadores de pequenas e médias empresas, que doravante terão de “negociar” os seus contratos de trabalho individualmente com os patrões.
Na Ucrânia, as pequenas e médias empresas são as que empregam até 250 pessoas – ou seja, mais de 70% da força de trabalho ucraniana.
Anton Gorb é membro de um dos sindicatos na maior empresa privada de serviços postais, a Nova Poshta, e está a servir nas forças armadas ucranianas desde que começou a invasão russa. Ainda assim, continua a defender os interesses do seu sindicato e falou com o opendemocracy.net sobre como a legislação laboral provisória está a afectar trabalhadores e trabalhadoras. “Não vamos desistir, vamos tentar recuperar algumas coisas, mas a relação com o nosso patrão já não pode ser restabelecida”, diz Gorb.
Uma caixa de Pandora
Vitaliy Dudin, especializado em lei laboral e representante do Movimento Social, uma organização civil ucraniana, está preocupado que as autoridades ucranianas usem a invasão russa para aprovar a tão aguardada desregulação das leis laborais e avisa que a legislação pode abrir uma “caixa de Pandora” para os trabalhadores.
Foi o que aconteceu, explica Anton Gorb, na Nova Poshta, que era um modelo de boas relações laborais entre os sindicatos e a administração da empresa. O sindicato independente na Nova Poshta é um dos maiores no seu sector. Antes da invasão russa, o sindicato tinha 11 500 membros (de um total de cerca de 30 mil trabalhadores), e assinou o seu primeiro acordo colectivo em 2016.
“Tínhamos dos melhores empregadores da Ucrânia e tínhamos um bom acordo colectivo de trabalho. Mas agora os empregadores viraram as costas ao diálogo social. Pensávamos que era por causa do início da guerra, mas afinal estavam só à espera da adopção da lei.”
Em Abril, suspendidos certos direitos laborais – supostamente de forma temporária – a administração da Nova Poshta revogou 30 pontos do acordo colectivo com o sindicato. Os pontos dizem respeito à coordenação das condições de trabalho com os sindicatos, ao fornecimento de equipamento de trabalho e aos horários de trabalho, entre outros. Para além disso, no final de Abril, 1500 pessoas estavam com o seu trabalho – e salário – suspensos.
Situações similares abateram-se sobre os e as trabalhadoras de outras empresas. No início de Maio, o Sindicato de Metalúrgicos e Mineiros da Ucrânia publicou uma carta à administração da fábrica ArcelorMittal, em Kryvyi Rih, a maior siderurgia do país. Nela, o sindicato denuncia que, em Abril, a administração suspendeu partes do acordo colectivo que diziam respeito à actividade sindical e aos apoios sociais e regalias dos trabalhadores.
O Movimento Social criou uma ‘lista negra de patrões’ que inclui empresas que suspenderam unilateralmente acordos colectivos de trabalho (ou parte deles) ou alteraram as condições de trabalho em violação das leis laborais ucranianas. Mais de duas dezenas de empresas estão na lista, incluindo a central nuclear de Chernobyl, a empresa ferroviária ucraniana, o porto de Odessa, o Metro de Kiev e vários hospitais e clínicas.
Mas, agora, os deputados ucranianos decidiram ir mais além e preparam-se para adoptar uma reforma ainda mais radical das leis laborais, que se estenderá muito para além da guerra.
‘Des-sovietização’ e liberalização
A proposta de nova lei laboral, o projecto de lei 5371, foi registado originalmente em Abril de 2021. Mais de um ano depois, a 12 de Maio, o parlamento ucraniano apoiou-o pela primeira vez, abrindo caminho para a sua adopção.
Formalmente, o projecto de lei foi apresentado em nome de Halyna Tretyakova, presidente do comité parlamentar de políticas sociais, e vários outros deputados do Servo do Povo. Foi desenvolvido com o apoio das associações patronais ucranianas, de um programa do USAID e de uma ONG ucraniana – o Escritório de Soluções e Resultados Simples, criada por Mikheil Saakashvili, ex-presidente da Geórgia (2004-12) e ex-governador de Odessa (2015-2016). As autoridades ucranianas também têm recebido apoio e aconselhamento da parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico no sentido de preparar legislação de desregulação dos direitos laborais, pelo menos desde Setembro de 2020.
Os autores do projecto de lei 5371 argumentam que as relações laborais na Ucrânia “ainda são reguladas por um Código Laboral ultrapassado, adoptado em 1971 e desenvolvido sob as condições de uma economia de comando-administrativo soviético”.
Segundo eles, parte do problema é não existir legislação atractiva o suficiente para as pequenas e médias empresas. Para resolver isto, o projecto de lei vai acabar com a contratação colectiva nestas empresas, vai permitir aos patrões despedir sem qualquer justificação (estritamente proibido segundo a actual legislação laboral) e vai “reduzir a carga burocrática nas relações laborais e nas entidades empresariais”.
Os e as proponentes deste projecto de lei argumentam que estas medidas vão “des-sovietizar” a lei laboral na Ucrânia. Referem-se à “liberalização” das relações laborais como “a introdução do regime mais flexível e livre para as relações laborais”.
Estas inovações são benéficas para ambas as partes, já que a regulação contratual pode ser mais flexível do que a legislação básica. Por exemplo, pode incluir certas opções e apoios para o empregado – estes elementos das relações laborais são ainda mais fidedignos do que simples acordos [colectivos].
Hanna Lichman,
deputada do Servo do Povo e membro do comité parlamentar para o desenvolvimento económico
Belas palavras para sugerir que, na negociação de um contrato de trabalho, trabalhador e patrão estão em pé de igualdade e em busca de benefícios para ambas as partes.
Escravatura moderna
Para Vitaliy Dudin, do Movimento Social, a parte mais destrutiva da legislação é a introdução da lei civil ucraniana nas relações de trabalho. Segundo ele, a lei civil ucraniana baseia-se na ideia de relações entre duas partes iguais, o que obviamente não acontece entre trabalhador e empregador. “Isto é um retrocesso para o século XIX. Ao introduzir a lei civil nas relações laborais, podemos abrir a caixa de Pandora.”
Segundo George Sandul, um advogado na organização Iniciativas Trabalhistas:
Este regime assume que literalmente qualquer coisa pode ser incluída num contrato de trabalho, sem referência às leis laborais ucranianas. Por exemplo, cláusulas de despedimento, obrigações adicionais, ou até uma semana de trabalho de 100 horas. Para além disso, o contrato individual de trabalho torna-se a base para regular todas as relações numa empresa, o que neutraliza o papel dos acordos colectivos e relega os sindicatos para segundo plano.
O comité parlamentar ucraniano para a integração na UE emitiu um parecer em que afirma que a legislação proposta “enfraquece o nível de protecção laboral, limita o âmbito dos direitos laborais e garantias sociais dos trabalhadores, em comparação com a actual legislação”, contradizendo assim as obrigações assumidas pela Ucrânia no seu Acordo de Associação com a União Europeia. O projecto de lei também foi duramente criticado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na Ucrânia.
Quem votou a favor da legislação? E porquê agora?
Durante mais de um ano, esta proposta de lei falhou em conseguir apoio do parlamento. A situação mudou a 12 de Maio, quando este projecto de lei foi a votação na generalidade e, pela primeira vez, foi aprovado por uma maioria dos deputados.
Nesta votação preliminar, que ainda precisa de ser confirmada por uma votação final global, votaram a favor a grande maioria dos deputados do Servo do Povo (de Zelensky) e do Dovira (traduzido como “Confiança” ou “Crença”), um grupo parlamentar composto por ex-deputados do Solidariedade Europeia (de Poroshenko), da Frente Popular (de Yatseniuk, o banqueiro tecnocrata favorito da UE) e de outros partidos mais pequenos.
A proposta recebeu ainda o voto favorável de parte dos deputados do Pelo Futuro (um partido com extensas ligações a Kolomoisky e ao UkrOP) e metade dos antigos membros do partido pró-russo Plataforma de Oposição – Pela Vida, banido pelo Parlamento no início deste mês. É curioso como deputados “pró-russos”, “pró-europeus” e nacionalistas, apesar de eternos inimigos, se juntam alegremente quando se trata de roubar à classe trabalhadora o pouco que ainda lhe resta.
Agora, o parlamento ucraniano está num frenesim para preparar a votação final, através de um “procedimento acelerado” para aproveitar que há votos suficientes para aprovar a legislação. A questão é se os sindicatos, no actual contexto militar, vão conseguir bloquear esta lei antes de ter lugar a votação final.
George Sandul diz que, apesar dos sindicatos ucranianos e internacionais terem levado a cabo uma campanha contra esta lei no ano passado, desde o início da invasão russa que os protestos são proibidos. A 18 de Maio, a União dos Sindicatos Ucranianos endereçou uma carta aberta aos deputados ucranianos apelando a que não votem a favor do projecto de lei 5371 na sua votação final.
A classe trabalhadora ucraniana, que enfrenta uma invasão militar por parte do exército russo há três meses, enfrenta também os sonhos da sua classe política de transformar a Ucrânia num país sem quaisquer protecções laborais e sociais, onde os sindicatos são um empecilho a retirar de cena à primeira oportunidade.