O Massacre de Santa Cruz e a luta contra a ocupação indonésia de Timor~ 9 min
No 32º aniversário do massacre que despertou o mundo para a luta do povo de Timor, revisitamos a onda de solidariedade pelo fim da ocupação indonésia. Que lições e ideias podemos tirar para a luta pelo fim da ocupação israelita da Palestina?
Por F.
A 12 de Novembro de 1991, em Dili, dá-se o Massacre de Santa Cruz.
Decorria o funeral de Sebastião Gomes, um apoiante da independência de Timor-Leste abatido semanas antes. Milhares de homens, mulheres e crianças fizeram o percurso entre a igreja de Motael e o cemitério de Santa Cruz. Durante a marcha, faixas a favor da independência e bandeiras da resistência timorense foram desfraldadas.
Depois de a multidão chegar ao destino, as forças de ocupação indonésias bloquearam a saída do cemitério e abriram fogo. Quem tentou escapar foi esfaqueado. Os mortos contam-se às centenas, entre os que morreram no local e os que acabaram por sucumbir aos ferimentos nos dias seguintes.
No local estavam dois jornalistas norte-americanos, Amy Goodman e Allan Naim, e o repórter britânico Max Stahl. Stahl capturou imagens do massacre e enterrou as cassetes para impedir que fossem destruídas pelas forças indonésias. Mais tarde, com a ajuda de terceiros, os jornalistas conseguiram passá-las para fora da Indonésia.
As filmagens chocaram o público mundial e chamaram a atenção para a ocupação indonésia de Timor-Leste, gerando uma onda de solidariedade internacional que só cessou quando, finalmente, o povo timorense conseguiu a sua independência.
De Timor à Palestina
Hoje, 32 anos após o Massacre de Santa Cruz, procuramos lições e ideias que nos possam ser úteis para a luta contra a ocupação israelita que agora travamos.
Hoje, não precisamos de um repórter ousado que filme clandestinamente e consiga fazer passar cassetes físicas pelas barbas dos agentes da ocupação – há, em todo o lado, quem tenha um smartphone e, a qualquer momento, qualquer pessoa pode ver imagens de morte e destruição em Gaza.
Hoje, como nos anos 90, são as imagens de rios de sangue que fazem milhões de pessoas mobilizar-se nas ruas de todo o mundo.
O movimento de solidariedade com Timor pedia o embargo ao envio de armas para a Indonésia e o corte de relações económicas e diplomáticas como forma de isolar internacionalmente a Indonésia. Reivindicações já usadas pela luta contra o apartheid na África do Sul, e usadas agora na luta pela libertação do povo palestiniano.
Num momento em que entramos já no segundo mês de protestos em solidariedade com a Palestina, urge encontrar formas criativas de manter a mobilização e continuar a pressionar os governos do Ocidente.
As mobilizações por Timor: exemplos práticos
Em 1991, em reacção ao Massacre de Santa Cruz, realizaram-se em Portugal e em diversos pontos do mundo manifestações, vigílias, concertos de solidariedade e vários tipos de campanhas. Face à inacção da comunidade internacional, em 1992 lançou-se a iniciativa Lusitânia Expresso.
Um barco saiu de Lisboa rumo a Timor, navegando mais de 17 mil quilómetros para alertar o mundo para a situação dramática ali vivida, e com o objectivo de depositar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz. Em Darwin, no norte da Austrália, 120 estudantes de 23 países embarcaram para participar na última etapa da viagem. Três fragatas de guerra indonésias acabaram por impedir a embarcação de chegar às costas de Timor, mas o alerta ressoou pelo mundo.
Durante a década de 90, formaram-se organizações dedicadas à causa timorense em Portugal, mas também no Canadá, no Reino Unido, nos EUA, na Austrália e no Japão, entre outros.
Em 1999, depois da queda de Suharto, que governara o país de 1968 a 1998, o novo presidente indonésio anunciou a realização de um referendo sobre a independência de Timor-Leste. Apesar da violência com que as milícias indonésias tentaram intimidar a população timorense, o referendo de 30 de Agosto teve uma participação de 98%, com 78% a escolherem a independência. Após o anúncio dos resultados, as milícias indonésias em Timor iniciaram uma brutal campanha de vingança contra o povo timorense, que resultou em milhares de mortos, feridos e deslocados, e na destruição de grande parte das infraestruturas do território.
Mais uma vez, Timor lançou ao mundo um grito por ajuda.
Os timorenses colocaram o foco em Portugal, que afirmavam ter responsabilidades acrescidas para com Timor enquanto antiga potência colonial. A sociedade portuguesa respondeu de forma retumbante. Em Setembro de 1999, durante 3 semanas, enormes mobilizações tomaram as ruas de vilas e cidades do interior ao litoral, faixas foram colocadas nas janelas e os carros decorados com mensagens em apoio a Timor.
A praça em frente à representação da ONU em Lisboa foi rebaptizada de Praça Timor e foram muitos os que ali permaneceram dia e noite para denunciar a inacção da comunidade internacional e exigir uma intervenção para pôr fim aos massacres.
A 12 de Setembro, apoiantes da causa timorense levaram a cabo a iniciativa “Um Comboio por Timor-Leste”, embarcando num comboio rumo a Madrid para levar os seus protestos à embaixada indonésia na capital do Estado Espanhol. Outros vieram de carro ou de avião. Cinco mil pessoas participaram no protesto, e várias bandeiras indonésias foram queimadas por jovens timorenses.
As acções mais emblemáticas, no entanto, tiveram lugar a 8 de Setembro.
A jornada de mobilização começou às 15h, quando Portugal fez “3 minutos por Timor” – condutores pararam os carros e trabalhadores largaram o trabalho e saíram para as ruas. À hora marcada, em frente à embaixada dos Estados Unidos, um condutor parou o carro. Muitos outros o seguiram. Com o avançar da tarde, muitas mais pessoas se foram juntando a esta “grande manifestação espontânea, nunca antes vista desde o 25 de Abril”, nas palavras de uma repórter da RTP. Os acessos à zona ficaram bloqueados por várias horas.
Um cordão humano estava programado começar às 18h mas, uma hora antes, milhares de pessoas começavam já a encher as ruas que ligam a representação da ONU em Lisboa às embaixadas dos EUA, Reino Unido, França, Rússia e China, em protesto contra a inacção do Conselho de Segurança da ONU. A mobilização da sociedade era de tal maneira transversal que até António Guterres, então primeiro-ministro, “saiu do gabinete” e se juntou a este protesto. As imagens gravadas pelo helicóptero da RTP são impressionantes.
As enormes e persistentes mobilizações de norte a sul de Portugal obrigaram o governo português a intensificar a sua acção diplomática na esfera internacional que, até esse momento, se mantinha em grande medida no campo da retórica. A 20 de Setembro, tropas de manutenção de paz chegaram finalmente a Timor para pôr fim à violência e supervisionar o processo de transição para um Timor-Leste independente e livre da ocupação indonésia.
Assim como Portugal tinha responsabilidades para com Timor, o Ocidente como um todo tem responsabilidades pela situação que se arrasta na Palestina há 75 longos anos.
Israel, um tigre de papel
Se a África do Sul e a Indonésia eram parceiros militares e comerciais dos EUA, Israel é o menino de ouro do Ocidente, e seu maior aliado no Médio Oriente, recebendo biliões de dólares em apoio financeiro e militar. O desafio é, por isso, muito maior.
No entanto, uma vez logrado o isolamento diplomático do Estado de Israel, a solução da questão palestiniana estará logo ao virar da esquina.
A África do Sul e a Indonésia puderam resistir durante longos anos a sanções e pressões diplomáticas. Israel, no entanto, com a sua política de apartheid e constante expansão da ocupação dos territórios palestinianos, não só matou qualquer solução política para uma convivência pacífica com o povo palestiniano, como criou inimigos em toda a região. Sem o apoio militar ocidental e rodeado por estados hostis, Israel seria incapaz de continuar a impôr pela força o seu projecto colonial.
O fim do apartheid israelita e da ocupação da Palestina é o único caminho para a paz na região. E consegui-lo depende apenas da persistência e da criatividade dos povos do Ocidente.