Porque é que é urgente uma escalada da resistência pela Palestina?~ 19 min

Por F

Os recentes apelos a uma Escalada Global da solidariedade com a Palestina põem em evidência a incapacidade dos movimentos nos países ocidentais, os mentores do genocídio em curso em Gaza, de produzirem resultados que se reflitam na realidade no terreno.

Um ano depois, apesar de todas as manifestações, conversas, assembleias, sessões de cinema e petições, os nossos governos continuam a proporcionar, em todos os campos, todo o apoio de que israel necessita – os nossos impostos são usados em programas de cooperação com as mais variadas instituições sionistas, os nossos portos e aeroportos continuam a ser usados para transportar as bombas que despedaçam palestinianos diariamente, e os nossos media continuam a branquear os crimes da ocupação israelita. 

Enquanto isso, o regime sionista e o Ocidente colectivo continuam a sua campanha genocida em Gaza, agora a expandir-se pela região. A ajuda humanitária continua a ser bloqueada pelo criminoso cerco israelita, os hospitais continuam a ser atacados e destruídos, as tendas dos deslocados continuam a ser bombardeadas, e os jornalistas continuam a ser assassinados, num momento em que o genocídio entrou na sua fase mais brutal no Norte de Gaza.

Somos nós, as pessoas comuns, que teremos de viver com as consequências que este novo normal trará, não só ao Médio Oriente mas a todo o mundo. Urge, portanto, reflectirmos sobre os resultados e a utilidade dos métodos de protesto que temos usado, e sobre que outros métodos estamos dispostos a adoptar para mostrar, com acções e não com palavras, que não aceitamos nem o genocídio nem o «violento futuro que ele traz – uma violência sem quaisquer limites ou respeito pela vida». 

As consequências da normalização

Se o regime sionista e o Ocidente colectivo continuarem impúnes pelos seus crimes, as consequências para o povo palestiniano serão ainda mais brutais do que tudo o que vimos até hoje. Mas as consequências não se ficarão por aí – a expansão da espiral genocida para o Líbano mostra que o sonho da “Grande Israel” continua bem vivo na mente dos sionistas, ameaçando toda a região, algo que a imprensa israelita faz questão de relembrar ao mundo regularmente.

Estas são apenas as consequências mais óbvias e directas da normalização do genocídio em curso. No entanto, esta traz consigo outras implicações mais abrangentes, ao normalizar um nível de violência e destruição que se reflectirá na forma como conflitos e guerras se desenrolarão a partir de agora.

Como afirma o apelo para uma Escalada Global, «estão a ser estabelecidos novos precedentes de violência colonial, assim como novas formas de retaliar contra quem quer que combata as injustiças que assolam o nosso mundo».

As tecnologias e tácticas experimentadas em grande escala pelo regime sionista sobre a população e a resistência na Palestina e no Líbano serão usadas não só contra outros povos que ousem enfrentar o imperialismo ocidental, mas também contra aqueles e aquelas que, no centro do Império, escolham resistir ao imperialismo, ao colonialismo, ao militarismo e ao fascismo que se agiganta. Aliás, esta é já uma realidade.

As inteligências artificiais usadas para controlar cada esfera da vida (e morte) dos palestinianos, desenvolvidas e geridas conjuntamente pelo regime sionista e o Ocidente colectivo, serão usadas pelos nossos próprios regimes para esmagar qualquer oposição interna – e tornarão as “democracias” ocidentais uma distopia mais bizarra que a “malvada China” ou qualquer episódio de Black Mirror.

O militarismo crescente, e as perspectivas de uma regionalização ou mundialização da guerra, trazem também consigo enormes consequências a nível ambiental – às emissões astronómicas de CO2 e outros gases com efeito estufa produzidas pelos bombardeamentos em si, têm de acrescentar-se as emissões de todos os tanques, aviões e navios de guerra, não só israelitas mas das potências ocidentais que, além de apoiarem o regime sionista, lançam as suas próprias agressões regulares contra o Iémen e outras forças da resistência na região. A expansão da guerra a toda a região, assim como uma possível Terceira Guerra Mundial, representariam uma catástrofe ecológica de proporções inconcebíveis, que fariam as alterações climáticas que estamos a presenciar neste momento parecer uma brincadeira.

Romper com a normalidade: reinventar a solidariedade com a Palestina

Durante o último ano, milhões de pessoas assinaram petições, enviaram cartas aos seus governantes e exprimiram a sua indignação nas redes sociais. A cada fim-de-semana, marés de solidariedade inundaram as ruas de centenas de cidades, e fizeram-se milhares de vigílias, sit-ins, debates e projecções de filmes.

A inflexibilidade dos governos ocidentais no apoio a israel, apesar dos enormes apelos populares a um cessar-fogo, expõe a “democracia” ocidental pela farsa que é, e torna evidente que todos estes tipos de “activismo” são, na verdade, algo com que os regimes ocidentais estão completamente confortáveis. Manifestações – especialmente as realizadas ao fim-de-semana, de forma ordeira e comunicadas às autoridades – e outras formas de protesto que não perturbam o normal funcionamento da sociedade nem causam danos à economia, não só são ignoradas de forma expedita pelos governos, como alimentam a ilusão de “liberdade e democracia” e ajudam a libertar alguma da pressão social acumulada.

Enquanto Gaza paga o preço mais alto possível pelo genocídio perpetrado pelo regime sionista, com o apoio e a participação do Ocidente colectivo, a generalidade das populações do Ocidente não tem escolhido rumos que impliquem grandes custos ou riscos, e que também não produzem quaisquer resultados além da repetição de exigências que nunca são ouvidas.

O dogma do pacifismo metamorfoseou-se até ao estágio último da passividade ordeira, e esta precisa de ser questionada.

O apelo a uma Escalada Global aponta algumas ideias sobre acções que podem realmente pressionar os que se dizem nossos representantes, juntamente com quem está a lucrar com tudo isto, a desviar-se do curso escolhido – «[perturbar] os sistemas económicos que alimentam o genocídio em curso em Gaza», através de «greves, greves ao consumo e acções directas».

Greves pela Palestina: o exemplo do Estado Espanhol

O Estado Espanhol tornou-se, no dia 27 de Setembro, o primeiro estado ocidental a fazer uma greve geral em solidariedade com a Palestina e com o Líbano. A greve, convocada por sindicatos fora das confederações do sindicalismo de concertação social, manifestou a oposição da classe trabalhadora do estado espanhol (ou de parte dela) ao «gasto [de dinheiro] público no comércio armamentístico», ao «apoio militar ao governo de israel» e ao genocídio.

A convocatória inicial, assinada pela CGT e a Solidaridad Obrera, foi apoiada por outras confederações (como a CNT, a Co.Bas e a COS) e sindicatos regionais (na Andaluzia, País Basco e Catalunha) e sectoriais (professores, estudantes, médicos e comerciantes).

Cerca de 200 organizações e grupos (estudantis, feministas, ecologistas e de solidariedade com a Palestina) juntaram-se a esta jornada de greve e luta, que viu concentrações, acções e manifestações terem lugar em pelo menos 58 localidades em todo o estado espanhol.

As organizações convocantes apelaram aos trabalhadores com mais dificuldade em fazer greve, especialmente nos sectores mais precários, a participarem ainda assim nas actividades e acções perto de si.

Trabalhadores de Gaza enviaram um vídeo em que expressam o seu «respeito e agradecimento» pela convocatória de greve e pediram «mais pressão sobre os governos cúmplices com israel e os EUA» e «mais luta e apoio ao direito de autodeterminação do povo palestiniano».

Acção directa: o exemplo e os resultados da Palestine Action

Na Europa, a Palestine Action é o maior exemplo de resistência activa em solidariedade com a Palestina, tendo alcançado, durante o último ano, inúmeras vitórias com impacto directo na máquina de guerra israelita.

Fundada em 2020 por um pequeno grupo de pessoas, a Palestine Action alcançou a sua maior vitória no final de Outubro, quando o Barclays decidiu desinvestir da Elbit Systems, uma das mais importantes empresas de armamento israelitas – após mais de meia centena de acções directas terem sido levadas a cabo contra as suas agências durante o último ano. Dessas, duas dezenas tiveram lugar numa acção concertada a 10 de Junho, durante a qual montras foram quebradas e fachadas foram pintadas de vermelho-sangue, de Glasgow a Brighton.

Na altura, a Palestine Action anunciou:

Décadas de campanhas educadas, petições, envio de cartas e pressão sobre deputados falharam [em obter resultados]. Continuaremos a escalar [as nossas acções] até o Barclays (…) parar de financiar genocídio e destruição climática.

Muitas destas acções forçaram as agências a encerrar durante várias semanas enquanto os danos eram reparados, impondo um custo financeiro elevado à instituição. Fontes na polícia britânica afirmaram que muitas destas acções causaram danos entre 250 mil e 500 mil libras

Depois de o Barclays liquidar os seus investimentos na Elbit, superiores a 3 milhões de euros, a Palestine Action avisou que está pronta para retomar as suas acções caso o banco britânico decida voltar a investir na empresa no futuro:

Permaneceremos empenhados e focados na tarefa que temos em mãos, atacando quaisquer instituições e negócios que possibilitem que a maior empresa de armamento israelita continue as suas operações genocidas.

Ou seja, se o Barclays reinvestir na Elbit no futuro, a Palestine Action vai voltar a bater-lhes à porta.

A estratégia da Palestine Action é fazer com que os custos de participar no genocídio, na ocupação e no apartheid sejam superiores aos potenciais lucros que daí advenham. Os seus membros intitulam-se “accionistas”, e não “activistas”, colocando o foco na acção directa, na construção do mundo que queremos pelas nossas próprias mãos, ao invés de esperar que alguém, em algum lugar, eventualmente responda às nossas preces.

Durante os últimos 4 anos, a Palestine Action levou a cabo uma campanha centrada na Elbit Systems, um dos maiores fornecedores das forças armadas israelitas, que produz a grande maioria dos drones, morteiros e munições de artilharia que estão a ser usados em Gaza e no Líbano.

Para além de visar instalações da Elbit, as acções da Palestine Action visam também os seus parceiros financeiros e industriais no Reino Unido, como era o caso do Barclays. Desde o início da sua campanha, a Palestine Action levou a cabo cerca de 500 acções directas e forçou o encerramento permanente de várias fábricas de armamento e da sede da Elbit em Londres, perturbou a produção de componentes de F35 ao conseguir despejar tinta numa sala estéril de uma fábrica da Teledyne, destruiu drones usados pelo regime sionista em Gaza e forçou vários parceiros a cortar relações com a empresa israelita.

Apesar de membros que enfrentam processos judiciais terem conseguido algumas vitórias legais, quase duas dezenas de accionistas da Palestine Action encontram-se neste momento nas prisões britânicas, quer a cumprir penas de prisão, quer em prisão preventiva ao abrigo da legislação anti-terrorista. A maioria são mulheres.

27 a 29 de Novembro: Escalada Global

Em todo o mundo, somos milhões com o poder de travar o fluxo económico que financia as nossas opressões. Podem chantagear-nos com ameaças de despedimento, intimidar participantes e assediar alegados líderes – mas precisam mais de nós do que nós deles. Quando compreenderem que não podem manter o seu “business as usual” enquanto apoiam crimes de guerra e destroem o nosso mundo, a mudança tornar-se-á inevitável.

De quarta-feira 27 a sexta-feira 29 de Novembro, a Escalada Global unirá pessoas e movimentos de todo o mundo para intensificar a resistência colectiva (…)

globalescalation.com

Durante estes três dias, mais de meia centena de acções directas romperam com a normalidade em dezena e meia de países. De bloqueios e ataques a fábricas de armamento a invasões de escritórios e sedes de empresas que lucram com o genocídio em curso, passando por protestos massivos dentro de centros comerciais, destruições de propriedade, ocupações de universidades, greves e até uma criativa acção na embaixada israelita em Helsinquia.

Milhares de pessoas, em acções massivas ou em pequenos grupos, lançaram ao mundo uma mensagem clara: as instituições, públicas e prrivadas, que apoiam o projecto sionista têm de sofrer consequências pela sua cumplicidade no genocídio em curso.

No entanto, antes de qualquer outra coisa, este apelo valeu por tornar evidente o facto de as constantes escaladas, tanto da espiral genocida israelita como do militarismo no teatro europeu, não estarem a ser acompanhadas por uma escalada da resistência nas sociedades ocidentais, pelo menos não a uma larga escala.

A cumplicidade do Ocidente colectivo é tão completa e abrangente que o difícil não é identificar alvos, mas escolhê-los.

Walkouts no Reino Unido, Bélgica e Holanda

A 28 de Novembro, no Reino Unido, trabalhadores, estudantes e artistas abandonaram os seus locais de trabalho ou estudo para tomar as ruas em solidariedade com a Palestina.

O walkout foi apoiado pela TUC, uma das maiores confederações sindicais britânicas, respondendo aos apelos feitos por trabalhadores palestinianos aos «trabalhadores em todo o mundo para se erguerem em solidariedade e exigirem o fim da cumplicidade dos seus governos, empresas e instituições no sistema de opressão de israel». Participaram nele trabalhadores da educação, da saúde e de outros sectores, assim como funcionários e estudantes em universidades e escolas.

Nesse mesmo dia, na Bélgica, um walkout estudantil aconteceu a nível nacional, rompendo com a normalidade em várias universidades. No dia seguinte, Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestiniano, foi a vez de estudantes da Universidade de Utrecht abandonarem as aulas em solidariedade com a Palestina.

Greve Geral em Itália 

Em Itália, uma greve geral teve lugar a 29 de Novembro, convocada por pelo menos 8 confederações e sindicatos de base italianos – a ADL Cobas, a Confederação Cobas, a CLAP, a CUB, o SBG, o Sial Cobas, o SI Cobas e a ADL Varese. No topo das exigências das várias convocatórias figurava: «Parar a guerra e a economia de guerra». Esta greve geral contou ainda com o apoio do movimento dos Jovens Palestinianos em Itália e da União Democrática Árabe-Palestiniana, chamando todos os trabalhadores e sindicatos à greve «para travar o genocídio na Palestina e a agressão sionista contra o Líbano».

Rejeitamos a cumplicidade de Itália, da NATO e dos países ocidentais no sofrimento do nosso povo, e erguemo-nos em solidariedade com a sua resistência contra o imperialismo e a agressão diária. Apelamos a cada sindicato e a todos os trabalhadores (…) para parar as suas actividades nas fábricas, portos, armazéns e onde quer que seja possível.

Apelo à greve na íntegra aqui.

O clima de confrontação social em Itália tem crescido nas últimas semanas, com fortes mobilizações estudantis, sindicais, feministas e climáticas, multiplicando-se os apelos à convergência de lutas.

Só uma resistência activa e sustentada no tempo poderá produzir resultados

Na conferência de imprensa conjunta em que foi anunciada a Greve Geral pela Palestina de 27 de Setembro, Nadwa A., uma activista hispano-palestiniana do BDS, apontava que «não vale a pena parar apenas um dia pelo povo palestiniano» e que «só a união da sociedade civil poderá fazer realmente pressão para acabar com este genocídio». Da mesma maneira, uma escalada da resistência por três dias não vai resolver de uma vez todos os problemas – deve, sim, ser um ponto de partida para uma resistência activa e sustentada no tempo.

Como afirmou José Luis Carretero, secretário-geral da Solidaridad Obrera, nessa mesma conferência de imprensa:

Ao longo da vida das pessoas trabalhadoras, chega um momento em que se tem de decidir, também de forma colectiva, de que lado se quer estar e participar. Neste momento, quando milhares de seres humanos, muitos deles menores e bebés, estão a ser aniquilados, não se pode esperar outra resposta por parte da sociedade, já que o internacionalismo e a oposição a todas as guerras sempre foram parte da identidade do movimento operário.

Uma série de vídeos a apelar a esta Escalada Global, publicados durante o último mês, realçam apelos que a resistência palestiniana tem lançado repetidamente, como os cercos às embaixadas israelitas e norte-americanas, sugerem ideias do que se pode fazer e procuram desconstruir a mentalidade derrotista com que o Império pretende esmagar qualquer ímpeto de resistência e solidariedade activa. Como afirma um dos vídeos publicados pela in.war.ds:

Vale a pena perguntarmo-nos: o que é que eles ganham quando nos mostram todas essas cenas de destruição total e as suas exibições de humilhação?

O único propósito de espalhar essas imagens é destruir o nosso espírito e obliterar toda a esperança. Ao garantir que as únicas histórias que chegam até nós são as de mais perda, mais morte, mais dor, a intenção deles é deixar-nos exaustos e sobrecarregar-nos, fazer-nos desviar o olhar, incutir-nos medo e paralisar-nos. Através dessas imagens, querem convencer os palestinianos e os libaneses de que a derrota é inevitável, de que a guerra já está perdida, e que por isso devemos aceitar a derrota e salvar o pouco que ainda resta. Eles querem convencer o resto do mundo de que a resistência, em todas as suas formas, é inútil.

Depois de mais de um ano, muitos de nós sentimos medo, sentimo-nos presos ou derrotados. Sentimos que não temos qualquer hipótese contra o poderio militar de israel, contra os recursos infinitos dos Estados Unidos e dos seus aliados, contra o peso esmagador do Império. 

Então, para onde vamos a partir daqui?

O primeiro passo é reconhecer as estratégias usadas contra nós. Os nossos sentimentos de desespero e derrota são fabricados, exagerados e instrumentalizados.

Segundo, precisamos de olhar para os factos e as histórias que não nos estão a ser contadas. O que eles não querem que as pessoas saibam é que o projecto colonial sionista está mais vulnerável do que nunca, que a nossa resistência persiste.

A nossa resistência é bem-sucedida. A nossa resistência é significativa. A nossa resistência é poderosa.

Fazem-nos sentir impotentes para que nos rendamos. 

A isso, a nossa resposta é a escalada. 

Escalamos porque rejeitamos este novo normal. Escalamos para nutrir esperança em nós mesmos e nos outros. 

Escalamos por justiça e por uma Palestina livre.

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