Quantas vidas de crianças iemenitas vale um cavalo lusitano?~ 7 min

Imagem por Duarte Guerreiro, com as devidas desculpas aos quadrúpedes.

Por Duarte Guerreiro e Nguyen

O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal condenou “de forma veemente” o recente ataque às instalações da Aramco, no reino da Arábia Saudita. Há vários pormenores interessantes no texto condenatório.

Não é indicada a proveniência do ataque, apesar da Força Aérea do Iémen ter assumido a responsabilidade e não haver grandes motivos para duvidar dela. O ataque não veio do nada. A FAI já havia anteriormente levado a cabo numerosos ataques com drones contra território e infraestrutura da Arábia Saudita e feito questão de apresentar a sua frota de drones, como quem avisa: a paz ou eventualmente vamos bater onde dói. Que foi o que aconteceu. O motivo para esta estranha omissão? Presumivelmente, deixar um espaço em branco para que os Estados Unidos e a Arábia Saudita possam preencher com “Foi o Irão”.

Na verdade, nem sequer é indicado pelo texto, parte de um conjunto pesquisável no site da República Portuguesa, que existe um conflito a decorrer desde 2015, no qual a Arábia Saudita é a parte agressora contra o Iémen. O ataque presumivelmente caiu do céu como um meteorito vindo do espaço sideral. Não é a primeira vez. Em 2017 o governo Português já havia condenado o disparo de um míssil a partir do Iémen contra o reino da Arábia Saudita. Novamente sem qualquer contexto, como se os iemenitas fossem simplesmente os maiores entusiastas do mundo no campo da pirotecnia amadora.

Mas não só é a Arábia Saudita a parte agressora, é também a parte genocida.

O martírio do Iémen

Em 2015, incapaz de obter uma vitória militar apesar dos seus recursos vastamente superiores, a Arábia Saudita inicia um bloqueio militar que deixou 14,4 milhões de pessoas com fome em 2017. Este ano, o número de pessoas afectadas pela fome aumentou para 15,9 milhões de pessoas. Também em 2017, uma epidemia de cólera atingia 400 mil pessoas enfraquecidas pela falta de nutrição e cuidados médicos causadas pelo bloqueio saudita. Epidemia que continua até aos dias de hoje. Estima-se que tenha afectado 2 milhões de pessoas.

Os números de mortos oficiais da guerra, fome e doença são extremamente conservadores, com as agências humanitárias a argumentarem de que não dispõem de meios no terreno para contabilizar vítimas. Se tomarmos em conta o facto de que a taxa de fatalidade da cólera não tratada é de 50 a 60%, podemos facilmente garantir que dezenas de milhares de pessoas perderam a vida. Muitas dessas serão crianças, mais violentamente atingidas pela fome e doença.

Seria demasiado exaustivo listar todas as atrocidades causadas pela intervenção militar Saudita, mas ficam alguns exemplos: atacar navios com refugiados, bombardear mercados, bombardear escolas,  bombardear hospitais, entre outros crimes de guerra. Isto já não conta como “sucessivos ataques (…) sobre infraestruturas civis”, como chora o comunicado do MNE, quando explode uma refinaria saudita?

Onde estão as condenações do governo português a estas atrocidades e crimes? Irá certamente chocar toda a gente descobrir que não há nenhuma. De facto, o único outro documento que menciona o Iémen é uma nota congratulatória sobre o governo do Iémen e a resistência Houthi se terem sentado à mesa de negociações para chegar à paz no conflito. Conflito com quem? Mistério. Entre si? Em lado nenhum é mencionada a Arábia Saudita, principal instigadora da guerra. O que toda a gente mais quer no Iémen é a paz. Não têm absolutamente nada a ganhar com este conflito, a não ser que morrer a ejectar as tripas pelas partes baixas seja a sua própria recompensa.

Mas como no conflito entre a Palestina e Israel, quando a vítima é atacada, é porque o agressor se estava a defender. Quando a vítima retalia, é um acto de violência injustificado. Não é o agressor que se tem de justificar, mas a vítima que se tem de “sentar à mesa de negociações” enquanto espera calmamente o seu extermínio.

Mas esperem lá. E que informações há sobre a Arábia Saudita?

Seguir o dinheiro

Aqui finalmente são revelados os mesquinhos interesses do Estado português, aparte a sua abjecta submissão aos interesses dos seus “parceiros” norte-americanos. A primeira referência à Arábia Saudita nos documentos pesquisáveis é sobre a 4º reunião da comissão mista económica Portugal-Arábia Saudita.

A Arábia Saudita enviou para a tarefa o seu Ministro do Comércio e Investimento, Majeed Al-Kassabi. Até aqui faz sentido, é o tipo de enviado que se espera para uma conferência económica. Portugal enviou… o seu Ministro da Defesa Nacional da altura, José Azeredo Lopes. O que faz o Ministro da Defesa Nacional a encabeçar uma conferência económica que visava “os fluxos de investimento entre os dois países e as oportunidades de negócio e de cooperação nos setores dos transportes, infraestruturas, planeamento urbano, águas, energias renováveis, agroalimentar, turismo, saúde e medicamentos”?

Seja como for, a conferência deu resultados. No próprio dia, a Arábia Saudita levantou o seu embargo à carne de bovino portuguesa. Em 2018, foi a vez dos ovinos e caprinos. Em 2019, por fim, os cavalos. Numa economia altamente dependente das exportações, devido às limitações impostas pelo Euro, e tendo em conta o seu subdesenvolvimento e dependência de exportações agrícolas, compreende-se a prioridade. Em 2017, Portugal exportou mercadorias no valor de 158 milhões de dólares para a Arábia Saudita.

Também em 2017, 11% do crude de petróleo importado por Portugal foi oriundo da Arábia Saudita, no valor total de 545 milhões de dólares. Tal constituiu 90% das exportações da Arábia Saudita para Portugal, sendo o restante quase exclusivamente derivados de petróleo. Esse crude é depois refinado em Portugal, criando produtos para consumo e exportação muito mais valiosos que a matéria prima. Só o petróleo refinado, sem contar com outros derivados, corresponde a 4,7% das exportações nacionais nesse mesmo ano, totalizando 2,8 mil milhões de dólares. Não admira que o Estado português esteja preocupado com a produção de crude saudita. Por tais cifras, qualquer bom gestor do capital não tem outra escolha senão assobiar para o lado perante crimes contra a humanidade.

A frente de batalha

Cavalgaduras à parte, a realidade da guerra no Iémen; ou antes, no Iémen e Arábia Saudita, mudou no último ano. Após anos de ataque da coligação liderado pela Arábia Saudita, os Houthis estão a tomar a ofensiva. Já em 2015, os Houthis começaram a atacar territórios no sul da Arábia Saudita. A escala e consequências desses ataques apenas se tem intensificado, sendo que os Houthis controlam territórios em Asir, Jizan e Najran. Em 2019 foi oficializado o apoio do Irão ao governo Houthi. Também os bombardeamentos a posições sauditas, dentro do reino, têm intensificado. Tudo isto feito por uma força militar sem força aérea convencional.

São ainda de destacar os ataques a duas instalações da Aramco, o bombardeamento de aeroportos militares sauditas e o ataque a oleodutos e petroleiros sauditas. Um dos países mais ricos do mundo está a ser humilhado militarmente por um dos países mais pobres.

Isso é algo que tira muito sono ao governo português. Sem sauditas de bolsos cheios, para onde vamos exportar os nossos Rocinantes?

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