Bolívia // Um golpe de estado perfeitamente banal~ 15 min
Por Duarte Guerreiro
É impossível não sentir uma boa dose de humor negro a investigar o cenário de fundo do último golpe de estado promovido pelos Estados Unidos da América. O plano seguido é tão típico que quase podia ser um diagrama.
Apoio à burguesia latifundiária e extractivista ressabiada com a impertinência dos seus inferiores? Confere. Criação de grupos paramilitares de extrema-direita para suprimir organizações de esquerda? Confere também. Programas de “intercâmbio” com altos representantes da polícia e exército que mais tarde viram a casaca? Campanha suja nos media do capital? Colinho e limpeza de imagem de fascistas? Promoção da balcanização nacional? Descendentes de nazis que fugiram à justiça no pós-2ª Guerra? Confere também, porque não.
Eterno ressabiamento
A nossa história começa com o que o jornalista Benjamin Dangl alcunhou “o lado negro da meia-lua da Bolívia”. Esta meia-lua engloba a maioria dos estados a menor altitude onde se concentra a riqueza da agricultura e gás do país.
Historicamente, é nesta meia-lua, especialmente no departamento de Santa Cruz, onde a burguesia nacional descendente de colonizadores se enquistou. A região é responsável por cerca de 28% do PIB nacional, em quase paridade com a capital. E o seu bastião é a cidade de Santa Cruz de la Sierra.
Como seria de esperar de tais ingredientes, o separatismo é uma força viva. À burguesia boliviana nada mais lhes agradaria do que dinamitar a fronteira com as montanhas e deixar todo o incómodo sudoeste do país, cheio de indígenas que insistem em votar errado, deslizar para dentro do Pacífico.
Á falta da capacidade de o fazer, lutam constantemente por maior autonomia do governo central para se poderem blindar de coisas chatas tais como políticas fiscais redistributivas enquanto tentam regressar ao poder.
Mal Evo Morales é eleito, já a sua queda está a ser promovida pelas forças do capital nacional e internacional. Os Estados Unidos, nesta altura sob o segundo governo de Bush Júnior, enviam Philip Goldberg como embaixador para a Bolívia. O mesmo tinha sido um dos capatazes do processo de balcanização da ex-Jugoslávia. Só três meses depois de aterrar, a pressão política separatista intensifica, inclusive com violência de rua.
Um referendo por maior autonomia departamental em relação ao governo central vence em quatro províncias: Pando, Beni, Santa Cruz e Tarija. Nos planos dos separatistas estava também obter a região de Cochabamba, sob controlo do governador Manfred Reyes Villa, mas perdem o voto.
O governador, bom amigo do embaixador norte-americano e ex-militar que frequentou a “Escola das Américas” em 1976, a organização estado-unidense que só pode ser descrita como um campo de treinos de golpistas e torturadores para exportação para a América do Sul, organiza então violência de rua com gangues de “meninos do papá” cidadão de bem que espancam e aterrorizam os opositores do separatismo com apoio de uma organização chamada “União Juvenil Crucenista” (UJC).
Saldo de dois mortos e 120 feridos graves, principalmente indígenas agricultores. De nada vale; mobilizações massivas obrigam à demissão do governador, que anos mais tarde irá acabar a exilar-se nos EUA em fuga de um processo por enriquecimento ilícito. O embaixador americano também acaba expulso em 2008, pelo seu papel na promoção do separatismo.
Por agora deixemos Manfred no seu exílio; ele terá um papel importante mais à frente.
O coração da besta
Que organização foi aquela que apoiou a violência de rua dos “meninos do papá” de Cochabamba, a União Juvenil Crucenista?
Em Santa Cruz de la Sierra, uma organização denominada Comité Cívico pro-Santa Cruz alberga as conspirações da burguesia ressabiada na Bolívia.
Este Comité promove desde longa data apelos à desobediência militar contra o governo e mantem controlo sobre o aparelho policial, judicial e mediático de Santa Cruz. Quando Morales fez uma visita não anunciada à cidade em 2006, foi corrido à pedrada.
A União Juvenil Crucenista é o seu braço armado. É composta pelos filhotes, aprendizes de feiticeiro e rufias avulsos da burguesia de Santa Cruz. Anti-comunistas, com uma ligeira tendência para fazer a saudação nazi e todos os apetrechos habituais de tais organizações como fanatismo cristão junto com racismo e homofobia virulenta. O próprio corpo diplomático dos EUA o reconhece nos seus despachos. A UJC é chamada à acção sempre que é preciso espancar, por vezes matar, indígenas, sindicalistas, activistas, membros do partido “errado” e jornalistas críticos ou apedrejar e queimar as respectivas sedes destes.
O humor negro regressa ao ler alguns dos relatos sobre este grupo de bons rapazes:
Quando perguntei sobre o significado da cruz na faixa da União Juvenil, o Zurita disse-me “Não é um símbolo Nazi.” Eu disse-lhe que não tinha perguntado se era um símbolo Nazi. Já estavam na defensiva. “Não somos racistas,” disse ele.
As ligações entre as duas organizações são estreitas, apesar de o negarem. Se o Comité fosse um partido, a União seria a sua juventude. É comum que membros da União sejam promovidos a membros do Comité quando se destacam ou se tornam velhos demais para continuar na primeira. As sedes das duas organizações estão literalmente frente uma à outra na mesma rua.
É destas duas organizações que provêm a “cara” do golpe, Luís Fernando Camacho, o político que quer purgar o Estado de todos os apoiantes de Morales e “voltar a levar Deus ao palácio Quemado”. Camacho é um multimilionário de uma família de bem que faz o seu dinheiro com o negócio do gás. Saíram prejudicados pelas políticas redistributivas de Morales, com menos dinheiro do extractivismo a ir-lhes para o bolso. Está também identificado nos Panamá Papers como um facilitador de offshoring.
Foi vice-presidente da UJC entre 2002 e 2004, tendo depois sido promovido para o Comité. O seu mecenas na organização é Branko Marinkovic, latifundiário de ascendência croata, que se tornou líder do Comité em 2007. Se estão a presumir que Branko perdeu terras para as políticas de Morales e está ressabiado da vida por isso, não preciso de vos dizer que têm razão.
Há rumores de que a sua família é uma daquelas que fugiu para a América do Sul depois de, sei lá, terem pertencido a organizações colaboracionistas com os nazis e estarem a fugir com o rabo à seringa da justiça que lhes era devida. A Bolívia tem antecedentes de tal: Cochabamba foi a casa de Klaus Barbie, criminoso de guerra nazi salvo pelos norte-americanos de uma corda ao pescoço oferecida pelos franceses.
Em 2008, Branko é protagonista de mais um momento de humor acidental na direita boliviana quando se queixa de perseguição política à Federação Internacional pelos Direitos Humanos. Recebe de volta uma carta aberta a expor os muitos crimes do Comité e da União.
Em 2009, Branko é acusado de fornecer 200 000$ para facilitar um atentado contra a vida de Morales por mercenários de extrema-direita irlandeses e mete-se ao fresco, primeiro para os EUA e depois para o Brasil. Onde, escusado será dizer, se tornou um apoiante de Bolsonaro. Até na hora de preparar o assassinato de líderes políticos, a oposição boliviana arranja forma de injectar humor nos procedimentos:
O dinheiro foi dado a traficantes de armas argentinos que desapareceram com ele sem providenciarem armas, de acordo com uma das outras testemunhas (…)
Se a direita boliviana é tal colecção de cromos, o que explica que finalmente tenham obtido sucesso, 13 anos depois de iniciarem esforços?
O dedinho americano
A vantagem de se ser uma super-potência com recursos ilimitados é que nos podemos dar ao luxo de ser pacientes com os nossos investimentos em golpes de estado. Os EUA investem décadas e milhares de milhões de dólares em construir teias de influência que podem ser activadas em momentos chave como este.
Já desde 2002, via as suas agências pseudo-humanitárias financiadas pelo orçamento nacional, como a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) e o NED (Fundação Nacional para a Democracia), os EUA já tinham generosamente enviado dezenas a centenas de milhões de dólares para a oposição separatista e suas organizações, tal como o Comité Cívico pró-Santa Cruz.
O NDI (Instituto Democrático Nacional), parte do mesmo complexo que a USAID e o NED, também teve a simpatia de pagar viagens até aos EUA a membros da UJC para receberem formações sobre como executar “revoluções coloridas”.
Estas mesmas organizações não são apenas usadas para promover a oposição, mas também para fragmentar a base de apoio social do governo ao meter dinheiro na mão de indivíduos dispostos a ser críticos ou opositores dos seus anteriores aliados pelo preço certo ou ao tentar ampliar ressentimentos entre diferentes comunidades indígenas. Benjamin Dangl providencia mais um momento de humor negro ao relatar o seu encontro com um “bom exemplo” do trabalho da USAID na Bolívia, recomendado pela própria agência:
Colocam-me em contacto com Wilma Rocha, a chefe numa fábrica de roupa em El Alto chamada Clube de Mães Nova Esperança. Um consultor da USAID trabalhou na fábrica de 2005 a 2006, a dar conselhos em questões de gestão e a facilitar exportações das roupas produzidas no negócio para os mercados dos EUA. Numa cidade de radicais de classe trabalhadora bem organizados, Rocha é uma das poucas pessoas de direita. É uma crítica feroz da administração Morales e dos sindicatos e concelhos de bairro de El Alto.
Dez empregadas mulheres estão a costurar numa mesa no canto de uma vasta fábrica cor de rosa cheia de dezenas de máquinas de costura abandonadas. “Há três meses que mal recebemos trabalho de todo,” uma das mulheres explica enquanto Rocha espera na distância. “Quando recebemos cheques, o pagamento é horrível.” Pergunto-lhe o nome, mas ela diz que não mo pode dar. “Se a chefe descobre que estamos a ser críticas, dá-nos uma tareia.”
Mas onde o investimento dos EUA mais compensa é no exército e polícia. Sete dos golpistas militares passaram pela Escola das Américas, incluindo Williams Kaliman, o general que “convidou” o presidente Morales a demitir-se e que também foi o adido militar na embaixada boliviana em Washington. Vários dos oficiais da polícia que se amotinaram, tal como o seu comandante general, Vladimir Yuri Calderón Mariscal, também frequentaram cursos de formação da APALA (uma espécie de Escola das Américas para a polícia) em Washington, pagos e promovidos pelos EUA.
É nestas constantes sessões de “treino” e diplomacia que os EUA abordam e estreitam relações com possíveis aliados, dispostos a servir o império na hora da verdade em troco das suas 30 moedinhas. De facto, alguns parecem ter gostado tanto da experiência que nem se conseguem separar da merch, mesmo no dia do golpe.
E neste momento, quem é que regressa? O nosso exilado governador de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, num bonito reencontro entre os antigos e os novos alunos da SOA, para congeminar a queda do governo. Numa série de áudios leaked, os membros da conspiração podem ser ouvidos a discutir diferentes abordagens a aplicar, tais como incendiar edifícios governamentais, meter sindicatos amarelos a fazer greve e assediar membros do MAS, o partido de Morales. Em breve, todos esses planos e outros seriam colocados em acção.
Discutem também como contam com o apoio da comunidade evangélica e da Colômbia e Brasil, assim como dos senadores americanos Ted Cruz, Bob Menéndez e Marco Rubio. Coincidências: todos estes três senadores são gusanos. Camacho também andou ocupado. Meses antes do golpe, faz um tour da América do Sul, para cortejar o apoio da Colômbia, Brasil e do governo auto-reconhecido em “exílio” de Juan Guaidó.
Tanto Manfred Reyes Villa como Branko Marinkovic ponderam agora um regresso à Bolívia, dependente da implementação pelo novo governo de uma amnistia relativa aos crimes cometidos por estes indivíduos empreendedores.
Os trombeteiros
Todo este processo seria demasiado transparente se não pudéssemos contar com um bom serviço de relações públicas para a oposição “democrática”. Os media do capital tiveram todo o gosto em providenciá-lo.
É assim que uma figura de segunda de que nunca ninguém tinha ouvido falar, de seu nome Juan Guaidó, foi levado a sério como presidente auto-proclamado da Venezuela. Foi assim também que da irrelevância política, um zé-ninguém chamado Luís Fernando Camacho, que nunca foi eleito para qualquer cargo político, é transformado na cara do golpe pela democracia e liberdade na Bolívia.
É levado ao colinho pelos grandes media de língua castelhana como a Unitel, Telemundo e CNN Español. Na língua inglesa, o golpista era descrito assim:
(…) como um “líder conservador dos protestos” (BBC, 13/11/19), “um instigador cristão” (Financial Times, 12/11/19) e “um líder cívico” (Reuters, 07/11/19)
Para além de também ajudarem a propagar a narrativa do golpe eleitoral, a violência de direita nas ruas era também higienizada:
(…) “protestos de massas” (BBC, 31/10/19), “dissidentes” (AP, 08/11/19), e “desobediência civil” (New York Times, 31/10/19).
A violência de direita era enquadrada como “confrontos” (DW, 08/11/19; France 24, 08/11/19) relativos a resultados eleitorais “controversos” ou “disputados” (Washington Post, 07/11/19; BBC, 07/11/19) (…)
No Twitter, a conta de Camacho, desconhecida do mundo até há pouco tempo, salta de 2000 seguidores para 130 000 no espaço de uma semana. Mais de 50 000 destas contas foram criadas nas duas últimas semanas de Novembro. Uma verdadeira corrida ao Twitter num país onde este representa menos de 3% da utilização de redes sociais. Mesmo que fosse uma rede social concorrida na Bolívia, tal seria irrelevante. A verdadeira importância destas campanhas é influenciar os jornalistas que proliferam no Twitter, ansiosamente à espera do próximo tweet do Trump, e desse modo influenciar audiências de todo o mundo.
Nos dias que se seguem ao golpe, uma mensagem é repetida por estas contas de forma obsessiva: “Amigos de todo o mundo, na Bolívia não houve golpe”. Um dos pólos de actividade desta operação é o estado de Virginia, nos EUA – a casa da CIA.
Não sei quanto a vocês, mas eu estou convencido.