A Luta contra o Despejo da SoREA e a Esquizofrenia Institucional~ 12 min
Por Francisco Norega
Na passada segunda-feira, 4 de Janeiro, em Coimbra, deu-se um novo ataque ao direito à habitação, às Repúblicas e aos modos de vida comunitários que nelas se constroem todos os dias. Através da luta, as e os estudantes da SoREA – Solar Residência dos Estudantes Açoreanos conseguiram, dois dias depois, regressar ao edifício de onde tinham sido despejadas. Infelizmente, estão novamente ameaçadas de despejo. Que a solidariedade e a resistência se mantenham firmes. Por aqui, mantemo-nos atentos.
O despejo foi ordenado e levado a cabo de forma altamente irregular. Foi pelas 9h da manhã e sem qualquer aviso prévio que se iniciou a acção de despejo desta Repúbica. As e os residentes da casa, dos quais a maioria são migrantes ou pessoas racializadas, foram apanhadas de surpresa pelo agente de execução a tentar arrombar a porta e por gritos de “Isto é um país com regras!”. Quando este consegue entrar na casa, já depois de o advogado que defende a SoREA chegar ao local, os agentes da polícia que o acompanhavam gritaram incisivamente pelos documentos dos e das residentes. Fica assim evidente o carácter xenófobo e racista deste acto de má-fé, num completo desrespeito pela história e tradição de inclusividade destas Repúblicas, que em tantos momentos acolheram pessoas que estavam na clandestinidade, eram perseguidas por alguma razão ou se encontravam em situações de especial fragilidade. Foi assim durante o Estado Novo, foi assim com estudantes timorenses durante a luta pela independência e foi assim durante esta última vaga de refugiados que vem chegando à Europa os últimos anos, a fugir da guerra, de perseguições políticas e da miséria vivida nos seus países de origem.
Durante a manhã, algumas dezenas de pessoas foram-se deslocando ao local para mostrar a sua solidariedade e oposição ao despejo. Quando um dos membros da Guilhotina chegou ao local, foi informado que uma câmara já tinha sido apreendida a um companheiro e, ao tentar registar em vídeo o que estava a acontecer, foi ameaçado com a apreensão do telemóvel pelos agentes e obrigado a apagar o vídeo em causa. O mesmo aconteceu com outras duas pessoas, e uma terceira viu o rolo da sua máquina fotográfica analógica ser destruído por um dos agentes. O argumento? Ser proíbida a filmagem de acções judiciais.
E, assim, pelo meio-dia, estas pessoas foram deixadas na rua com todos os seus pertences e o espólio de uma República com mais de 50 anos de história. Em pleno inverno, em plena pandemia e em plena época de exames. Um despejo não só executado sem qualquer consideração pelas pessoas que lá vivem como também, no nosso entender, ilegal e ilegítimo, pelas razões que em baixo aprofundaremos.
Esta acção de despejo foi mascarada pela senhoria como uma simples acção de “entrega do bem”. Em declarações à Lusa, ela afirmou que, na verdade, isto não era um despejo, que era quase uma simples troca de fechadura depois de se ter chegado “a um entendimento com o arrendatário para a entrega do imóvel”. Uma troca de fechadura que, como “o senhor arrendatário não tinha a chave”, infelizmente teve de ser ordenada pelo tribunal e levada a cabo por um carrasco do direito à habitação – um senhor agente de execução – e apoiada por uma advogada de nome Ângela Frota, já famosa nas redes sociais pelos seus comentários exaltados contra os e as actuais residentes da República – cujo maior crime será não serem provenientes dos Açores. Será que vamos começar a ver despejos por não viverem cágados nos Kágados, ou galos nos Galifões? Por nas Marias agora viverem Margaridas, Catarinas ou Carolinas, por não se ver um inca entrar nos Inkas há mais de meio milénio, ou por não haver nenhum marinheiro nos Corsários das Ilhas?
Mas… esperem. Quem será este arrendatário de quem a senhoria fala? Este arrendatário terá celebrado o contrato original em 1966 e, ao que consta, é um senhor que vive nos Estados Unidos há décadas e que não tem, desde há muito tempo, qualquer contacto com a República. Mais, segundo Rui Mendes, advogado da República, “há uma sentença com 30 anos em que o tribunal considera como provado que habita nesta casa uma República, uma comunidade de estudantes, facto conhecido de toda a gente, com o imóvel classificado como de interesse cultural municipal”.
A senhoria afirma que aquela casa nunca foi uma República, que o próprio contrato referia que nunca o poderia ser e que “quem estava na casa não tinha título para estar na casa”. Mas, então, porque é que a senhoria continuou a receber a renda que as várias gerações da República foram pagando, durante décadas? Questionamo-nos: quanto da história foi omitida pela senhoria e a sua advogada ao juiz que deu ordem para se levar a cabo este despejo-que-não-foi-um-despejo? E perguntamos: a ocultação de dados cruciais para um determinado processo judicial não é, isso mesmo, um crime?
Outra questão que se impõe levantar: o que fez a Câmara Municipal de Coimbra (CMC) para evitar que se chegasse a esta situação? O edifício da SoREA tem graves problemas estruturais que comprometem a habitabilidade da casa e, sendo que a proprietária não avança com as obras necessárias, a CMC pode tomar posse administrativa do imóvel para proceder às obras coercivas. Apesar de este processo já se poder ter iniciado há pelo menos dois anos, a Câmara tem arrastado a decisão. Ao agravar da situação estrutural do edifício juntaram-se, desde o final de Outubro, vários contactos que procuraram fazer as e os actuais residentes abandonarem a casa e em que se falava da intenção da senhoria de avançar para a rescisão do contrato de arrendamento. Chegaram a haver ameaças de despejo. Apesar de estas ameaças nunca terem sido comunicadas formalmente e não se terem chegado a concretizar, foram emitidos comunicados tanto pelo Conselho de Repúblicas como pela própria SoREA a alertar para a situação, e levaram-se a cabo acções de rua na cidade em que foram denunciadas as ameaças recebidas.
A CMC foi pressionada a tomar finalmente posse do edifício, e chegou a haver um compromisso por parte da vereação da habitação em avançar com o processo, que na prática impossibilitaria a senhoria de levar a cabo o despejo. No entanto, não houve tomada de posse administrativa por falta da assinatura do Presidente da Câmara, Manuel Machado. Assim chegamos a Janeiro de 2021, tendo já deixado de vigorar a proibição de despejos por causa da pandemia. E então, no primeiro dia útil do mês, uma República com 7 pessoas residentes e 7 comensais foi despejada e privada do seu espaço físico. Só no decorrer do próprio despejo é que chega, finalmente, a tão esperada assinatura do Presidente e a promessa de que a República poderá regressar à sua casa assim que entrar em vigor a posse administrativa.
O dia 4 de Janeiro foi duro para estas pessoas, cheio de tristeza, desânimo, dúvidas e incertezas. Mas foi também um dia de solidariedade, de determinação em não desistir e em lutar por aquilo que é nosso por direito. A solidariedade saiu à rua à frente da casa durante o decorrer do despejo – veio não só de amigos, actuais e antigos de outras Repúblicas, como também de várias vizinhas que foram mostrar a sua solidariedade e o seu descontentamento com o despejo. E acompanhou a SoREA durante todo o dia. Deu força às gentes que se viram sem tecto para não perderem também o ânimo e para continuarem a pressionar as várias instituições da cidade no sentido de conseguirem voltar para a casa o mais rápido possível e de conseguirem soluções imediatas de alojamento e alimentação enquanto esse regresso não se concretizasse.
Nesse sentido, durante a parte da tarde, residentes da SoREA contactaram e reuniram com representantes da Reitoria, dos Serviços de Acção Social da UC (SASUC), da AAC, da Vereação da Habitação e da CMC. Enquanto isso, cerca de três dezenas de pessoas concentraram-se em frente à Câmara Municipal para mostrar o seu apoio.
Foi assim conseguido um compromisso por parte da Vereação da Habitação de atribuir um carácter de urgência ao processo de tomada de posse administrativa. No dia seguinte, terça-feira, foram publicados editais a anunciar a decisão na Câmara, na Junta de Freguesia e na porta do edifício da SoREA, tendo uma cópia sido também enviada à senhoria. Nestes editais era anunciada a tomada de posse administrativa, marcada para as 14h30 do dia seguinte, e discriminadas as obras que vão ser feitas.
Foi assim que, graças à solidariedade e à pressão popular, pelas 14h30 de quarta-feira, os e as residentes da SoREA puderam voltar ao edifício.
Assim poderia ter terminado esta história.
No entanto, na quinta-feira, a SoREA foi surpreendida por uma nova notícia, publicada por órgãos de comunicação locais, de que a tomada de posse administrativa teria sido suspendida. Segundo a sra. Ângela Frota, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra terá aceite uma providência cautelar por parte da senhoria, suspendendo a posse administrativa do imóvel pelo município.
Questionamo-nos quais serão as intenções do juiz encarregue deste processo. Apesar de, à data da emissão da ordem para “entrega de bem”, poder ter ignorado muita informação que supomos ter sido ocultada pela sra. Ângela Frota, é pouco provável que não tenha já sabido, quanto mais não seja pela comunicação social, dos contornos dantescos desta história. Não só que não é humano violar desta maneira o direito à habitação, para mais no meio do inverno e de uma pandemia, como que há muitas décadas se encontra uma República naquele edifício (facto confirmado por uma sentença de há 30 anos), que essa República sempre pagou as suas rendas, que lá vivem estudantes que estão em plena época de exames, que o SoREA é parte integrante do Património Imaterial da UNESCO e Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal de Coimbra e que (pelo menos segundo nos consta) uma acção de despejo carece de notificação. Qualquer juiz decente, parece-nos, teria constituído como arguidas a representante da senhoria e a sua advogada, por obstrução de justiça, má-fé ou atentado contra património cultural da cidade. Ou por todas as três razões.
As e os residentes vivem agora momentos de incerteza. Durante este fim-de-semana, sofreram uma nova intimidação, quando sujeitos que não foi possível identificar, de madrugada, arrancaram da porta do edifício o edital nela colocado pela CMC na terça-feira passada. Estas pessoas adormecem todos os dias sem saber se, no dia seguinte, acordarão com uma nova acção de despejo. Uma comunidade de que fazem parte várias pessoas migrantes e/ou racializadas, sendo que algumas delas, para além de estudar, têm de trabalhar para se sustentar. Tudo isto, repetimos, no meio de uma época de exames. Tudo isto por mesquinhez de alguém que se diz proprietária de um imóvel do qual recebe rendas todos os meses, mas no qual há décadas não investe um cêntimo, tendo sido ou a Câmara ou a própria República a assegurar que existam as condições mínimas para nesta casa viver gente.
Em resposta a esta situação de incerteza, a SoREA convocou uma manifestação para amanhã, quarta-feira, fazendo um apelo à solidariedade de toda a comunidade. Às 15h, no Largo D. Dinis, sai-se à rua contra o despejo, pelo direito à habitação digna em Coimbra e em defesa da continuidade das Repúblicas.
Nas palavras da SoREA:
Estamos no meio de um confronto entre a Câmara Municipal e a senhoria da casa, em alerta constante e em risco de um próximo despejo porque a advogada da senhoria não nos reconhece como republicxs e verdadeirxs moradorxs da casa. Por isso, contamos com a vossa solidariedade para que a má fé da senhoria e sua advogada não nos deixe novamente na rua.