«Defender as revoluções era, para mim, o meu dever histórico.»~ 10 min
Por Guilhotina.info
Na véspera das concentrações em Lisboa, Coimbra e Porto para assinalar os 5 anos da morte de Mário Nunes, mártir da Revolução de Rojava e da guerra contra o Estado Islâmico, publicamos uma entrevista a um combatente internacionalista das YPG. Pela Plataforma de Solidariedade com os Povos do Curdistão.
Podes apresentar-te e introduzir a tua história em Rojava?
O meu nome de militante é Sorxwin Soresger, tenho cerca de trinta anos e cresci na Europa. Participei em diferentes lutas na Europa até que decidi juntar-me às YPG como voluntário internacionalista no Nordeste da Síria em 2015, para me juntar à luta contra o Estado Islâmico e defender a revolução de Rojava.
Como era a situação geopolítica quando foste para Rojava? Qual era a situação da guerra e a política em torno dela?
É uma questão muito ampla. Talvez não consiga ser muito preciso, visto que já foi há alguns anos e a minha memória não é muito boa. Lembro-me que era a época do Obama no ocidente e que isso teve um impacto aqui. Após a vitória em Kobane, os americanos começaram a coordenar-se mais com as nossas tropas (por exemplo, desenvolvendo um sistema de comunicação com as nossas unidades no terreno e com os seus aviões de combate). Em Bakur e no resto da Turquia o HDP também estava com força após uma grande vitória política nas eleições. No final de 2015 o Estado turco e a máfia ligada a ele iniciaram uma operação para criminalizá-los e atingir de forma mais ampla o movimento curdo, iniciando uma operação militar contra cidades e vilas do lado curdo. Lembro-me de uma vez que estava em Qamishlo (na Síria) a olhar para a sua cidade gémea, Nusaybin (do lado turco da fronteira), que havia sido destruída por tanques turcos. Neste dia senti-me muito desconfortável. Nós estávamos no país em situação oficial de guerra, mas na verdade a guerra acontecia a algumas centenas de metros de onde estávamos, do outro lado da fronteira, num país que não estava oficialmente em estado de guerra civil. Lembro-me que fiquei muito zangado com os media ocidentais por não cobrirem esses eventos. De resto, a situação em Rojava era bastante diferente de agora. A fronteira com o Iraque não era hermética como agora e a Turquia não tinha ainda construído o muro que existe hoje. Além disso, o Daesh ainda estava presente e controlava territórios. Quando cheguei a Rojava, o tema principal era a criação da aliança das SDF (concretamente uma aliança entre as milícias YPG e ASL para impedir a expansão do Estado Islâmico). Em 2015, após a batalha de Kobane, as nossas forças iniciaram uma grande ofensiva para cortar a linha de abastecimento do Daesh que vinha da Turquia. No fim de 2015, partimos para a ofensiva na principal cidade controlada pelos jihadistas, onde havia o maior e mais infame mercado de escravos, Al-Shadadi. Foi uma operação longa e perdemos muitos bons camaradas nesta batalha. A frente era muito extensa desde a cidade até às aldeias perdidas no meio do deserto. Depois de alguns meses de lutas intensas, conseguimos ganhar o controlo da cidade e libertar milhares de pessoas do poder jihadista.
Como funcionou quando chegaste? Como funcionava o treino e a colocação dos internacionalistas naquela época?
Quando atravessei a fronteira com a Síria, fui encaminhado para a academia internacional, como todos os voluntários estrangeiros, para passar algumas semanas e obter os conhecimentos básicos como o básico da língua, introdução ideológica ao confederalismo democrático e um treino militar básico. O treino não era nada de descabido. Rotina matinal com desporto e depois algumas horas de teoria (características e mecanismo das armas, estratégias básicas de guerra, posição defensiva, emboscada, aula de línguas e alguma aula sobre temas políticos). À tarde também praticávamos algum desporto e fazíamos longas caminhadas para nos habituarmos ao nosso material.
Então, depois de se passar pelo processo da academia básica, era-se colocado num batalhão. Nessa altura havia duas opções, móvel ou estático, e depois alguma subdivisão como armas pesadas, sabotagem ou franco-atirador. Se se ia ser móvel ou estático era decidido de acordo com a capacidade física, visto que as YPG aceitavam todos os voluntários nesta época. Alguns companheiros não eram fisicamente capazes de aguentar longas marchas ou corridas, portanto eram colocadas num tabur (batalhão) estático. Significa que ficavam num ponto estático, por exemplo, numa cidade, a desempenhar o papel de defesa local contra possíveis ataques jihadistas (eram muitos naquela altura). Os outros eram na sua maioria colocados automaticamente num tabur móvel, onde éramos enviados para diferentes partes de Rojava de acordo com as necessidades. Eu fui enviado para um tabur móvel e viajei por todo o lado.
Como eram recebidos e vistos os internacionalistas pela população local naquela época?
Na área libertada recebíamos muito apoio dos civis. As crianças cantavam para as YPG sempre que passávamos de carro na sua aldeia. Quando estávamos na linha de frente, as famílias enviavam comida e roupas para nós. Geralmente as pessoas amavam-nos muito e principalmente os internacionalistas. Sempre que íamos às cidades comprar alguma coisa as pessoas paravam-nos para tirar fotografias com aqueles biyanis (forasteiros) que vinham para defender as suas terras. É importante também falar sobre as pessoas que eram mais desconfiadas, especialmente as populações de algumas aldeias que tinham sido ocupadas pelo Daesh durante muito tempo e onde algumas pessoas se juntaram às fileiras do Estado Islâmico. Tinham medo de nós, pensavam que íamos queimar a sua aldeia e expulsá-los. Na verdade, com o tempo, construindo aos poucos a confiança entre ambos, as coisas foram melhorando. Devo admitir que, em algumas aldeias especiais, também nós tínhamos medo que eles soubessem que tinham membros do Daesh na sua família, o que é bastante normal nesta situação. Muitos dos nossos camaradas caíram mártires por causa de algumas pessoas se vingarem pelos seus primos ou irmãos, etc.
Interagiste muito com as pessoas locais?
A nossa unidade era composta por locais, portanto sim. Mas se estivermos a falar de civis, não muito, na verdade. Apenas nalgumas ocasiões específicas. Lembro-me de um pastor que se aproximava da nossa base com as suas ovelhas, conversávamos com ele de vez em quando e depois ele trazia os seus filhos para conversar conosco. No final gostou tanto de nós que nos ofereceu uma ovelha para o Newroz (equinócio da primavera)
Para alguém como tu, sem experiência militar, a guerra teve uma grande influência? Como é que te afectou?
Claro que sim. Quando fiz a minha primeira guarda na linha de frente estava com medo e, nos dias em que estava lá, pensava muito na minha família e nos meus amigos. Na verdade, dei muito valor ao significado deles na minha vida. Pensei em como eles reagiriam se algo acontecesse comigo. Mas por si só não foi algo que me traumatizou ou algo assim, eu sabia porque é que estava lá e acredito firmemente que foi uma coisa boa estar lá a resistir contra o fascismo com uma arma nas minhas mãos, pronto para sacrificar a minha vida pela liberdade de milhões de pessoas. E depois de algum tempo uma pessoa habitua-se aos sons da guerra, sabe como reagir de acordo com os sons que ouve, sabe também como não reagir nalgumas circunstâncias. A guerra torna-se resistência e a resistência é vida.
Como eram as relações entre os internacionalistas?
Naquela época, havia muitos internacionalistas que não eram politizados de forma alguma. Muitos deles eram ex-soldados ou mercenários. Como eu disse antes, naquela época as YPG estavam a aceitar quem quer que quisesse juntar-se à luta. Isto causou muitos problemas, no sentido em que as YPG estão a lutar por uma revolução. Representam um ideal, princípios e uma moral. Muitos internacionalistas nessa época não conseguiam seguir as regras básicas de respeito relacionadas à cultura de Rojava. E havia muitas contradições entre revolucionários e pessoas devotas à guerra, de origem militar imperialista. Por exemplo, nas YPG é proibido beber álcool ou tomar qualquer tipo de droga. Esta regra simples, muito pertinente em situação de guerra, causou muitos problemas entre ex-soldados e mercenários. Com o tempo, as YPG mudaram o seu processo de aceitação de pessoas. E agora há menos problemas relacionados com esta questão. Fora deste problema, estávamos também a tentar desenvolver Hevalti [camaradagem] entre nós. Hevalti é uma parte importante da revolução no Curdistão. Entre os grupos é uma característica muito impressionante, esforcei-me muito para me enquadrar neste princípio e ajudou-me a desenvolver a minha própria personalidade.
O que é que te trouxe a Rojava?
Na verdade, eu queria cumprir uma espécie de dever enquanto revolucionário, defender as revoluções era para mim naquela época o meu dever histórico. Tal como aqueles que resistiram ao fascismo ou participaram em revoluções longe das suas terras. Senti que era a minha vez de ser corajoso o suficiente para proteger esta esperança que crescia no Médio Oriente.
Sabendo o que sabes agora, terias mudado alguma coisa ao ir para Rojava?
Sim, a minha abordagem, como eu disse antes. Eu pensava que estaria lá a ajudar. Na verdade, a revolução de Rojava deu-me muito mais do que eu alguma vez poderia dar a ela. No sentido em que se eu tivesse chegado diretamente com a mentalidade pronta para aprender, isso teria facilitado as coisas para mim e para o processo de desenvolvimento da minha personalidade revolucionária.
Quais seriam os teus conselhos para quem se quer envolver? E para quem quer honrar o sacrifício daqueles que se tornaram mártires?
Em primeiro lugar, informem-se sobre a situação e sobre a história da resistência moderna curda. Aprendam sobre a história do PKK e sobre as estruturas autónomas na Síria. Leiam sobre Abdullah Öcalan e leiam os seus livros.
Para quem se quiser envolver, pode acompanhar e participar nas diferentes campanhas: Riseup4Rojava, WomenDefendRojava. Sigam-nos e participem nas suas chamadas de acção. Podem também entrar em contacto com a Revista Legerin, lê-la, imprimi-la e espalhá-la.
Para informações, alguns sites estão disponíveis em inglês, como a ANF news, a Hawar news e a Nuçe Ciwan.
No instagram também podem encontrar muitas contas vinculadas ao movimento, como @young_internationalist_women @antifa_enternasyonal @ypgint etc.
Para homenagear os mártires da revolução é importante que companheiros de todas as partes do mundo tomem a iniciativa de organizar comemorações. Fazendo isto, podem também entrar em contacto com a comuna internacionalista, que poderá enviar as informações às famílias dos mártires.