Cuba // Uma lição ao mundo capitalista na luta contra a pandemia~ 9 min

Por Víctor Boaventura e Nguyen

Cuba está novamente a dar uma grande lição ao mundo neoliberal. Como é que uma pequena ilha, que sofre um embargo brutal por parte dos EUA, com a mesma população que Portugal, consegue desenvolver 5 vacinas? É “fácil”: investimento estatal na biotecnologia e uma visão não economicista da saúde pública. 

Quando a pandemia do COVID-19 começou, Cuba decidiu não esperar que o resto do mundo desenvolvesse vacinas. Os investigadores e autoridades cubanas sabiam que, devido ao embargo económico que já dura há 60 anos, a aquisição de vacinas e terapias para Cuba iria ser difícil. “Para proteger a nossa população, era melhor ser independente”, diz Vicente Vérez Bencomo, diretor-geral do Instituto Finlay de Vacinas em Havana.

Para termos uma ideia, Cuba é a nação mais pequena do mundo a desenvolver a sua própria vacina. Foi o primeiro país do mundo a vacinar a população infantil. Até ao momento, cerca de 86% da população cubana foi totalmente vacinada contra a Covid com três doses, e outros 7% foram parcialmente inoculados contra a doença, segundo estatísticas oficiais compiladas pela Our World in Data. Lembramos que a vacinação não é obrigatória em Cuba.

Vacina com 92,4% de protecção contra a COVID-19

O prestigiado sector de biotecnologia de Cuba desenvolveu cinco vacinas diferentes contra Covid, incluindo a Abdala, a Soberana 02 e a Soberana Plus – que, segundo a revista Nature, fornece cerca de 92,4% de proteção contra Covid sintomática quando são administradas três doses.

Ao contrário das gigantes farmacêuticas americanas Pfizer e Moderna, que usam tecnologia de mRNA, todas as vacinas de Cuba são vacinas de proteína de subunidade – como a vacina Novavax. Isto é crucial para os países mais empobrecidos, pois estas vacinas são de produção barata, podem ser fabricadas em larga escala e não requerem ultracongelamento.

Isso levou as autoridades internacionais de saúde a divulgar as vacinas cubanas como uma fonte potencial de esperança para o “sul global”, principalmente porque é aí que as baixas taxas de vacinação persistem. Por exemplo, enquanto que cerca de 70% das pessoas na União Europeia foram totalmente vacinadas, menos de 10% da população africana foi totalmente vacinada.

A BioCubaFarma, organização estatal cubana de biotecnologia, tem mantido contactos próximos com representantes da OMS para obter a categoria de pré-qualificação para as suas vacinas COVID-19, algo que esperam conseguir em 2022. Um dossiê completo de dados sobre as vacinas desenvolvidas está programado para ser entregue à OMS no início de Fevereiro.

A urgência de preços solidários para as vacinas COVID

A especulação de preços nas vacinas contra a COVID-19, fomentada pelos grandes laboratórios, tem sido um dos maiores entraves a fazê-las chegar a países mais empobrecidos. Apesar das promessas internacionais de que as vacinas seriam disponibilizadas a preços mais baratos para países com baixos rendimentos, essas nações estão a pagar um preço muito mais elevado que o esperado.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, os países mais empobrecidos estão a pagar, em média, 6,11 euros por dose de vacina contra o COVID. Se tivermos em conta que o preço médio de produção de cada vacina mRNA é de 1,07 euros, observamos que o lucro dos grandes laboratórios tem sido brutal. 

Só para termos uma ideia da disparidade de preço das vacinas: a África do Sul foi obrigada a comprar doses da vacina Oxford-AstraZeneca a um preço 2,5 vezes superior ao pago pela maioria dos países europeus. A União Africana pagou cerca de 6 euros por dose – ou seja, uma dose da vacina custa o mesmo que o Uganda gasta com saúde por cidadão num ano inteiro. 

A COVAX, a iniciativa global de aquisição de vacinas destinada a garantir um fornecimento subsidiado de vacinas para os países mais pobres, ficou repetidamente aquém das suas metas. Em Setembro de 2021 anunciou uma redução de 25% no fornecimento esperado de vacinas para 2021.

Nove em cada dez doses de vacinas administradas até ao momento foram-no em países ricos, enquanto os mais pobres ainda terão que esperar alguns meses ou mesmo anos. Este cenário, para além de considerações éticas e sociais, aumenta o risco de surgirem novas variantes do vírus que tornem as vacinas já administradas ineficazes.

Sabendo perfeitamente que a solidariedade é a maior arma para combater uma pandemia destas dimensões, as autoridades cubanas anunciaram um plano de 3 pontos para tentar ajudar a vacinar os países mais empobrecidos. 

Plano solidário cubano para ajudar o sul global

Apesar do embargo dos EUA, Cuba conseguiu receber financiamento do Banco Centro-Americano de Integração Económica que, segundo a Reuters, será suficiente para produzir 200 milhões de doses e levá-las a países empobrecidos. No passado dia 24 de Janeiro, o Dr. Vicente Vérez Bencomo, Director Geral do Instituto Finley de Vacinas disse, numa conferência de imprensa organizada pela Internacional Progressista, “[Cuba] pode produzir 120 milhões de doses em apenas um ano.”

Ao mesmo tempo, o governo cubano, anunciou o seu plano global solidário de entrega de vacinas a países do sul global, que inclui:

  1. Vacinas para a COVID-19 a preços solidários para países com baixos rendimentos. 
  2. Transferência de tecnologia, quando possível, para permitir a produção nesses mesmos países de baixos rendimentos. 
  3. Ampliação das brigadas médicas para aumentar o treino e capacidades médicas necessárias para a distribuição das vacinas nos países parceiros.

Transferência de tecnologia cubana permitirá a produção da vacina

Em Dezembro de 2021, especialistas identificaram mais de 100 empresas na África, Ásia e América Latina com potencial para produzir vacinas de mRNA, instando os governos dos EUA e da Alemanha a obrigar as suas empresas farmacêuticas a partilhar tecnologia. No entanto, nenhum progresso foi feito e, no início do ano, a Organização Mundial da Saúde lamentou o facto de que “a falta de partilha de licenças, tecnologia e know-how por parte das empresas farmacêuticas significava que essa capacidade de fabricação não estava a ser utilizada”.

Estes potenciais fabricantes precisam de acesso à propriedade intelectual, tecnologia e materiais para produzir mais vacinas para uma resposta mais rápida e equitativa à COVID-19. 

Índia e África do Sul propuseram à Organização Mundial do Comércio (OMC), em Outubro de 2020, o levantamento temporário das patentes para medicamentos e vacinas contra a COVID-19, bem como de outros direitos de propriedade intelectual em torno de instrumentos e tecnologia de diagnóstico.

A ideia desta petição era democratizar o tratamento da pandemia. Especialistas e membros de organismos internacionais apresentaram ao Conselho de Acordos de Direitos de Propriedade Intelectual com o Comércio (TRIPS) – integrado por todos os países membros da OMC – uma comunicação conjunta exigindo isenções para medicamentos COVID. No dia 20 de Novembro de 2020, os Estados Unidos, o Japão e os países da UE, incluindo Portugal, bloquearam esta solicitação.

“O objetivo de Cuba não é ganhar dinheiro rápido, ao contrário das corporações multinacionais de medicamentos, mas sim manter o planeta saudável.” disse à CNBC John Kirk, professor emérito do programa da América Latina da Dalhousie University em Nova Escócia, Canadá. 

Kirk disse ainda que a possível aprovação da OMS das vacinas COVID produzidas nacionalmente em Cuba teria “enorme importância” para os países empobrecidos.

“Uma coisa que é importante ter em mente é que as vacinas cubanas não exigem as temperaturas ultra-baixas que a Pfizer e a Moderna precisam. Em grande parte do continente africano, por exemplo, não existe a capacidade de armazenar a essas temperaturas as vacinas do norte”, disse Kirk.

Ampliação da solidariedade médica cubana 

Seguindo a sua tradição de solidariedade médica, Cuba pretende oferecer a assistência técnica necessária para a construção de indústrias biotecnológicas domésticas robustas para a produção da vacina em países empobrecidos.

O Contingente Internacional de Médicos Especializados em Catástrofes e Epidemias Graves, mais conhecido como a Brigada Henry Reeve, é um grupo cubano de profissionais da saúde estabelecido pelo governo cubano em Setembro de 2005, com a missão de prestar solidariedade médica internacional, destacado internacionalmente em grandes crises sanitárias.

Já esteve presente em dezenas de nações, prestou assistência médica a mais de 3,5 milhões de pessoas e salvou mais de 80 mil vidas desde a sua criação. No princípio da pandemia COVID foram destacadas 52 brigadas médicas cubanas, num total de 3875 profissionais da saúde, para 39 países. 

Cuba tem um historial de sucesso na luta contra doenças infecto-contagiosas: em 2014 e 2015, médicos cubanos trabalharam contra o Ébola na Libéria, Serra Leoa e Guiné, reduzindo as taxas de mortalidade de 50% para 20%. Para além disso, introduziram um programa de educação preventiva para impedir a propagação da doença. Em Janeiro de 2015, Cuba já havia treinado mais de 13.000 pessoas para lidar com o Ébola em 28 países africanos, além de 68.000 pessoas na América Latina e 628 no Caribe.

O “milagre” cubano fruto de um investimento sustentado na saúde pública

Cuba tem um longo histórico de dar prioridade à saúde pública e investir na produção farmacêutica. Esse foco foi em parte impulsionado pela necessidade de produzir bens internamente para superar a escassez causada pelo extenuante embargo dos EUA, imposto após a revolução socialista cubana, mas também por um forte compromisso com a saúde pública em detrimento do lucro privado.

Só entre 1990 e 1996, Cuba investiu 1000 milhões de dólares, cerca de 1,5% do seu PIB, num conjunto de instituições de biotecnologia onde todo o dinheiro gerado era reinvestido nas mesmas. Hoje, 517 dos cerca de 800 medicamentos consumidos em Cuba são produzidos internamente, aumentando a capacidade de saúde pública do país. O substancial investimento estatal de Cuba na ciência médica significa que os benefícios acumulam-se para o povo cubano, não para as grandes farmacêuticas. 

Pelo contrário, os países ricos acumulam vacinas e as grandes empresas farmacêuticas obtêm superlucros recusando-se a partilhar tecnologia. Lembramos que muita da pesquisa no desenvolvimento das vacinas da Pfizer, Moderna, Astrazeneca e Janssen foi feita com dinheiros e/ou institutos públicos, e depois entregue aos privados. 

Cuba, através do anúncio do seu compromisso de partilhar as suas vacinas por meio de licenciamento aberto e a preços baixos, dá uma nova lição ao mundo capitalista. 

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