Ucrânia // Com mais 11 partidos banidos, 44% do eleitorado não tem representação~ 12 min
Por Francisco Norega
Depois de, no final de Março, terem sido “suspensos” 11 partidos por alegadas orientações “pró-russas”, a democracia mais amada pelo Ocidente (já destronou Israel?) baniu de forma permanente a oposição, na passada terça-feira. A suspensão temporária, anunciada na altura pelo Presidente Zelensky, devia aplicar-se durante a guerra, enquanto vigorasse a lei marcial. Agora, os “partidos democráticos” presentes no Parlamento ucraniano livraram-se de forma definitiva destes outros 11 partidos. Uma das proponentes da legislação é uma deputada do Servo do Povo, o partido do democrata Zelensky. [1, 2, 3]
Entre os partidos suspensos desde Março e agora banidos, encontram-se 6 partidos de esquerda – o Partido Socialista Progressivo da Ucrânia, a Oposição de Esquerda, a União de Forças de Esquerda, o Partido Socialista da Ucrânia, o Partido dos Socialistas e o Derzhava. A lista inclui ainda o Bloco Volodymyr Saldo, o Bloco de Oposição, o Nashi, o Partido Shariy e o Partido da Oposição–Pela Vida.
Embora muitos destes partidos agora ilegalizadas tenham defendido a aproximação com a Rússia ou a defesa da língua russa e das populações russófonas, há partidos banidos críticos do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich (o Shariy) ou que apoiaram a parte política do pedido de adesão da Ucrânia à UE (a Oposição de Esquerda). [1]
O Bloco de Oposição e o Partido da Oposição–Pela Vida são dois partidos que sucederam ao Partido das Regiões, o partido de Yanukovich, depois de este ter sido ilegalizado em 2014. O Partidos das Regiões, juntamente com o Partido Comunista da Ucrânia (também ilegalizado em 2014) e outros partidos de esquerda (agora ilegalizados), representavam entre 43% e 44% do eleitorado votante da Ucrânia, ou entre 9 a 10 milhões de pessoas, nas eleições parlamentares de 2007 e 2012. Tinham especial expressão nas províncias do sul e do leste da Ucrânia.
Apesar da mudança de ciclo político em 2014, das tentativas de ilegalização, das perseguições, da violência e de um clima de hostilidade generalizado, estes partidos tiveram o apoio, nas eleições parlamentares de novembro de 2014, de cerca de 13% dos votantes – mais de 2 milhões de pessoas –, com a maioria dos votos concentradas no leste e sul da Ucrânia.
O Partido da Oposição–Pela Vida é um partido pró-russo e de defesa das minorias russófonas e é liderado por Medvechuk, um empresário ucraniano próximo de Putin – ou aliás, era, já que Medvechuk foi preso há várias semanas e o partido foi ilegalizado. Foi o segundo partido mais votado a nível nacional nas eleições parlamentares de 2019 e, nas zonas das províncias de Donetsk e Lugansk sob controlo do governo ucraniano, onde se realizaram eleições, foi o partido mais votado. Em 2019, este e outros partidos agora banidos reuniram 18% dos votos a nível nacional, principalmente nas províncias do leste, e elegeram 49 deputados. (Fonte: https://bit.ly/3qp11ou).
Os mapas dos resultados das eleições locais e presidenciais refletem o mesmo padrão.
Obviamente, não sentimos nenhuma simpatia por Yanukovich, Medvechuk ou outras figuras e oligarcas com inclinações pró-Russas. Ainda assim, isto não nos impede de compreender que a repetida ilegalização de partidos de esquerda e do campo da russofonia deixa, na prática, largos sectores da população sem representação institucional e mostra, mais uma vez, que os interesses da classe política ucraniana do pós-Maidan não têm nada a ver com democracia e liberdade, mas com a construção de uma Ucrânia “às direitas”, alimentada por ódios étnicos e retóricas nacionalistas.
Vejamos, então, o que sobra no parlamento ucraniano.
Quem fica no Parlamento?
Com esta mais recente purga, no Parlamento, para além do partido de Zelensky, que tem 254 deputados, ficam representados apenas os seguintes partidos:
– o Svoboda, abertamente de extrema direita (1 deputado);
– o Samopomich, liberal-conservador pró-europeu (1 deputado);
– o Centro Unido, populista pró-europeu (1 deputado);
– o Partido Agrário da Ucrânia, centrista (1 deputado);
– o Bila Tserkva Unida, centrista liberal (1 deputado);
– o Nossa Terra, de centro-direita (3 deputados);
– o UkrOP, de extrema-direita (3 deputados);
– o Voz, liberal pró-europeu (6 deputados);
– o Solidariedade Europeia, pró-UE e nacionalista “moderado”, do anterior presidente Petro Poroshenko (25 deputados) e
– o Pátria, de direita “moderada” pró-europeia (26 deputados);
– para além de 38 deputados independentes eleitos em círculos uninominais.
No Parlamento ucraniano estão, então, representados 10 partidos, de centro e de direita, todos eles com tendências pró-europeias. De fora ficam não só a esquerda, mas também neoliberais e conservadores que se recusavam a acicatar uma guerra com a Rússia. O que parece unir todos estes partidos banidos é não terem uma postura suficientemente subserviente à NATO e ao Ocidente.
Diriam alguns que, os que sobram, são todos partidos moderados e democráticos, e que a extrema-direita é irrelevante. Olhemos então para os três maiores partidos que restam no parlamento, depois da última purga: o Servo do Povo, o Solidariedade Europeia e o Pátria, todos com colaborações de longa data com figuras de extrema-direita e comandantes de batalhões de voluntários, das quais daremos apenas alguns exemplos.
O Pátria
No primeiro lugar das listas do partido Pátria às eleições de 2014, foi eleita Nadiya Savchenko, uma das comandantes do batalhão Aidar. Nadiya Savchenko esteve presa ilegalmente na Rússia entre 2014 e 2016, depois de ter sido capturada em combate no Donbass, e recebeu o título de “Herói da Ucrânia” das mãos de Poroshenko. De acordo com um artigo de 2017 do jornal canadiano The Globe and The Mail, Savchenko acredita que a Ucrânia devia tornar-se “mais ou menos uma ditadura” com um líder forte para enfrentar a Rússia, dando como exemplos Pinochet, Thatcher, Merkel e Reagan. [1] Em Março de 2018 foi detida por suspeitas de planear um ataque terrorista contra o Parlamento e por querer derrubar o governo.
Nas listas deste partido foi também eleito, em 2014, um combatente do batalhão Azov e, em eleições locais, um comandante do batalhão “Ternopil” e um combatente do batalhão Dnipro-1.
Os batalhões Aidar, Azov e Dnipro-1 estão entre os batalhões de voluntários que cometeram crimes de guerra e violações dos direitos humanos no Donbass, documentados em relatórios da Amnistia Internacional [1], Human Rights Watch, OSCE e Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU.
Nas eleições parlamentares de 2019, foi eleito no terceiro lugar das listas do partido Pátria um senhor chamado Valentyn NalyvaichenkoIn. NalyvaichenkoIn, antigo cônsul-geral da Embaixada da Ucrânia nos EUA, era, em 2014, membro do partido moderado UDAR (do pugilista Vitaly Klitschko, próximo à CDU alemã) e foi nomeado chefe dos Serviços Secretos ucranianos, o SBU alguns meses depois do Maidan. Em Abril de 2015, foi apanhado a dizer que o SBU “não precisava de inventar nada de novo, o importante é construir sobre as tradições do Congresso dos Nacionalistas Ucranianos e da UPA [Exército Insurgente Ucraniano] nos anos 1930-1950“, os tais que colaboraram com a Alemanha nazi, integraram divisões das SS e das Abwehr e participaram em limpezas étnicas de judeus e polacos.
O Solidariedade Europeia
Solidariedade Europeia é o nome do actual partido de Petro Poroshenko, que foi presidente da Ucrânia entre 2014 e 2019 enquanto líder do Bloco de Petro Poroshenko (BPP).
Poroshenko e o seu ministro do interior Arsen Avakov, em 2015, integraram na Guarda Nacional e no exército ucraniano uma série de batalhões com ligações à extrema-direita e responsáveis por inúmeros crimes de guerra.
Em Agosto de 2014, Andriy Biletsky, fundador do batalhão Azov e líder do partido National Corps, foi condecorado por Petro Poroshenko com a Ordem da Coragem e promovido a tenente coronel das forças policiais do Ministério do Interior.
Também em 2014, Poroshenko instituiu o Dia do Defensor da Ucrânia na data de fundação do Exército Insurgente Ucraniano (UPA), 14 de Outubro. Em 2018, o “Slava Ukraini! Heroyam Slava!” tornou-se a saudação oficial do exército ucraniano, por decreto presidencial [1], e continua a sê-lo durante a actual presidência de Zelensky. Isto é especialmente grave tendo em conta que este lema tem origem no Exército Insurgente Ucraniano (UPA) e na ala de Stepan Bandera da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), que colaboraram com as forças nazis na Segunda Guerra Mundial e participaram no genocídio de mais de 100 mil judeus e polacos no oeste da Ucrânia.
Uma nota também sobre Roman Zvarych, um dos fundadores do Congresso dos Nacionalistas Ucranianos, em 1992, juntamente com outros activistas ligados a diferentes alas (incluindo a banderista) da OUN. Zvarych, nascido nos EUA, foi funcionário da Liga Mundial Anti-comunista, deputado no parlamento ucraniano (1998-2004) e duas vezes ministro da justiça (em 2005 e 2006). Foi candidato nas listas do “moderado” Bloco de Petro Poroshenko (BPP) às eleições legislativas de 2014 e, apesar de não ter sido eleito, acabou por voltar a ser deputado em 2018 e 2019, substituindo um deputado entretanto promovido a um cargo mais elevado.
Zvarych foi também, durante algum tempo, líder dos Azov Civil Corps. Entre Junho de 2014 e o Outono de 2015, Zvarych participou da formação e educação do batalhão, regimento e movimento de Azov no que toca a assuntos militares e políticos.
Em 2014, nas listas do “moderado” BPP foi eleito também Oleh Petrenko, membro do Sector Direito na Primavera de 2014 que, em Junho, se juntou aos Azov Civil Corps. Foi deputado do grupo parlamentar do BPP enquanto mantinha ligações ao Regimento de Azov e fazia parte do National Corps.
Andriy Parubiy é uma das mais destacadas figuras da extrema-direita ucraniana. Em 1991, foi co-fundador do Partido Social-Nacional da Ucrânia (SNPU), abertamente neo-nazi, que em 2004 viria a mudar de nome para Svoboda, e liderou o Patriota da Ucrânia, a organização paramilitar juvenil do SNPU, entre 1998 e 2004.
Nas eleições parlamentares de 2019, concorreu no segundo lugar da lista nacional do Solidariedade Europeia, o partido de Petro Poroshenko, e é deputado. Parubiy, membro do parlamento ucraniano desde 2007, concorreu a cada legislatura por um partido diferente, e é um bom exemplo de como a extrema-direita, embora nem sempre consiga os melhores resultados eleitorais, garante sempre a sua influência nos partidos que têm o selo “democrático” do Ocidente.
O Servo do Povo
Sobre o partido de Zelensky haveria muito a dizer. Já publicámos um artigo que foca as ligações deste partido à extrema-direita e ao oligarca Kolomoisky.
Ficamo-nos por um detalhe que exemplifica bem a situação. Nas eleições de 2019, para além dos 3 deputados do partido de extrema-direita UkrOP, eleitos em círculos uninominais, foram eleitos pelas listas do Servo do Povo oito deputados que fazem ou fizeram parte do UkrOP.
O UkrOP foi registado oficialmente em Junho de 2015, e tem origem na criação de um grupo parlamentar com o mesmo nome em Dezembro de 2014, por Borys Filatov, Dmytro Yarosh, Boryslav Bereza, Andriy Biletsky e Volodymyr Parasiuk, entre outros. Filatov apoiou a criação do batalhão Sich juntamente com o Svoboda, Dmytro Yarosh foi líder do Sector Direito e do batalhão DUK, Andriy Biletsky é o fundador do batalhão Azov e líder do National Corps, e Boryslav Bereza foi líder do Batalhão Dnipro. Vários estiveram também ligados a organizações de extrema-direita históricas como a SNA-PU, a UNA-UNSO e o Congresso dos Nacionalistas Ucranianos.
Boryslav Bereza, um desses cinco fundadores do UkrOP, em 2014, foi eleito deputado nas listas da Frente Popular de Yatseniuk, aliado do partido de Poroshenko (o BPP, na altura). Vale a pena referir que Bereza é um admirador assumido de Stepan Bandera, falando de forma calorosa dos seus “três princípios clássicos” em entrevistas, ao mesmo tempo que é judeu praticante. Vá-se lá entender.
Em conclusão, vale a pena referir que, enquanto todas as forças de esquerda (incluindo partidos sem expressão eleitoral) foram ilegalizadas, partidos como o Svoboda, o National Corps, o Partido Radical de Oleh Liashko, o Iniciativa Governamental Yarosh e o UkrOP, bem como organizações paramilitares como o Patriot of Ukraine e o Sector Direito e os batalhões Azov, Donbass, Aidar, Dnipro-1 e Dnipro-2, todos de extrema-direita, continuam a operar legalmente na Ucrânia.
Quem descobriu a Ucrânia há três meses, e acha que é um mito a hostilidade das novas autoridades ucranianas do pós-Maidan às populações russófonas e às forças de oposição, devia começar a olhar para a realidade que se apresenta à frente dos nossos olhos. É incrível como, mesmo quando os fascistas fazem tudo o que podem para orgulhosamente se provarem fascistas, continua tudo a dar vivas à Ucrânia defensora da liberdade e da democracia.
Quem tem democratas assim, não precisa de ditadores.
Sobre as ligações entre a extrema-direita, os batalhões de voluntários e os partidos da dita “direita moderada” ucraniana, recomendamos o artigo Between Frontline and Parliament: Ukrainian Political Parties and Irregular Armed Groups in 2014–2019.