Fact-check ao fact-check de Luís Ribeiro da Visão sobre as purgas na Ucrânia~ 7 min
Por Duarte Guerreiro e Francisco Norega
A Guilhotina foi arrasada pelo último de uma série de artigos sobre os “Mitos e Factos da Guerra”, assinados pelo implacável jornalista da Visão Luís Ribeiro, que tem vindo a “desmontar” a malévola “propaganda russa” que se infiltra por todas as partes nos dias que correm. Sim, queridos leitores, até na vossa estimada Guilhotina! Luís Ribeiro pronunciou que o nosso artigo sobre a mais recente purga democrática na Ucrânia não é suportado pelos factos.
Novamente, o contexto é para parvos. Foi apagado da memória colectiva recente o facto de os vários governos ucranianos pós-Maidan terem seguido uma política comum de usar o estado para destruir a oposição às posições pró-ocidentais e alienar o eleitorado do leste e do sul. Afinal de contas, tal é um dado irrelevante para perceber a situação presente na Ucrânia, ao contrário de saber que petições um burocrata menor numa cidade portuguesa de médio tamanho assinou ou deixou de assinar. Isso já é digno de todo o contexto possível – afinal de contas, todos sabemos o impacto incrível que as petições têm sobre a geopolítica.
Como Luís Ribeiro não é parvo, não só não se preocupa com o contexto histórico ucraniano recente, como nem se deu ao trabalho de ler como deve de ser o artigo que escrevemos, porque até isso é contexto a mais. Diz que acusamos «Volodymyr Zelensky de ter banido 11 partidos que, juntos, representariam quase metade do eleitorado» mas que «o número real é 10%».
44% ou 10%?
O que fizemos no nosso artigo foi precisamente colocar a mais recente purga de 11 partidos em contexto com as purgas anteriores, e mostrar como estas têm afectado repetidamente (por obra do acaso, certamente) os partidos com maior implantação no leste e no sul da Ucrânia. Os 44% referem-se à soma dos resultados eleitorais de 2007 de quatro dos partidos banidos nas várias purgas, e isso está bem explícito no artigo.
Mas será 2007 uma anomalia, escolhida por nós a dedo para servir os interesses de Putin?
Se considerarmos, para além destes 11 partidos, o Partido das Regiões e o Partido Comunista da Ucrânia (ilegalizados em 2014 e 2015), os partidos ilegalizados nestes últimos oito anos tiveram, entre 1998 e 2012, os seguintes resultados eleitorais:
- 32,7% em 1998 (Partido Comunista da Ucrânia [PCU], Partido Socialista da Ucrânia [PSU], Partido Socialista Progressista da Ucrânia [PSPU] e Partido das Regiões [PR]),
- 38,6% em 2002 (PCU, PR [como parte da coligação Ucrânia Unida] e PSU)
- 41,5% em 2006 (PR, PSU e PCU),
- 43,96% em 2007 (PR, PCU, PSU e PSPU),
- 43,2% em 2012 (PR e PCU).
Após o Maidan, a expressão eleitoral destes partidos desceu significativamente, para 13,4% em 2014 (Bloco de Oposição [BO] e PCU), voltando a subir ligeiramente para 18,3% em 2019 (Plataforma de Oposição – Pela Vida, BO e Shariy).
Os 10% de que o Luís fala no início do texto não se referem ao eleitorado mas sim, como o próprio acaba por referir mais à frente, ao valor percentual do número de deputados eleitos por estes partidos relativamente ao total de deputados no parlamento («49 deputados, o que representa 10,9% do total de 450 assentos»), nas eleições de 2019. A percentagem de votos dos três partidos banidos que nelas participaram é 18%, como tínhamos referido no artigo.
Ou seja, o Luís critica o soundbite de colocar os “44%” no título, mas foi também à procura do soundbite – com a diferença de que, para conseguir o soundbite, usou um valor conscientemente falso, apresentando uma percentagem de deputados como uma percentagem de eleitorado e arredondando o número de 10,9% para baixo.
O jornalismo de investigação transformou-se em jornalismo de fact-checking de quem se atreve a desafiar a narrativa oficial nas redes sociais. Quando os “verificadores” de factos possuem a audiência cativa que lhes é garantida pelos seus patrões de bolsos fundos, acabam com carta branca para dizer o que lhes apetece e manipular dados conforme lhes dá jeito, gozando com a cara dos leitores – como fez o Luís quando escreveu sobre a bandeira preta e vermelha do Exército Insurgente Ucraniano (UPA), utilizada hoje em dia pelo Sector Direito e os seus simpatizantes, para assegurar que não há nada de fascista nela.
Segundo o Luís, que agora é especialista em história da Ucrânia, a bandeira na verdade é um símbolo fofinho com origem no século XII, «quando o vermelho e o preto eram usados em poemas eslavos para simbolizar o amor e a tristeza». Novamente, o contexto de que o vermelho simboliza o sangue dos “patriotas” e o preto a famosa terra escura da Ucrânia – “sangue e solo”, onde mais já se ouviu esse mote? – está a mais. Não percam o próximo artigo do Luís, onde explicará que aquelas suásticas tatuadas no corpo dos Azovs são apenas símbolos ancestrais hindus que simbolizam divindade e espiritualidade.
Nem tudo é mau!
Temos, porém de dar a mão à palmatória, engolir o orgulho e agradecer à Visão e ao camarada Luís Ribeiro pelo disparar no número de acessos ao nosso site. E também por umas coisas que aprendemos.
Por exemplo, que um dos partidos banidos, o Partido Socialista Progressivo da Ucrânia é, na verdade, de extrema-direita, e que o último candidato do Partido Socialista da Ucrânia foi «Illia Kyva, [que] foi dirigente do Sector Direito, partido tido como de extrema-direita». Ficámos agradavelmente surpreendidos por o Luís conhecer o Sector Direito. É curioso que o refira para provar que um partido que, pelo nome, seria de esquerda, afinal é de extrema-direita. Dois detalhes do complexo e intrincado cenário político-partidário ucraniano que nos tinham escapado, ficando agradecidos pela chamada à atenção.
É engraçado, no entanto, que escolha dar atenção à participação de um militante de extrema-direita num partido que não tem expressão eleitoral desde 2014, quando no segundo dia da guerra veio a correr dizer que não há extrema-direita na Ucrânia, que esta se resume a um deputado. Luís Ribeiro nunca se deu ao trabalho de explorar em nenhum dos seus artigos os militantes de extrema-direita que concorreram em altos lugares nas listas dos partidos “moderados” pró-europeus nas eleições parlamentares de 2014 e 2019.
Um bom exemplo é Andriy Parubiy – em 1991, foi co-fundador do Partido Social-Nacional da Ucrânia (SNPU), um partido abertamente neo-nazi que em 2004 mudou de nome para Svoboda, e líder entre 1998 e 2004 do Patriota da Ucrânia, a organização paramilitar juvenil do SNPU.
Nas eleições parlamentares de 2019, concorreu no segundo lugar da lista nacional do Solidariedade Europeia, o novo partido de Poroshenko, presidente da Ucrânia entre 2014 e 2019. Nas de 2014, concorreu em quarto lugar das listas da Frente Popular de Yatseniuk, o antigo primeiro-ministro e tecnocrata favorito da UE. Andriy, viria a ascender ao posto de presidente do conselho de defesa e segurança nacional, um local ideal para um neo-nazi exercer influência violenta sobre a vida política nacional – como aconteceu com muitos outros nesta altura, dispersados pelo aparelho policial e militar. Foi também presidente do parlamento ucraniano entre 2014 e 2016.
Aprendemos também que o Luís sabe citar declarações oficiais para mascarar de democrática e absolutamente normal a sucessiva ilegalização de forças que cometeram esse crime de defenderem a federalização da Ucrânia e a possibilidade de as crianças de famílias russófonas estudarem em russo, e de não quererem que a Ucrânia se junte à UE e à NATO. A maior parte destes partidos estão em esquemas manhosos e têm conexões com figuras no mínimo suspeitas mas… algum partido na Ucrânia (e no mundo) não tem?