Curdistão // Rebentos da Revolução [Fotorreportagem]~ 8 min

Um olhar desde a América Latina sobre a revolução em Rojava, ameaçada hoje pela Turquia e defendida nas ruas por jovens que cresceram no seu seio. Por Mauricio Centurión*, para diferentes meios independentes de ambos os lados do oceano.

Após cinco dias de viagem, atravesso de Sulaymaniyah (no Curdistão Iraquiano) para Rojava (o Curdistão Sírio) para registar uma manifestação de jovens que apoiam esta revolução de 10 anos.

Uma ponte precária divide a fronteira: ali está o Tigre, um dos poucos e maiores rios da região. Após horas de burocracia, apresentando documentos e cartões de identificação, e tentando ultrapassar as barreiras linguísticas, consigo atravessar para a próxima fronteira, a 500 metros de distância. 

“Bi xêr hatî Rojava”, diz-me um polícia.

Esta é talvez a primeira vez que tenho a confiança de olhar um homem fardado nos olhos. Com a ajuda de um tradutor, pergunto-lhe como chegar à cidade onde tenho de me encontrar com jornalistas locais para cobrir a manifestação. Depois de me perguntar de onde eu era, ofereceu-me uma boleia e eu disse-lhe que sim. É a segunda vez que, como jornalista, entro na carrinha da polícia. A primeira, é melhor esquecê-la. 

No caminho, ele olha para mim e sorri. 

“Argentina, Argentina”, diz ele, soltando palavras em Kurmanji, a sua língua que eu ainda não consigo compreender.

Um rapazinho anda de mãos dadas com o seu avô e olha para algumas letras incendiadas. Levanta a sua pequena mão e faz um V com os dedos. As letras são as iniciais do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Este partido, criado há mais de quarenta anos por Abdullah Öcalan, foi a principal influência para o povo de Rojava na libertação dos territórios do norte do país em 2012, no contexto da Primavera Árabe que abalou todo o Médio Oriente e o Magrebe. Esta revolta, que saiu do controlo do governo em Damasco, teve as suas principais causas na luta pelas liberdades básicas, liberdades que até então tinham sido negadas aos Curdos: o direito de habitar e cultivar as suas terras, de falar a sua própria língua, de exercer os seus direitos políticos e culturais.

Décadas de lutas foram travadas pelos povos curdos, árabes, arménios, assírios, muçulmanos, cristãos e yazidis, face aos Estados-nação e às fronteiras que dividem os seus povos. No final de Maio deste ano, o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, voltou a ameaçar os povos de Rojava: anunciou uma nova etapa na invasão militar contra o norte e o leste da Síria. Como já fez em 2018 e 2019, Erdogan está a utilizar todo o poder do Estado turco para destruir o projecto social e político em Rojava, partilhado por cinco milhões de pessoas, sejam elas curdas, árabes, arménias, assírias, muçulmanas, cristãs ou yazidis.

Enquanto Erdogan invade e destrói, nenhuma potência internacional faz o que quer que seja.

Em resposta a esta ameaça, milhares de jovens do Movimento Revolucionário da Juventude e da União das Mulheres Jovens organizaram uma marcha de três dias desde a cidade de Qamishlo até Derik, outra cidade a 150 quilómetros de distância. Durante a longa marcha foi levantado um único slogan: “Junta-te à guerra de libertação contra ocupantes e traidores”.

Com os meus pés entre os passos dos caminhantes, o sol bate e a terra sente-se na garganta. Um jovem aproxima-se de mim e pergunta: “tu ji ku dere ki?” (de onde és?). Quando lhe digo “ez ji Argentina me”, ele olha para mim e começa a nomear Che Guevara, Maradona, Messi. Depois abraça-me, beija-me duas vezes e diz “serkeftin” (até à vitória!).

Na marcha, vejo como homens e mulheres dançam. Até há alguns anos atrás, este costume antigo, como o canto e a música, era proibido ao povo curdo de Rojava. As horas de caminhada pelo deserto não desencorajam ninguém. Danças, vozes, canções fundem-se, mais uma vez, como resistência.

Um jovem “quadro” – como aqui chamam às pessoas que fazem parte do movimento curdo e que estiveram vários anos a formar-se politicamente – aproxima-se, agacha-se e serve água aos que estamos ali. Quando termina, não sobra água para si. Ele ri-se, nós queremos dar-lhe a nossa e ele não aceita. Felizmente, há um internacionalista alemão que fala curdo e espanhol e me conta o que ele diz: “Começa pelas coisas simples, hoje deixas alguém sem água, amanhã precisas de coisas materiais para estar bem, no dia seguinte és o teu próprio inimigo. O mundo muda-se com gestos simples, é muito importante que actuemos desta forma, porque alguém que não actua desta forma e fala de revolução é incoerente. Quem vai acreditar num burguês que prega o que não faz?”

O seu sorriso é cativante, nos seus olhos há segurança. Penso que quando a revolução eclodiu, ele tinha apenas nove anos de idade.

No caminho, oferecem-me mais água e comida, elogiam as minhas tatuagens e perguntam-me, com um olhar confuso nos seus rostos, porque tenho um anel no nariz. Os vizinhos que não participam na marcha trazem mangueiras para os jovens beberem água e molharem as cabeças. O véu, no Médio Oriente, tem muitos significados: um deles é cobrir-te do sol; a minha cabeça compreende isto imediatamente. No dia seguinte, consegui um lenço, e não o vou largar até às minhas últimas horas em Rojava.

A revolução no norte e leste da Síria está ameaçada por diferentes interesses. Além disso, este território é literalmente bombardeado pela Turquia. Nas últimas semanas, tanto o exército de Ancara como os grupos mercenários, que são seus aliados na região, redobraram os seus ataques a aldeias e cidades em Rojava.

Na manifestação, rodeando os jovens, as unidades de mulheres milicianas guardam os nossos passos. Esse ícone de mulheres com armas a lutar contra o ISIS, que chegou ao Ocidente de forma espectacular, é transfigurado quando um par de raparigas se aproxima para as cumprimentar com dois beijos e um abraço.

Desde o movimento de mulheres na Argentina que não via tantos jovens juntos para lutar por uma causa. Será essa a razão pela qual é tão difícil para os inimigos acabar com esta revolução? Com estes dez anos de progressos, resistência e milhares de desafios pela frente, o movimento político que libertou Rojava continua a plantar as sementes para reflorestar a terra onde cresce a esperança. Esperança e vida que há décadas tentam aniquilar, mas não serão bem sucedidos.

* Mauricio Centurión é um fotojornalista argentino que seguiu a Gira da Marichuy, visitou os Caracoles zapatistas e acompanhou o capítulo português da Viagem pela Vida. O mês passado, publicou o livro Guardianes de la noche – Jchabivanejetic ta ac’ubal, sobre a sua passagem por Chiapas em 2017. Está, agora, em Rojava.

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