Discurso único e manipulação mediática: o caso das eleições francesas~ 5 min
Por Francisco Norega
Na semana que antecedeu a primeira volta das legislativas francesas, observámos mais um exemplo do absurdo da manipulação mediática com que somos bombardeados diariamente.
Os media decidiram realçar a “ameaça” que representa a coligação de esquerda liderada por Mélenchon que, aparentemente, é especialmente preocupante por poder ser ainda “mais forte do que a extrema-direita” e a coligação de Macron. O exemplo em que pegamos, da SIC Notícias, é apenas uma réplica do discurso que foi propagado por meios de comunicação pelo Ocidente fora, e de forma especialmente agressiva em França.
A NUPES e Mélenchon: Extrema-esquerda?
É quase cómico, de tão ridículo, sugerir que Mélenchon é um “radical”, ou que a Nova União Popular Ecológica e Social (NUPES) tem algo que remotamente se assemelhe a “extrema-esquerda”.
Aliás, seria cómico, não fosse a tragédia de chamar de “ameaça” ao regresso da esquerda institucional francesa, num contexto em que as últimas duas presidenciais foram disputadas entre o neoliberalismo autocrático e securitário de Macron e a extrema-direita nacionalista de Le Pen.
A NUPES não é mais do que o retorno da “esquerda plural” e da social democracia ao cenário político francês, sem qualquer programa de ruptura, sem discurso anti-capitalista, sem candidatos vindos das lutas sociais (salvo raras excepções) e recheado de candidatos dos aparelhos partidários, nomeadamente do Partido Socialista, que ainda não tinha recuperado da derrocada eleitoral que se seguiu à presidência austeritária de François Hollande, entre 2012 e 2017.
Traduzimos parte de uma análise dos resultados da primeira volta das eleições, publicada pelo projecto de informação independente Nantes Revoltée:
No [Departamento de] Loire-Atlantique, por exemplo, a NUPES apresentou como candidatos um polícia (na periferia vinhateira) e um socialista frouxo (no norte de Nantes). Em Nantes, o «apoio» a que se deu destaque nos panfletos de campanha da NUPES é o de Johanna Rolland, a presidente Vallsista [*] da câmara de Nantes, que põe polícias e câmaras de video-vigilância em todo o lado, que gentrifica a cidade, expulsa e impõe projectos abjectos. Ver o PS, que estava em estado de decomposição avançada, regressar em força é uma verdadeira derrota. Sim, é menos mau que o clã Macron. É a refundação de um PS 2.0, sobre posições menos radicais do que as de Mitterrand em 1981.
* Vallsista refere-se a Manuel Valls, primeiro-ministro de Hollande que aplicou programas de austeridade brutais, apoiado nas musculadas forças de repressão do estado francês
O Discurso Único e as Caças às Bruxas
A propaganda mediática que pretende demonizar e ostracizar tudo o que tenha um sequer leve ar de esquerda, entrou numa nova fase, mais acelerada, com a invasão russa da Ucrânia. Em meio da presente “histeria anti-comunista”, quem, dentro das esquerdas e dos anarquismos, acha que é bem feito, que “os comunistas” estão a pagar pelos seus pecados, esquece-se que, a seguir aos comun-istas, outros -istas virão. E, quando se deixa que estas caças às bruxas, de mãos dadas com um discurso reaccionário, se normalizem e enraízem nas nossas sociedades, no final nem a esquerda liberal, moderna e perfeitamente integrada no sistema, se vai safar. Tudo o que fuja ao consenso neoliberal vai ser trucidado de forma implacável.
Dia após dia, em todo o Ocidente, estes discursos vão sendo cada vez mais martelados na cabeça das pessoas através dos mass media, a par com uma cada vez mais agressiva campanha de revisionismo histórico [1], branqueamento do passado de organizações genocidas e das responsabilidades ocidentais em toda a merda que se passa no mundo [1, 2, 3]. Chegámos até a viver sob um bombardeamento televisivo que normaliza (quando não glorifica) organizações paramilitares de extrema-direita.
Vai ficando tudo cada vez mais consolidado, consolidadozinho, que dá jeito a toda a gente.
A Ocidente, tenha o tirano de turno cara de socialista, social democrata, liberal ou, vá, fascista, em todo o lado se consolida o discurso único, em que o Ocidente e os seus aliados são os defensores da democracia e da liberdade, enquanto os seus inimigos representam a barbárie. Enquanto isso, esconde-se que o Ocidente, o histórico e o actual, representa a maior Barbárie à face da terra.
Apresentem-se com a máscara que quiserem, o importante é estarem alinhados com os interesses do imperialismo e do neoliberalismo ocidentais.
O importante é estar ao centro, porque no centro é que está a virtude. Não venham cá desestabilizar esta estabilização filha da puta com ideias “radicais”. É preciso é malta moderada, definam-se lá como quiserem. Moderada, como quem diz, assim ao centro, com as ideias no sítio e as alianças e as subserviências claras.
O importante é ser gente séria, que saiba seguir o guião, que não venha com ideias inconvenientes nem se meta em aventuras. Gente… vá, quem diz ao centro, diz… às direitas.