Japão // Quem foi Shinzo Abe? E porque é que isso importa hoje?~ 14 min

Por Francisco Norega

Shinzo Abe foi primeiro-ministro do Japão entre 2012 e 2020 pelo Partido Liberal Democrata (PLD), e era uma das figuras mais importantes da direita japonesa contemporânea. Abe era apologista dos crimes de guerra do Japão Imperial e levou o Japão contemporâneo de novo rumo ao militarismo, tendo ainda apoiado as intenções imperialistas dos EUA na região da Ásia-Pacífico.

Quando ouvimos e lemos o que foi dito na comunicação social portuguesa nas últimas duas semanas – de que Abe era um “nacionalista que batalhou pelo lugar do Japão no mundo” (Público), um “falcão sorridente” (DN) ou que “marcou a história do Japão de forma incontornável” (TVI) – seria impossível não falar do verdadeiro legado desta figura que marcou a última década do Japão – e não pelas melhores razões.

No imaginário das sociedades livres, é, irremediavelmente, o primeiro líder mundial a sofrer um assassinato no século XXI.

in Diário de Notícias

Vejamos então a sociedade livre que Abe deixou ao Japão, e o que significa o reforço da direita militarista nas eleições legislativas que tiveram lugar apenas dois dias após o assassinato de Abe.

Nippon Kaigi

Abe era membro do grupo de extrema-direita Nippon Kaigi (ou Conferência Japonesa). Este grupo afirma que os crimes de guerra japoneses foram exagerados ou fabricados, e exalta o colonialismo japonês por “libertar” a Ásia do jugo do Ocidente. Tem como objectivo eliminar o carácter “pacifista” do Japão, consagrado na constituição aprovada após a 2ª Guerra Mundial.

Em 2014, após a primeira remodelação governamental desde o início do mandato de Abe, 15 dos 19 membros do governo japonês eram membros do grupo Nippon Kaigi (contando com o próprio). Esta remodelação confirmou a tendência de aprofundamento do rumo nacionalista do Japão, aumentando ainda mais a presença do grupo no executivo de Abe, que antes já tinha 13 posições minesteriais.

O santuário Yasukuni

O Santuário Yasukuni, em Tokyo, é um local controverso ligado ao militarismo japonês que presta homenagem a mais de dois milhões de pessoas que morreram ao serviço das forças japonesas durante diferentes guerras entre 1868 e 1954. Entre eles estão mais de mil criminosos de guerra que foram condenados, 14 deles criminosos de guerra de Classe A, ou seja, que cometeram “crimes contra a paz” – que incluem o planeamento, a preparação, o início ou a execução de uma guerra.

Shinzo Abe visitou o Santuário Yasukuni em várias ocasiões, o que causou descontentamento na China e nas Coreias.

Escravatura sexual

O Exército Imperial Japonês manteve, antes e durante a 2ª Guerra Mundial, o que ficou conhecido como o sistema das “mulheres de conforto”, em que milhares de mulheres e raparigas foram forçadas a escravatura sexual, no próprio Japão e nos territórios ocupados, para satisfazer as “necessidades” dos soldados japoneses.

Este sistema foi montado pelo exército japonês para diminuir as violações por parte dos soldados nos territórios ocupados, que começava a causar cada vez mais descontentamento entre as populações locais, assim como para travar a elevada transmissão de doenças sexuais. No entanto, nem diminuíram as taxas de infectados com doenças sexuais nem deixaram de ser cometidas violações – estas simplesmente passaram a ser cometidas em estabelecimentos dentro das bases militares no Japão e nos territórios ocupados, longe de olhares indesejados. A maior parte dos documentos sobre estes estabelecimentos foi destruído antes da derrota do Japão. 

As estimativas variam, mas a maior parte dos historiadores apontam que entre 50 mil e mais de 200 mil mulheres terão sido vítimas deste sistema. A maior parte das mulheres vinham da Coreia, da China, das Filipinas e do próprio Japão.

A extensão do Império Japonês de 1870 (mais escuro) a 1947 (mais claro), via Wikipedia

Abe recusou-se a reconhecer a escravatura sexual levada a cabo pelo Japão durante a 2ª Guerra Mundial, a que se referia sempre através da sua designação eufemística de sistema de “mulheres de conforto”. Sugerindo em múltiplas ocasiões que estas mulheres teriam escolhido voluntariamente participar no dito sistema ou que, se tivessem sido forçadas, o exército e o estado japonês nada teriam a ver com isso.

Abe repudiou publicamente a Declaração de Kono, de 1993, através da qual um governo japonês havia reconhecido pela primeira vez que o Exército Imperial Japonês forçou mulheres a trabalhos sexuais em bordéis geridos pelos militares durante a 2ª Guerra Mundial. Com essa declaração, o governo reconheceu ainda que estas mulheres “viveram na miséria nas estações de conforto, sujeitas a uma atmosfera coerciva”, entre muitas outras coisas. Chegou a ser sugerido que Abe poderia revogar essa declaração.

Em 2015, Abe e a então presidente sul coreana chegaram a um acordo para apoiar antigas “mulheres de conforto”. No entanto, as vítimas não foram consultadas e o acordo não respondia às suas exigências, o que provocou protestos de sobreviventes e pessoas solidárias em Seoul.

No entanto, Abe e o governo japonês continuaram a afirmar a sua crença de que o sistema de “mulheres de conforto” não foi um crime de guerra. As autoridades japonesas continuaram a levar a cabo várias tentativas de branquear a história, incluindo fora do Japão.

Trabalho escravo

Em Outubro de 2018, o Supremo Tribunal da Coreia do Sul emitiu um parecer que reconheceu o direito de um sobrevivente e as famílias de outros 3 (que morreram durante o processo) a receber compensações de uma das empresas japonesas que usou mão-de-obra escrava da Coreia durante a 2ª guerra mundial. A decisão do tribunal estipula que a empresa deveria pagar 89 mil dólares em compensações a cada um.

Segundo diferentes historiadores, o Japão Imperial utilizou milhões de civis (chamados de “nativos”) e prisioneiros de guerra como mão-de-obra escrava. Estes vinham da Coreia, China, Birmânia, Tailândia, Manchúria, Singapura, Malásia e até Timor.

Várias centenas de milhares terão morrido em campos de trabalhos forçados ou na construção de grandes empreendimentos, como a linha ferroviária Burma-Tailândia. Durante a construção desta linha, entre 1942 e 1943, centenas de milhares de pessoas foram sujeitas a trabalhos forçados sob as mais atrozes condições. Várias dezenas de milhares de pessoas não sobreviveram.

Algumas das maiores e mais ricas empresas japonesas, como a Mitsubishi, a Mitsui Mining e a Nippon Steel, tiveram origem em grupos industriais chamados “zaibatsu”, que faziam uso de trabalhos forçados, especialmente durante a guerra, quando a força de trabalho era escassa devido à mobilização da maior parte dos homens adultos para as forças armadas.

Para além do pedido de compensação feito pelo Supremo Tribunal da Coreia do Sul, as autoridades coreanas também tinham, na mesma altura, voltado a falar de compensações às “mulheres de conforto”, e várias outras decisões judiciais tinham sido tomadas contra empresas japonesas. A resposta de Abe? Declarou uma guerra comercial contra a Coreia do Sul.

Discriminação contra coreanos

Alguns membros da Nippon Kaigi estão associados com membros da Zaitokukai, outra organização de extrema-direita japonesa, e participaram em protestos que propagaram discurso de ódio e xenofobia contra a população coreana do Japão (os Zainichi).

Na era de Abe, o governo japonês cancelou os subsídios às escolas Joseon. Estas são as escolas onde estudam as populações coreanas Zainichi no Japão, e têm ligações à Coreia do Norte. As comunidades coreanas Zainichi Koreans afirmam enfrentar discriminação sistémica, nomeadamente a nível cultural e linguístico, entre outras dificuldades.

Okinawa

Em 2019, Abe concordou com a construção de uma nova base militar norte-americana em Okinawa, apenas algumas horas depois da população da ilha ter votado num referendo em que o projecto foi rejeitado por 70% dos votantes.

A ilha de Okinawa sofre duplamente – por um lado, com o colonialismo japonês que fez tudo para apagar a cultura, a língua e a história locais durante mais de um século; por outro, com o imperialismo dos EUA.

A sua localização estratégica, pela proximidade à China, fez com que a ilha estivesse sob administração militar norte-americana de 1945 até 1972. Durante esse período, os EUA transformaram Okinawa num dos territórios mais militarizados do planeta. A entrega da administração da ilha às autoridades japonesas não significou, no entanto, a saída das forças militares do EUA.

Há hoje em dia, na ilha de Okinawa, 32 bases militares dos EUA, que monopolizam quase 20% do território da ilha. Estas bases desempenharam papéis importantes nas guerras da Coreia, do Vietname, do Afeganistão e do Iraque.

A presença militar norte-americana é a raiz de inúmeros problemas económicos e sociais para a população local, e tem provocado descontentamento durante as últimas décadas. Em Okinawa, a taxa de desemprego é a maior do Japão e, quem consegue encontrar um trabalho, tem dos salários mais baixos. Há ainda menos estudantes que acabam o ensino secundário do que em qualquer outra prefeitura do país, e ainda menos vão para a universidade. Para além disso, a população é forçada a viver ensardinhada em faixas residenciais rodeadas por instalações militares, que também impedem o desenvolvimento das infraestruturas da ilha. A estes problema acrescenta-se a contaminação dos solos nas áreas das bases militares, onde vêm sendo armazenadas durante as últimas décadas todo o tipo de substâncias tóxicas – desde mísseis nucleares a agente laranja da Guerra do Vietname, passando por munições de urânio empobrecido e, mais recentemente, equipamento evacuado da central nuclear da Fukushima. 

Militarização

Com a constituição do pós-2ª Guerra Mundial, o Japão rejeita a guerra como meio de resolver disputas internacionais. O artigo 9º da constituição afirma que o estado japonês renúncia ao direito soberano de beligerância, e que não seriam mantidas forças armadas com potencial bélico. Ainda assim, o Japão mantém as ditas Forças de Auto-Defesa, que em tudo se assemelham a um exército normal, não contando apenas com armamento considerado estritamente ofensivo, como mísseis balísticos e armas nucleares.

Uma das acções mais significativas de Abe enquanto primeiro-ministro teve lugar em 2015, quando este passou legislação que autoriza missões de combate no estrangeiro ao lado de tropas aliadas em nome da “auto-defesa colectiva”. Apesar dos enormes protestos populares e da oposição dos países vizinhos e da oposição parlamentar, o parlamento aprovou a legislação.

Durante o seu mandato, Abe insistiu na ideia de um “pacifismo proactivo” que permitiria ao Japão tornar-se um “país normal”, segundo o qual as Forças de Auto-Defesa seriam um Exército Nacional de direito próprio que protegeria o país de ameaças ao seu território através do aprofundamento da aliança entre o Japão e os EUA.

Isto só poderia ser conseguido através de uma revisão constitucional que eliminasse a cláusula que proíbe o Japão de usar a força militar para resolver conflitos. Era esta uma das maiores bandeiras de Abe, e foi também o seu maior fracasso político, pois acabou por nunca conseguir o apoio dos dois terços do parlamento, necessário para avançar com uma revisão constitucional.

O avô de Abe

Abe também elogiava o seu avô, Nobusuke Kishi, que desempenhou papéis de liderança no Japão Imperial. Antes da guerra foi vice-ministro do Desenvolvimento Industrial do estado-fantoche da Manchúria (actualmente parte da China), que na altura estava sob o jugo do Império Japonês. Durante a 2ª Guerra mundial, liderou vários ministérios do governo japonês.

No final da guerra, Kishi foi preso e considerado suspeito de ser um criminoso de guerra responsável por crimes de Classe A, ou “crimes contra a paz” – que incluem o planeamento, preparação, início ou execução de uma guerra.

Ainda assim, os EUA acabaram por nunca o julgar, e eventualmente libertaram-no pois consideravam-no o melhor homem para liderar o Japão do pós-guerra numa direcção pró-EUA. Com o apoio dos EUA, Kishi consolidou o campo conservador japonês contra a suposta ameaça que representava o Partido Socialista do Japão nos anos 50. Kishi foi essencial na fundação do Partido Liberal Democrático (LDP) através da fusão de vários partidos conservadores mais pequenos, em 1955. 

Kishi, em vez de ser condenado pelos crimes de guerra que cometeu, ascendeu ao cargo de primeiro-ministro em 1957. O PLD governa o Japão quase ininterruptamente desde essa altura, com excepção de dois períodos, em 1993-1994 e 2009-2012, ano em que Abe foi eleito para o primeiro mandato como primeiro-ministro.

Como muitos dos conservadores no Japão, Kishi acreditava que a guerra do Japão na Ásia e no Pacífico não foi uma guerra de agressão mas de auto-defesa, e que por isso o tratamento dado a si e a vários dos seus colegas como “criminosos de guerra” era injustificado e apenas um exemplo da justiça dos vencedores. Como primeiro-ministro, Kishi pressionou a administração de Eisenhower para acelerar o processo de libertação de criminosos de guerra de Classe B (que fisicamente levaram a cabo crimes de guerra ou crimes contra a humanidade) e Classe C (responsáveis por planear ou permitir esses crimes). No final de 1958, todos estes criminosos de guerra estavam já em liberdade. Kishi também procurou comemorar criminosos de guerra de Classe A já condenados.

A obra ficou por completar

Abe contribuiu activamente para a continuidade do legado do colonialismo japonês, ao tentar apagar repetidamente os crimes de guerra do Japão Imperial contra vários povos asiáticos, e serviu os interesses do imperialismo dos EUA na Ásia, com uma linha dura em relação à Coreia do Norte e China.

No entanto, falhou no seu maior sonho e também o seu maior objectivo político – rever a constituição.

Avizinham-se tempos perigosos

Abe foi assassinado por um ex-militar que procurava vingança por a sua mãe ter entregue as posses da família a uma seita religiosa, informalmente conhecida por “Moonies” e à qual o partido político de Abe está ligado, a apenas dois dias das eleições para a câmara alta do parlamento japonês.

Nas eleições do passado domingo, o LPD e o seu parceiro de governo, Komeito, saíram reforçados e controlam agora 146 lugares do total de 248 no parlamento japonês. Para além destes dois, também o Partido da Inovação Japonês e o Partido Democrático para o Povo apoiam a realização de uma revisão constitucional. Ao todo, os quatro partidos controlam 279 deputados, acima dos dois terços que Abe não tinha conseguido alcançar. 

É bem possível que a morte de Abe signifique a concretização do seu sonho. No Japão, as portas estão abertas para o aumentar do nacionalismo, do militarismo e do revivalismo do imperialismo japonês. E, claro, para aprofundar ainda mais a subserviência ao imperialismo dos EUA. Afinal, essa é a principal condição para qualquer regime receber o “selo democrático” do Ocidente.

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